A mulher que descobriu do que é feito o Sol

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Cecilia Payne-Gaposchkin precisou vencer o conservadorismo de seu tempo para se tornar astrônoma e ter reconhecido seu trabalho que revelou a composição das estrelas

CRÉDITO: FOTO WIKIMEDIA COMMONS

Estamos no auge do verão no hemisfério Sul, e expressões como “um Sol para cada um”, “Sol escaldante”, “Sol a pino” e “Onde a gente desliga o Sol?” são ouvidas o tempo todo. Sinal de que todos conhecemos o grande responsável pelos dias quentes da estação: o onipresente Sol, o corpo celeste central no sistema planetário que habitamos, uma estrela de 4,6 bilhões de anos, da categoria informal das ‘anãs amarelas’. 

Mesmo a 150 milhões de quilômetros de distância de nós, o Sol emite a energia e a luz que abastecem a vida na Terra. Mas do que são feitos o Sol e as estrelas? E de onde vem tanta energia? Por anos, astrônomos debateram essa questão, e foi uma mulher notável que, mesmo enfrentando o machismo e o conservadorismo, respondeu a essa pergunta.

Cecilia Payne (1900-1979) nasceu na pequena cidade inglesa de Wendover. Sua família tinha boas condições financeiras para oferecer educação de qualidade aos filhos. Aos 4 anos de idade, ela perdeu o pai, e sua mãe, Emma, se tornou a chefe da família. 

Emma logo percebeu que a filha era uma criança ávida por conhecimento. Em busca de melhores colégios para o irmão de Cecilia, a família se mudou para Londres. E a menina, então com 12 anos, também se beneficiaria da mudança. 

Em 1918, Cecilia foi matriculada na St Paul’s School for Girls, onde pôde estudar disciplinas do currículo das ciências naturais. No ano seguinte, aos 19 anos, conseguiu bolsa para estudar no Newnham College, instituição exclusiva para mulheres associada à Universidade de Cambridge.

Mas essas alunas não podiam receber nem diplomas universitários, nem títulos de bacharel. Ganhavam só certificados de conclusão do curso.

Sonho: ser astrônoma

Naquela época em Cambridge, a maioria das alunas cursava línguas, artes ou botânica, áreas que aquela sociedade conservadora considerava aceitáveis para mulheres. Mas isso não era suficiente para Cecilia.

Naquela época em Cambridge, a maioria das alunas cursava línguas, artes ou botânica, áreas que aquela sociedade considerava aceitáveis para mulheres. Mas isso não era suficiente para Cecilia.

No fim de 1919, ela assistiu a uma palestra do astrônomo Arthur Eddington (1882-1944) sobre a recente expedição dele para observar o eclipse solar daquele ano. Com base nos dados dessa expedição, especialistas à época deram a teoria da relatividade geral como comprovada. 

A partir daí, a jovem decidiu: queria cursar física e se tornar astrônoma. Enfrentando resistência, ela conseguiu se inscrever em três cursos: botânica, química e física – um ano mais tarde, desligou-se do primeiro. 

Eddington foi um incentivador da carreira de Cecilia. Mais tarde, quando conversaram pela primeira vez, ela contou a ele contou que sua palestra havia sido determinante para sua decisão de se tornar astrônoma. 

Mas nem todos os professores de Cambridge eram amigáveis. Ernest Rutherford (1871-1937), por exemplo, sempre iniciava suas aulas dizendo “Senhoras e senhores […]”, apesar de Cecília ser a única mulher na classe. Todos os outros homens saudavam o cumprimento com aplausos estrondosos e batidas de pés no chão. Mais tarde, Cecilia, em depoimento para o AIP (sigla, em inglês, Instituto Norte-americano de Física), revelou que se sentia humilhada.

A sorte da aspirante a astrônoma mudou em 1923, quando ela conheceu Harlow Shapley (1885-1972), professor e diretor do Observatório Harvard (EUA). Físico renomado, Shapley havia acabado de criar o programa de pós-graduação em astronomia da instituição e convidou Cecilia para fazer um doutorado sob sua supervisão nos EUA, proposta prontamente aceita.

Contribuição de ‘assistentes’

O Departamento de Astronomia da Universidade de Harvard tinha histórico de contratar mulheres, as chamadas ‘computadores humanos’, responsáveis por fazer cálculos complicados sob a supervisão de cientistas homens – tema semelhante foi abordado pelo filme Estrelas além do tempo (2016). 

Mulheres eram preferidas para essa tarefa, por serem consideradas não só mais pacientes para trabalhos que exigiam minuciosidade, mas também (e principalmente) porque recebiam salários mais baixos. 

