Alternativas ao soro antiofídico tradicional

O soro produzido pela Unesp traz menor risco
de causar reações alérgicas do que o usado tradicionalmente (foto: Rui Seabra/Cevap)

Trabalhos pioneiros em dois estados brasileiros trazem novidades para o tratamento de picadas de cobra. Em São Paulo, pesquisadores criaram um método diferente de produção de soro antiofídico que aumenta seu poder neutralizante e diminui tanto os custos de sua fabricação quanto a agressão às ovelhas, utilizadas como animais soroprodutores no lugar de cavalos. Já no Rio de Janeiro foram desenvolvidas pela primeira vez substâncias sintéticas capazes de inibir toxinas presentes no veneno de diferentes espécies de serpentes.

Criada pelo Centro de Veneno e Animais Peçonhentos (Cevap) da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) em parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas Nucleares (Ipen) da Universidade de São Paulo (USP), a nova técnica de produção de soro apresenta maior capacidade de neutralização do veneno, além de torná-lo 50% menos tóxico às ovelhas. Segundo o veterinário Rui Seabra, do Cevap, um dos motivos para a substituição dos animais é que as ovelhas produzem um soro de maior qualidade, com risco bem menor de causar choque anafilático (reação exagerada do organismo a uma substância estranha) no usuário. “O soro de ovelhas, ao contrário do produzido por cavalos, não possui um anticorpo responsável por esse efeito colateral.”

O novo método diminui a toxicidade do veneno graças a um processo de irradiação com cobalto-60, que modifica as proteínas do antígeno sem prejudicar a qualidade do soro. O objetivo dos pesquisadores era diminuir o índice de morte dos animais produtores, que atualmente gira em torno de 10%. Segundo a biomédica Nanci do Nascimento, do Ipen, o soro obtido a partir do veneno irradiado tem poder neutralizante duas vezes maior que o tradicional.

Com base em trabalhos de pesquisadores indianos, o Ipen começou a usar radiação em venenos de cascavel ( Crotalus durissus terrificus ) e jararaca ( Bothrops jararaca ). Nascimento destaca que mais de 90% dos 20 mil acidentes com serpentes que ocorrem no Brasil por ano envolvem animais do gênero Bothrops . Apesar de mais freqüentes, acidentes com jararacas não são tão letais quanto os com cascavel. Enquanto uma picada de jararaca tem ação local, podendo levar à amputação de membros, a de cascavel atua no sistema nervoso central do indivíduo.

Os pesquisadores de São Paulo aguardam uma autorização do Ministério da Saúde para poder comercializar o soro, primeiramente para uso veterinário e depois em humanos. “O produto deve estar no mercado em até quatro anos”, estima Seabra.

Moléculas sintéticas
Embora os resultados preliminares tenham sido bastante promissores, as substâncias sintéticas desenvolvidas por pesquisadores do Laboratório de Química Bioorgânica (LQB) do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais (NPPN) e do Laboratório de Farmacologia de Toxinas (LFT) do Departamento de Farmacologia Básica e Clínica (DFBC), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ainda não têm previsão para chegar aos postos de saúde. Farmacólogos e químicos trabalham nesse projeto desde 1997, com o apoio do Pronex – programa governamental que promove a integração de cientistas de diversas áreas do conhecimento.

O início da pesquisa com substâncias antiofídicas na UFRJ remonta a 1994, quando o químico Walter Mors (NPPN) e o médico Paulo Melo (LFT-DFBC) isolaram o produto natural wedelolactona da planta Eclipta prostata , conhecida popularmente como erva-de-botão, e demonstraram a sua ação in vitro . Outro produto natural que apresentou ação antiofídica in vitro (edunol) foi isolado em 1997 da planta Harpalicia brasiliana , pelo químico Francisco Matos, da Universidade Federal do Ceará.

Tendo como modelo os produtos encontrados nessas duas plantas, usadas na medicina popular como antiofídicos, os pesquisadores do LQB-NPPN sintetizaram novas moléculas, que foram capazes de inibir as atividades hemorrágica e proteolítica do veneno, responsáveis pela destruição dos tecidos. “Os produtos naturais servem como protótipos e as suas estruturas podem ser racionalmente modificadas para produzir, em laboratório, novas substâncias ainda mais ativas”, diz o farmacêutico Paulo Costa, diretor científico do LQB e coordenador da pesquisa.

Os novos derivados sintéticos preparados mostraram-se ativos nos testes in vitro , protegendo as células expostas ao veneno. As substâncias que apresentaram os melhores perfis nessa etapa de triagem foram utilizadas nos testes in vivo em camundongos. Um dos derivados sintéticos foi estudado em maior profundidade e, quando administrado antes de o veneno ser injetado nos animais, protegeu-os dos efeitos deletérios. As experiências sugerem que essa substância pode ser utilizada profilaticamente. “Tudo leva a crer que essa substância poderia ser administrada por via oral. Então, antes de entrar em uma área de risco, a pessoa poderia tomar um comprimido e, caso ela fosse mordida, já estaria protegida”, aposta Paulo Melo.

Em outro estudo, a substância foi administrada intraperitonialmente depois do veneno, mostrando-se mais eficiente em proteger os animais, os quais sobreviveram com danos mínimos, quando comparada aos principais soros antiofídicos disponíveis no Rio de Janeiro e São Paulo.

Potenciais vantagens sobre o soro
Venenos de cinco espécies de serpentes pertencentes aos gêneros Crotalus (cascavel) e Bothrops (jararaca) foram utilizados na pesquisa e as substâncias sintéticas responderam bem a todos eles. “O soro antiofídico é específico para cada tipo de veneno, enquanto as substâncias desenvolvidas sinteticamente demostraram uma ação polivalente, atuando através da inibição da enzima fosfolipase A-II, que se encontra presente nesses diferentes venenos”, diz Paulo Costa.

Diferentemente do soro, o produto sintético é estável, não precisa ser conservado em geladeira e também tem menos chance de provocar reações alérgicas. “O soro é uma mistura de macromoléculas que é substituído por uma única molécula, o que diminui a possibilidade de efeitos colaterais”, compara o farmacêutico Alcides Monteiro da Silva, do LQB.

O próximo passo da pesquisa é realizar experiências com animais de maior porte, como coelhos e cachorros, e fazer um estudo toxicológico. Caso esse estudo ratifique os resultados obtidos com camundongos, a síntese da substância deverá ser realizada em maior escala para viabilizar estudos pré-clínicos. Os pesquisadores entendem que a participação de laboratórios oficiais e da iniciativa privada seria indispensável para transformar a nova substância em um medicamento. 

 

Liza Albuquerque
Ciência Hoje/RJ

 

 

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