A inundação ocorrida recentemente no leito do rio Madeira foi provocada por um evento meteorológico extremo, com uma vazão que se estimava que acontecesse apenas uma vez a cada 100 anos. Nos últimos tempos, aliás, eventos climáticos extremos, dos mais variados tipos, têm ocorrido em diferentes partes do mundo, sugerindo indícios evidentes de mudanças climáticas – embora não se possa demonstrar que qualquer evento específico seja uma decorrência de tais mudanças.
Com o agravamento do aquecimento global, a previsão é que inevitavelmente tenhamos um número cada vez maior de eventos climáticos extremos pelo mundo afora.
Alguns dos impactos da inundação do rio Madeira foram agravados pelas usinas hidrelétricas instaladas ao longo de seu curso, embora, é evidente, essas barragens não possam ser responsabilizadas sozinhas por todos os estragos.
No caso da usina hidrelétrica de Santo Antônio, é provável que ela tenha agravado a erosão da orla de Porto Velho, cujo centro está a apenas 7 km abaixo da barragem. A canalização da água pelo vertedouro alterou a correnteza a jusante da barragem, lançando mais água contra as áreas da cidade que ficam próximas do rio.
Por água abaixo
Isso se evidenciou na estação chuvosa de 2011-2012, a primeira após o fechamento da barragem, quando a capital de Rondônia foi surpreendida por uma erosão súbita. Cerca de 300 casas localizadas à beira do rio foram destruídas ou ficaram condenadas, e até o monumento fincado no local pelo Marechal Rondon um século atrás foi por água abaixo.
Porta-vozes da empresa alegaram que tudo não passava de um fenômeno natural de “terras caídas”. Mas, levando-se em conta a coincidência do fenômeno com a implantação da barragem, muito possivelmente essas alegações não devem ter convencido muita gente além dos próprios funcionários da empresa.
A força dessa água na superenchente que castigou a região em 2014 seria aumentada por concentrar justamente na queda da barragem toda a força da vazão recorde. O reservatório de Santo Antônio, com 117 km de comprimento, inunda não só a cachoeira de Santo Antônio, mas também a cachoeira maior, de Teotônio, e várias outras, menores, no percurso do Madeira.
No rio natural, a energia cinética da queda da água era liberada aos poucos, ao longo de todo o trajeto. Mas, com a barragem, ela se concentra em uma única queda, de grande dimensão, logo acima de Porto Velho. Portanto, a velocidade da água e o seu poder erosivo são maiores justamente ali.
A inundação de vários trechos da rodovia BR-364 que beiram os lagos formados pelas usinas de Santo Antônio e Jirau também deve ter sido agravada por causa das barragens. A cheia recorde teria causado enchente também recorde mesmo na ausência das barragens. Mas, com elas, a cheia é ainda maior na margem dos reservatórios, uma vez que o aumento tem início a partir de um nível mais alto. Se os níveis dos reservatórios tivessem sido rebaixados ao máximo para aproximar o rio de seu leito natural, a inundação lateral teria sido menor.
Impacto internacional
No caso da usina de Jirau, situada a cerca de 120 km de Porto Velho, poderia haver uma contribuição à atual inundação na Bolívia no trecho do rio Madeira acima do distrito de Abunã, em Rondônia. As afirmações de que a barragem de Jirau não teria qualquer efeito sobre as inundações no país vizinho, repetidas diversas vezes pelos proponentes das barragens no Estudo e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), e em documentos elaborados posteriormente, foram contestadas em detalhe por mim em trabalho publicado em 2013 na revista Water Alternatives (uma versão desse texto em português está disponível aqui).
O problema é que os sedimentos mais grossos, como areia, tendem a migrar para o fundo do reservatório logo no seu início, onde a água entra no lago rio acima. Os sedimentos acumulados funcionam como uma espécie de segunda barragem, represando a água no trecho do rio que está acima do que é oficialmente considerado ‘reservatório’. Isso forma o chamado ‘remanso superior’, onde o nível da água é mais alto do que no rio natural.
Por ocasião de uma enchente, como a que acaba de acontecer, isso se traduz em mais inundação e estragos, inclusive em uma área protegida na margem boliviana desse trecho. O rio Madeira tem uma das maiores cargas de sedimentos do mundo, e o ‘reservatório’ oficial de Jirau termina exatamente na divisa do Brasil com a Bolívia, fornecendo, assim, todos os elementos necessários para um impacto internacional.
Philip M. Fearnside
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
Texto originalmente publicado na CH 314 (maio de 2014). Clique aqui para acessar uma versão resumida da revista.