Considerando a presente escassez de recursos para a pesquisa científica no Brasil e no mundo, os 32 milhões de dólares gastos na produção do filme Mente criminosa teriam sido bem mais úteis se tivessem sido doados integralmente para agências de fomento científico. Ou para cursos voltados à educação em ciências de diretores e produtores de cinema.

A premissa do filme é simples, ou melhor, simplória. Bill Pope, personagem interpretado por Ryan Reynolds, é um agente da CIA – a conhecida agência de inteligência dos Estados Unidos – que é morto durante uma missão na qual persegue perigosos vilões comandados por um líder anarquista. Este tenta misturar a ideologia com seu desejo íntimo de dominar o mundo, atitude no mínimo incoerente, mas em perfeito compasso com os demais personagens, igualmente confusos e perdidos.

O agente é assassinado antes de seu debriefing – relato dos pormenores de sua missão –, o que frustra sobremaneira o seu chefe, Quaker Wells, vivido por Gary Oldman, que parece sofrer de mau humor crônico. Isso reflete, provavelmente, o desconforto de Oldman por ter aceitado esse papel.

Quaker recorre ao doutor Franks, um neurologista genial – porém, incompreendido –, por causa de seu sucesso em transferir memórias entre ratos. Na trama, a missão do médico é a de transferir as memórias de Bill Pope, o agente morto, para Jericho Stewart, interpretado por Kevin Costner, como se este fosse, mal comparando, um HD externo.

Na tela, Jericho revela-se, intencionalmente ou não, como um mosaico de personalidades famosas de filmes passados – o genial e carismático Hannibal Lecter do Silêncio dos inocentes, o sorumbático Rambo, ou o Arnold Shwarzenegger do Exterminador do futuro. Ocorre que Jericho é mais limitado, pois sofre da síndrome do lobo frontal (SLF) ou síndrome disexecutiva, e se encontrava preso por incontáveis crimes.

De acordo com a literatura médica, o comportamento de pessoas com SLF pode ser descrito por vários predicados: elas são violentas, comem compulsivamente, não têm empatia alguma com o próximo, são impulsivas e, por vezes, infantis. Se, nesses pacientes (ou impacientes, como no caso de Jericho), a área de Broca (região cerebral envolvida no reconhecimento da linguagem e da fala) é afetada, eles podem exibir também a afasia de Broca, caracterizada por entonação vocal prejudicada, fala lenta e com muitas pausas e dificuldade em encontrar as palavras corretas.

Talvez por tudo isso os produtores tenham selecionado Kevin Costner para o papel. No entanto, do ponto de vista da trama, é difícil imaginar por que a CIA teria escolhido uma pessoa com tantas dificuldades de comunicação para servir de porta-voz do agente assassinado. Na verdade, para dar mais credibilidade ao seu personagem afásico, Jericho emitia periodicamente gritos e grunhidos causados pelo somatório de todos os seus impedimentos – o que deve ter facilitado bem a tarefa dos roteiristas.

Em resumo, longe de ser inteligente e magnético, Jericho se comporta como um desajeitado troglodita, que, entre sopapos e pescoções, vai tentando entender o que está se passando com sua mente. Ele e os espectadores.

Há também outro personagem, Jan Stroop, apelidado de Dutchman, interpretado por Michael Pitt e que desempenha o papel do inevitável gênio da informática. Como um novo gênero de super-herói do mal, Dutchman tem em mãos a chave para controlar todo tipo de comando eletrônico e, consequentemente, o controle de programas variados, inclusive aqueles de alta segurança.

Dutchman passa, então, a chantagear o governo norte-americano com suas ameaças de provocar uma guerra atômica. Ele quer 10 milhões de dólares para se comportar – uma quantia até bem modesta diante da cotação atual dos chantagistas que lidam com superpotências e que já elevaram o prêmio ao nível de bilhões.

Apesar de suas habilidades, Dutchman tem uma presença fugaz no filme. De fato, seu papel muito ambíguo frequentemente dificulta o fluxo do enredo. Supõe-se que lá pelas tantas o diretor, ou o editor, optou pela solução mais simples e o eliminou sumariamente, cansado dos inexplicáveis arrependimentos de Dutchman. Este tinha dúvidas sobre sua missão histórica, ou estaria simplesmente com medo da retaliação dos norte-americanos e dos outros vilões presentes em cada esquina.

Em verdade, o mundo secreto e atormentado de Dutchman não importa muito, pois depois de muitas peripécias, Jericho reassume a liderança, revelando de modo inesperado seu lado estrategista, e tropegamente conduz o filme ao seu final. A ascensão de Jericho é mediada por doutor Franks, com quem o afásico estabelece uma improvável amizade tácita.

Em nome dessa ligação, o médico, sem nenhuma explicação científica plausível, torna as memórias de Jericho permanentes. Isso faz com que Jericho, antes um insensível sociopata, ceda de vez à atração que sente pela mulher de Bill Pope e passe então a amá-la irrestritamente.

Não saberemos jamais se a atração pela belíssima Gal Gadot é genuína ou apenas herdada, mas a cena em que Jericho revela seu amor por ela – e pela filha, é claro – atinge as raias do ridículo. Ou do cômico.

Incidentalmente, o elo entre Jericho e Ema, a filha do casal Pope, lembra muito a relação entre o clássico Frankenstein e uma menininha que atravessa seu caminho. Assim, o perigoso detento Jericho atinge a sua redenção por meio das memórias de outro, embora as memórias de um agente da CIA possam ser dúbias.

Ah, sim! Quase esqueci o comentário sobre a transferência de memória pilotada pelo doutor Franks, com direito a células-tronco e jargão desconectado. Os cientistas estão próximos de tal feito? Nem um pouco. Ainda não se conhece muito bem qual o mecanismo da memória e muito menos como esta pode ser transferida de um indivíduo a outro, sobretudo, sabendo-se que o doador, como neste caso, está morto.

A situação oposta é mais realista, isto é, a destruição da memória. Uma das terapias que se revelaram eficazes no tratamento da depressão é a eletroconvulsoterapia (eletrochoque). A despeito de essa terapia apresentar poucos efeitos colaterais, um deles é a indução de uma ligeira amnésia, também conhecida como prejuízo de memórias recentes.

Com base nessas observações, recomendo, fortemente, que aqueles que de fato insistam em assistir ao filme Mente criminosa se submetam à eletroconvulsoterapia logo após a sessão, pois o chamado prejuízo de memórias recentes será, nesse caso, decididamente benéfico.

 

Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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