À exceção de gêmeos univitelinos, cada ser humano é geneticamente diferente e único. Portanto, quando se investiga em detalhe uma amostra biológica com DNA (como sangue, sêmen, saliva, cabelo, osso, dente), a revelação que se tem é de que ela pertence a um indivíduo específico.
O princípio básico dessa análise é que, nas populações humanas, as pessoas apresentam em um local qualquer do genoma (conhecido como locus genético; loci, no plural) fatores genéticos distintos (que daqui em diante chamarei de ‘polimorfismos genéticos’). Esses fatores existem em razão simplesmente da variabilidade genética normal, e determinadas regiões do DNA dessas pessoas são diferentes.
Quando estudados em número adequado, tais polimorfismos podem diferenciar amostras biológicas de dois indivíduos quaisquer. É importante mencionar aqui que os polimorfismos genéticos investigados atualmente na prática forense não revelam quaisquer características físicas da amostra analisada, à exceção do sexo do indivíduo (masculino ou feminino). Vale lembrar, porém, que às vezes o polimorfismo pode estar presente em trechos codificantes, a exemplo de genes para certas enzimas.
O genoma humano apresenta diferentes classes de polimorfismos genéticos. Um deles, usado rotineiramente na prática forense, é o STR (do inglês short tandem repeat). São blocos de 2 a 6 nucleotídeos que se repetem centenas de vezes consecutivamente (um atrás do outro), podendo diferenciar dois indivíduos quaisquer pelo número dessas repetições na pessoa analisada.
Outro exemplo de polimorfismo – conhecido como SNPs (do inglês single nucleotide polymorphisms) – decorre da mudança de uma única letra (nucleotídeo) do DNA em um ponto específico. Muitos SNPs hoje investigados pela comunidade científica podem estar relacionados com características físicas humanas normais ou patológicas.
Com o avanço no conhecimento de dados genéticos funcionais (estudo do efeito de polimorfismos específicos com características humanas diversas), é possível, com certa probabilidade, indicar se a amostra analisada possui algum traço específico, como se fosse um ‘retrato molecular’ (por analogia com a conhecida expressão ‘retrato falado’). Embora a acurácia ainda seja baixa para o uso na prática criminal, o futuro reserva grandes possibilidades de emprego dessa tecnologia no âmbito da justiça.
Predição de traços complexos
Acredita-se que, de nossas características visíveis externamente (além do sexo), os traços de pigmentação, particularmente cor dos olhos e cabelos, sejam os mais promissores para a predição de fenótipos com uso do DNA. Algumas aplicações a esse respeito já foram publicadas na literatura científica especializada.
Em um trabalho de minha autoria, mais de 120 SNPs foram pesquisados em sequências genéticas tornadas públicas na internet graças à ação voluntária de pessoas de todo o mundo que doaram seu material genético para pesquisas, inclusive cientistas renomados, como James Watson e Craig Venter.
Esse estudo estimou traços físicos como cor de pele, olhos, cabelos e presença ou ausência de sardas, com base apenas na análise do DNA daquelas pessoas. A estimativa foi posteriormente comparada com os traços físicos reais das pessoas, observando-se suas fotos, também disponibilizadas na internet.
Outro estudo nessa linha descreveu um protocolo de análise simultânea de apenas 24 polimorfismos relacionados com cor dos olhos e cabelos. O trabalho atribuiu valores preditivos para cada um dos 24 locais genéticos analisados. O interessante é que os autores disponibilizam uma tabela no Microsoft Excel, na qual se pode inserir o perfil genético da amostra biológica para os 24 polimorfismos, que permite gerar então um output, indicando qual a mais provável característica de pigmentação de olhos e cabelos da amostra desconhecida (tecnologia denominada HIrisPlex por seus idealizadores).
Após a publicação desses estudos, a expectativa de predizer traços complexos como pigmentação dos olhos e cabelos por meio da análise do DNA está sem dúvida se tornando cada vez mais real.
Ética
Um fato sobre a predição de características físicas que merece ser mencionado diz respeito ao debate ético que o tema suscita. Essas informações, além de serem consideradas por pesquisadores da área forense, têm sido discutidas em congressos científicos e também com a comunidade em geral.
O principal argumento em favor da ‘fenotipagem forense pelo DNA’ é que a pigmentação da pele, dos olhos e cabelos (por exemplo) não necessitaria de confidencialidade, uma vez que são fenótipos óbvios, características observáveis por qualquer um. Em outras palavras, o DNA não revelaria nada que alguém já não soubesse. Exemplo de fenótipo não visível externamente é o grupo sanguíneo de um indivíduo ou se este tem predisposição para alguma doença genética específica.
Além disso, essa tecnologia (que inclui principalmente o uso de SNPs) seria útil apenas como fator de investigação e como poderosa ferramenta de inteligência. Não é necessário empregar essa tecnologia quando a análise convencional por STRs for suficiente para elucidar um crime.
O principal argumento contra essa tecnologia é que pode ser usada para práticas eugênicas por pessoas ou empresas inescrupulosas, a exemplo da seleção de zigotos com predisposição para traços genéticos que os pais desejam nos futuros filhos, relacionados com inteligência, aptidão física, pigmentação, presença ou ausência de doenças, para posterior implantação no útero materno. Enfim, várias características normais ou patológicas podem estar relacionadas com os diversos SNPs espalhados pelo genoma.
É importante salientar que a tecnologia de ‘fenotipagem forense pelo DNA’ está em fase de pesquisa e na prática ainda não é utilizada na maioria dos países. No Brasil, a Lei 12.654, de 28 de maio de 2012, diz que “as informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero […]”.
Portanto, a tecnologia de predizer fenótipos por meio da análise do DNA, apesar de promissora, não poderá ser utilizada sem uma regulamentação devida e sem que se tenha antes alta confiabilidade na predição.
Convém destacar, por fim, que muitos obstáculos técnicos estão sendo superados para que a predição fenotípica para uso forense seja um fato, e que os aspectos éticos e legais relacionados com o tema sempre sejam discutidos e avaliados por fóruns especializados e pela sociedade civil.
Caio Cesar Silva de Cerqueira
Faculdade de Medicina
Universidade Federal do Rio Grande/ RS