Apesar do cenário desfavorável, vale lembrar que muitas dessas ‘assistentes’ deram contribuições significativas para a astronomia. Uma delas foi Annie Jump Cannon (1863-1941), que catalogou e organizou milhares de espectros estelares. Foi com base no trabalho iniciado por Cannon que Cecilia descobriu a composição das estrelas.

Espectros estelares são uma espécie de ‘fotografia’ das estrelas. Com essas imagens, é possível obter informações sobre a temperatura, luminosidade e composição química das estrelas. 

A informação presente em um espectro estelar tem origem no seguinte fenômeno: fótons (partículas de luz) gerados no interior de uma estrela, em seu caminho rumo à superfície, ‘ricocheteiam’ nos elementos químicos que formam esse corpo celeste. Quando escapam da atmosfera estelar, os fótons carregam informações sobre os elementos com os quais eles interagiram ao longo do trajeto. 

Naquele tempo, o Observatório Harvard tinha milhares de espectros catalogados por Cannon, mas ninguém sabia interpretá-los bem.

O que só ela viu

Cecilia analisou os espectros com base em resultados da então recém-desenvolvida física quântica, ferramental teórico que trata dos fenômenos do mundo subatômico. Outro diferencial de seu olhar sobre os dados: a teoria desenvolvida pelo físico indiano Meghnad Saha (1893-1956), a qual estabeleceu relação entre a temperatura e as cores emitidas por um gás.

Esse binômio permitiu que Cecilia relacionasse o espectro com a composição estelar, chegando à seguinte conclusão: estrelas são formadas predominantemente por hidrogênio e hélio. Isso mudou radicalmente nossa compreensão desses objetos. 

É difícil imaginar a emoção dela, mas tudo indica que, por breve período, Cecília foi a única pessoa no mundo a saber do que as estrelas eram feitas. Sua tese de doutorado, publicada em 1925, explicou em detalhes a conclusão sobre a composição estelar.

CRÉDITO FOTO CORTESIA ASTRONOMICAL SOCIETY OF THE PACIFIC, COURTESY AIP EMILIO SEGRÈ
VISUAL ARCHIVES, PHYSICS TODAY COLLECTION

É difícil imaginar a emoção dela, mas tudo indica que, por breve período, Cecília foi a única pessoa no mundo a saber do que as estrelas eram feitas. Sua tese de doutorado explicou em detalhes a conclusão sobre a composição estelar.

No trabalho, ela calculou a abundância de vários elementos estelares que eram muito similares aos da Terra – o que causou surpresa à época. Duas exceções: o hidrogênio e o hélio, respectivamente, um milhão de vezes e mil vezes mais abundantes do que em nosso planeta. Hoje, sabemos que a energia das estrelas vem da fusão de átomos de hidrogênio, que se juntam para formar o hélio. 

O presidente da banca de doutorado de Cecilia foi o físico Henry Russell (1877-1957), defensor da teoria de que a Terra e o Sol tinham a mesma composição. Ele acreditava ser impossível que o hidrogênio fosse tão abundante nas estrelas. 

Para ter sua tese aprovada, Cecília teve que incluir nela a seguinte frase: “A enorme abundância derivada de hidrogênio e hélio quase certamente não é real”. Apesar de tudo, sua tese de doutorado foi a primeira em astronomia da Faculdade Radcliffe (para mulheres) da Universidade Harvard.

Enfim, justiça

Quatro anos mais tarde, Russell mudou de ideia e publicou artigo concordando com os resultados da tese de Cecilia. Ele citou o trabalho dela, mas, apesar disso, acabou, por muito tempo, sendo reconhecido como o descobridor da composição estelar. Hoje, justiça foi feita: o pioneirismo da descoberta voltou a ser de Cecilia.

Quatro anos mais tarde, Russell mudou de ideia e publicou artigo concordando com os resultados da tese de Cecilia. Ele citou o trabalho dela, mas, apesar disso, acabou, por muito tempo, sendo reconhecido como o descobridor da composição estelar

O último sobrenome de Cecilia, Gaposchkin, veio do casamento com o físico russo Sergei Gaposchkin (1898-1984), com quem teve três filhos. Ela continuou sua pesquisa no observatório, publicando livros e centenas de artigos, mas sem posição acadêmica formal e com salário abaixo dos de seus pares. 

Em 1954, Donald Menzel (1901-1976) se tornou diretor do observatório. Nomeou Cecilia professora titular e dobrou o salário dela. 

Mais tarde, Cecilia se tornaria chefe do Departamento de Astronomia – a primeira mulher com esse posto em toda a Universidade Harvard – e receberia inúmeros prêmios, incluindo (ironicamente) o prêmio Henry Russell de Astronomia.

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