Livros sobre arquitetos quase sempre são de dois tipos. Em geral, o conteúdo é selecionado pelo próprio arquiteto, agregando textos de críticos simpáticos, que enriquecem, mas raramente problematizam sua obra; podendo ocorrer postumamente, mas ainda sob o constrangimento da sombra do mestre. No polo oposto, estariam os estudos independentes, de um ou vários autores, em implícita homenagem ao arquiteto, mas sem solicitar seu imprimatur.
No primeiro caso, a abordagem vai da visualização panorâmica ao catálogo raisonée, informativo e pouco crítico, podendo servir de base para outros estudos. No segundo caso, a seleção de obras do arquiteto homenageado é oportuna e definida não em si mesma, mas corroborando o pensamento dos autores.
Este livro de Leandro Medrano e Luiz Recamán situa-se em algum ponto intermediário entre os solipsismos dos arquitetos-autores e os dos críticos-autores. Nem é catálogo, nem almeja definir um campo crítico radicalmente independente. Parece aspirar à construção de uma exegese: Medrano e Recamán buscam, de maneira erudita e concertada, atingir a compreensão do sentido justo da obra de Vilanova Artigas. Confiam que ela já estaria ali, presente e congelada nas formas-construção e nas formas-texto criadas por Artigas; e parecem crer que ela se revela ao toque de seu condão hermenêutico, superando interpretações anteriores que reputam inadequadas.
Se não, vejamos. O livro começa com uma afirmação enigmática: “alguns acordos mais ou menos consolidados a respeito da obra e do legado de Vilanova Artigas têm importantes decorrências para a discussão atual sobre arquitetura e cidade no Brasil”.
Estranhamente, os autores não esclarecem quais são esses acordos, ou por quem foram acordados. Mas entende-se que pretendem escoimá-los de seus enganos; que seriam, segundo eles, de dois tipos. Um seria o erro “pragmático”, que toma a obra de Artigas pelo que ela é: simples arquiteturas, passíveis de serem atualizadas e reaproveitadas contemporaneamente em suas partes, formas e invenções, em colagens fragmentárias; cujo pecado, segundo eles, seria o de “esvair” da obra de Artigas os sentidos sociopolíticos que teriam animado sua concepção. Outro seria o erro “idealista”, que peca por nada propor de concreto, valorizando na obra de Artigas apenas seu viés utópico revolucionário.
Após apontar os supostos enganos dos adversários inominados e consensuais, Medrano e Recamán propõem refutá-los por uma linha de ação aparentemente promissora. Voltam às obras, especialmente às casas, considerando-as não como protótipos, mas como “laboratórios”; e propõem leituras mixando vieses arquitetônicos e sociais. Entretanto, o desejável ponto de equilíbrio das leituras, que se alternam entre os domínios distintos e peculiares da arquitetura, e das suas supostas explicações causais sociais, quase nunca se estabiliza. Algumas vezes o esforço é sugestivo; em outras, não convence; ou ao menos assim me pareceu.
Isso não significa que as leituras arquitetônicas das obras de Artigas, propostas pelos autores, não sejam inteligentes e instigantes. Em alguns momentos, são até mesmo brilhantes e iluminadoras. Apenas que, a meu ver, as extrapolações que se obrigam a fazer, a cada passo, para sinteticamente dar conta, no mesmo parágrafo, das complexidades da realidade social enquanto presumida causa eficiente das complexidades da forma arquitetônica, resvalam frequentemente para o esquematismo. Já as leituras das obras em si mesmas, na sua essencialidade arquitetônica, revelam argumentos bem mais amadurecidos, consistentes e convincentes, que de fato contribuem na compreensão de alguns aspectos da obra densa, complexa – e, por que não dizer, contraditória – de Vilanova Artigas.
Assimetria de discursos
Apenas um exemplo dessa assimetria de discurso. Ao mencionarem a relação de proximidade entre a primeira e a segunda casa de Artigas, os autores lançam uma comparação com Oscar Niemeyer, ampliam para o que consideram ser o “malogro do Copan” (sic), presumem que tal malogro seja fruto de uma mudança de eixo da arquitetura brasileira, e extrapolam escalarmente ao compararem tais mudanças arquitetônicas às mudanças nas relações mútuas entre Estado e capital industrial privado. Tudo bem: nós, paulistas, costumamos pensar que só assim, com extrapolações vagas e grandiosas, é que podemos compreender a arquitetura. Mas será mesmo?
Felizmente, na frase seguinte, o tema é a transparência e a luz: o assunto volta aos seus trilhos disciplinares, onde está realmente à vontade, prosseguindo legível e legítimo. Preservei minha sanidade suprimindo mentalmente os trechos nos quais o discurso social engajado é forçado a entrar no assunto, a pé ou de cabeça. Mas só me dei conta desse mecanismo de defesa ao preparar a resenha. E, a bem da verdade, apreciei bastante fazer uma leitura nada cartesiana e fora da ordem das razões dos autores.
Nos três primeiros capítulos do livro, as casas de Artigas são o mote, e com elas os autores propõem interpretações distintas sobre a síntese albertiana da casa-cidade, indo da condição adjetiva à espacial, das unidades aos blocos. No quarto capítulo, o sentido se inverte: a cidade é o tema e a casa resulta em moradia compacta e coletiva. Nele, examina-se o projeto de Artigas para o concurso de Brasília (1957), um dos precedentes notáveis do conjunto habitacional de Cumbica (com F. Penteado e P. M. Rocha, 1967).
Finalmente há um posfácio, que não trata de Artigas, mas de algumas obras da arquitetura contemporânea paulista. Ali o círculo se fecha e entende-se que o livro nasceu pelo fim: que, se examina a obra passada de Artigas, é por ela ser necessária para compreender a condição de perseverança da modernidade clássica brasileira e paulista, saltando de meados do século 20 ao novo milênio. Mas seria interessante notar que os “simulacros de pureza” (subtítulo do posfácio) não são apanágio exclusivo dos jovens arquitetos paulistas. Ocorrem em obras recentes de todo o planeta, em lugares que jamais ouviram falar de Artigas…
Apreciei o fato de os autores se posicionarem criticamente em face do mito recente (e rigorosamente insustentável) da existência de uma “arquitetura paulista” genérica, unitária e sem data de validade, vinculando de maneira inconsútil Artigas, Paulo Mendes da Rocha e um coletivo de arquitetos contemporâneos. O livro e seu posfácio ajudam a parcialmente desmontar essa simplificação historiográfica, tomando o viés do “social” para contestá-la. Com isso, propõe uma leitura muito interessante e polêmica, que colabora para o amadurecimento dos debates paulistas e brasileiros sobre a arquitetura contemporânea.
É muito bom; mas ainda é pouco. Em arquitetura, as filiações visuais são inevitáveis: os liames entre obras nunca são apenas conceituais, raramente são apenas sociais, mas sempre são, e serão, predominantemente formais. É pena que esse fato ainda pareça incomodar os colegas paulistas. O amadurecimento dos debates apenas começa.
Leandro Medrano e Luiz Recamán
Campinas, Editora Unicamp, 160 p., R$ 34
Ruth Verde Zein
Pofessora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP)
Autora de livros como Brasil: Arquiteturas após 1950, junto com Maria Alice J. Bastos, (Perspectiva, 2010) e Brutalist Connections – A refreshed approach to debates & buildings (Altamira editorial, 2014)
Texto originalmente publicado no sobreCultura 18 (jan/fev 2015).