O estilo de jogo e as celebrações dos torcedores são publicamente reconhecidos no Brasil como traços nacionais. Em um plano, temos o tão celebrado ‘futebol-arte’ glorificado como a forma genuína de nosso suposto estilo de jogo, e o entusiasmo e os diversos modos de torcer como características típicas de ser brasileiro. Mas, no plano organizacional, não enaltecemos determinados aspectos, como a estrutura administrativa – alvo de ataques e denúncias de corrupção –, uma vez que eles falam de algo indesejado da cultura: a política de troca de favores na resolução de obstáculos da vida cotidiana.
Nesse sentido, tais traços – que falam do lado mais perverso e indesejado do ‘jeitinho’ brasileiro – não são exaltados como representativos do Brasil que idealizamos. Como avaliar então a atual relação do brasileiro com a seleção de seu país?
Lembremos de um acontecimento que ocorreu no ano 2000, fim de um século/milênio e início de outro. Pouco antes da publicação de A invenção do país do futebol, primeiro livro do meu grupo de pesquisa ‘Esporte e Cultura’, o antropólogo Hugo Lovisolo, coautor da referida obra, ao ser perguntado pelo repórter Pedro Gueiros, de O Globo (01/10/2000), sobre os impactos da derrota do futebol brasileiro nas Olimpíadas, respondeu diretamente: “Nenhum. O orgulho nacional não sofre mais com as derrotas. Há uma diversificação de interesses em outras modalidades de esporte e lazer, o futebol já não tem tanto peso”. E concluiu: “a pátria calça chuteiras cada vez menores”, em alusão a uma famosa imagem brasileira, a ‘pátria de chuteiras’, cunhada pelo dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues para expressar a relação entre identidade nacional e seleção de futebol.
Mais do que a sentença proferida pelo meu amigo e companheiro de trabalho, o que mais me surpreendeu foi o que o editor fez no processo de edição da entrevista. A manchete da matéria, publicada no dia seguinte, estampava a frase do antropólogo: “A pátria calça chuteiras cada vez menores”. Seria possível essa manchete algumas décadas antes?
Certo radicalismo à parte, a frase expressava um sentimento que começava a se divisar naquele fim de século. De fato, se compararmos a situação atual com a carga emocional expressa na derrota da copa de 1950 ou na conquista do tricampeonato em 1970, podemos mesmo especular sobre o fato de estarmos assistindo a um declínio do interesse pelo futebol, ou melhor, pela seleção brasileira. Hoje, ao contrário de décadas atrás, seria lícito perguntar, afinal, se o Brasil está deixando de ser o país do futebol.
Ainda país do futebol?
Repetido diversas vezes e vendido para o exterior como uma das imagens que melhor retrata o nosso país, o epíteto ‘Brasil: país do futebol’ merece uma investigação mais cuidadosa. Ele contém uma expressiva força simbólica que contribuiu para a construção da nossa identidade. Internamente o utilizamos, quase sempre, com um viés positivo, como uma maneira de nos sentirmos membros de uma nação singular, mais alegre – mesmo diante de evidências que nos levam a especular ser essa singularidade mais global do que se imagina, e ainda diante da diminuição do impacto que as vitórias e as derrotas da nossa seleção vêm trazendo para a sociedade.
Observemos, no entanto, que esse epíteto é utilizado às vezes como algo negativo, querendo significar que este não é um país sério, que tudo acaba em samba e futebol. Mas vou me ater aqui a seu uso de forma positiva, já que ele seria o mais frequente.
Nesse sentido, soaria até heresia perguntar: somos mesmo o país do futebol? Certamente os meios de comunicação de massa dedicam ao futebol um espaço considerável. É um dos assuntos mais discutidos nas segundas-feiras após partidas importantes do campeonato brasileiro. E o que dizer de nosso envolvimento em época de copas do mundo? Uma intensa manifestação coletiva, sem dúvida.
Mas é certo também que isso ocorre em outras nações. A Itália e a Argentina também não seriam ‘países do futebol’? O comportamento da mídia, dos aficionados e da população de uma forma geral não seria semelhante ao que ocorre no Brasil? A mobilização de uma nação por meio do esporte não é exclusividade brasileira.
Nos Estados Unidos, por exemplo, país que se orgulha de seu sistema político, econômico e educacional, presenciamos a difusão de três modalidades esportivas: o basquete, o futebol americano e o beisebol (sem contar com o hóquei no gelo, muito difundido no norte da sua costa leste). A televisão e os jornais americanos dedicam um espaço enorme aos eventos esportivos. Nem por isso os norte-americanos se referem a si mesmos como o país do beisebol, do basquete ou do futebol americano.
Essas evidências nos levam a concluir que a ideia do ‘país do futebol’ foi uma ‘construção’ histórica que teve um papel importante na formação da nossa identidade. Não negamos a sua força nem sua eficácia simbólica, mas começamos a questionar o papel dessa representação na virada do século, bem como a atual intensidade de seu impacto no cotidiano brasileiro.
Se a paixão pelo futebol é um fenômeno que ocorre em diversos países do mundo, o que nos diferencia seria a forma como nos utilizamos dele para construirmos nossa identidade e conquistas em competições internacionais. Observemos, no entanto, que ser um aficionado não significa necessariamente se valer do futebol como metáfora do país.
Muitas celebrações não transcendem o universo esportivo: elas fazem parte do espetáculo e do cotidiano dos que acompanham o futebol. Atualmente, em época de Copa do Mundo, por exemplo, temos a nítida sensação de que aqueles que acompanham o futebol no dia a dia encaram a competição como um expressivo evento esportivo, certamente emocionante e de qualidade superior devido ao alto nível técnico dos jogadores que compõem as seleções, mas não fazem da seleção a ‘pátria de chuteiras’. Hoje observamos que muitos torcedores preferem ver o seu time ser campeão brasileiro ou da Taça Libertadores do que a seleção ganhar uma Copa do Mundo.
Ronaldo Helal
Faculdade de Comunicação Social
Programa de Pós-graduação em Comunicação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro