O javali (Sus scrofa), nativo da Eurásia e da porção noroeste da África, é uma das mais antigas espécies intencionalmente introduzidas pelos humanos no mundo. Hoje esse animal está presente em todos os continentes, exceto na Antártida, o que o coloca entre aqueles com maior distribuição geográfica, incluindo ilhas do Atlântico e do Pacífico. A proximidade dessa espécie com o ser humano facilitou esse processo de dispersão e colonização de novos ambientes.

Os porcos em geral – grupo em que se inclui o javali – foram domesticados há cerca de 10 mil anos simultaneamente em várias localidades da Eurásia. Eram transportados com frequência para novas áreas e criados soltos, propiciando o estabelecimento de populações selvagens nessas novas localidades. Em meados do século 16, o comércio e as grandes viagens pelo mundo fizeram a situação tomar proporções maiores.

Parte do sucesso das populações de javali selvagem introduzidas em outros locais pode ser atribuída à plasticidade ecológica e biológica dessa espécie, capaz de se reproduzir rapidamente e ter grandes ninhadas, dependendo do ambiente e da oferta de recursos.

Hoje, nas Américas do Sul e do Norte e na Austrália, o javali é considerado uma espécie invasora, aquela que, sendo natural de outra área, estabelece sua população em novos locais e pode impactar suas espécies nativas (ver ‘O javali no Brasil’). Embora o animal seja amplamente estudado nesses locais, ainda pouco se sabe sobre sua influência no ambiente e o modo como altera a dinâmica entre as espécies.

 

O javali no Brasil

O javali está presente no Brasil desde os primeiros anos após a chegada dos portugueses. Sua caça foi liberada e regulamentada em janeiro de 2013 por uma Instrução Normativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis que visa ao controle e manejo desses animais, considerados nocivos às espécies silvestres nativas, aos seres humanos, ao meio ambiente, à agricultura, à pecuária e à saúde pública. Essa instrução emergiu dos riscos sanitários – e econômicos – que o javali traz para a produção de carne suína nacional, já que o animal pode ser vetor de doenças para os porcos domésticos, colocando em risco um dos maiores mercados de exportação do país.

A distribuição do javali no território brasileiro já abrange as regiões Sul, sobretudo o Rio Grande do Sul, e Centro-oeste, mais especificamente o Pantanal, onde é chamado de porco-monteiro, além de São Paulo, onde está presente em grande parte do noroeste do estado. Desde 2006, tem sido registrado em uma área considerada insubstituível para conservação da biodiversidade mundial, a serra da Mantiqueira, que se estende pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e onde nossa equipe tem conduzido estudos ecológicos para entender melhor a relação do javali com esse ambiente tão importante.

Vida em bandos

O javali é um ungulado da família Suidae. Indivíduos machos adultos podem pesar de 30 a 190 kg e fêmeas podem pesar de 15 a 110 kg. Podem viver até 12 anos, mas, em locais com forte pressão de caça, esse tempo é reduzido para, no máximo, dois anos. Machos adultos são solitários; os bandos são formados por fêmeas adultas e suas crias jovens, variando entre sete e 20 indivíduos. As fêmeas podem se juntar e formar bandos maiores – há registros de mais de 100 indivíduos em um único bando.

Os javalis podem se misturar com porcos domésticos e, com isso, apresentar variação na coloração dos pelos, de amarelo a marrom. Alimentam­se de plantas (raízes, tubérculos e produtos agrícolas em geral) e de diversas espécies de animais. Alimentos ricos em energia, como pinhões, bolotas (frutos produzidos por árvores da família do carvalho), nozes e algumas raízes e tubérculos, são considerados seus preferidos. A abundância desses alimentos energéticos pode vir a regular a quantidade de fêmeas aptas à reprodução e o tamanho das crias, que, em média, é de dois a quatro filhotes, mas pode chegar a 10, dependendo da disponibilidade desses recursos. Donos da mais alta taxa reprodutiva entre os ungulados, os javalis são capazes de aumentar sua população em até 150% ao ano.

Distribuição exótica (em amarelo) e nativa (em vermelho) do javali no mundo. Os dados do Brasil
foram obtidos no estudo ‘Current distribution of invasive feral pigs in Brazil: economic impacts
and ecological uncertainty’, de Pedrosa e colaboradores (2015)

Esses animais têm grande capacidade de modificação do ambiente, sendo considerados engenheiros de ecossistemas, trabalho executado principalmente por meio de chafurdamento (comportamento que consiste em remexer o solo com o focinho, criando fossos e buracos) e intensificado pela alta densidade populacional da espécie. Em número elevado, os javalis podem causar grandes impactos em diversos ambientes, tanto em comunidades vegetais quanto animais. Esse é um dos motivos que fazem com que o javali figure na lista das 100 piores espécies invasoras no mundo, elaborada pela União Internacional para Conservação da Natureza.

 

Ecossistema impactado

Entender como esse comportamento modificador dos javalis atinge os componentes de certo local é de suma importância para a avaliação de seus efeitos, considerados negativos quando interferem e desequilibram a ecologia das espécies nativas e o ambiente onde o animal foi inserido. A introdução de javalis em novos ambientes pode gerar cinco diferentes tipos de impacto: no solo, em ecossistemas aquáticos, em comunidades de plantas, em comunidades animais e em atividades antrópicas.

Para buscar comida, construir ninhos e se alimentar de raízes, tubérculos, fungos e in­ vertebrados, os javalis reviram e pisoteiam grandes extensões de solo com vegetação. Esse comportamento afeta direta e indiretamente vários elementos e organismos que compõem o solo, já que modifica a estrutura física do hábitat e todos os seus processos, podendo alterar toda a disponibilidade de recursos em determinado local. Esse é o dano mais comumente observado em qualquer local com a presença de javalis.

No entanto, há na literatura científica resultados contrastantes em relação a esses impactos. Por um lado, estudos feitos nos Estados Unidos mostram a degradação de elementos químicos no solo causada pelo chafurdamento; por outro, pesquisas feitas na Argentina concluíram que esse comportamento pode acelerar a ciclagem de nutrientes, ou seja, faz com que alguns nutrientes sejam incorporados mais rapidamente ao solo, além de contribuir com o transporte deles da superfície para extratos mais basais do solo e vice­versa, beneficiando algumas espécies de árvores.

Ao se alimentar diretamente de toda a planta ou apenas de suas partes vegetativas, como frutas, bulbos e tubérculos, os javalis podem impactar a abundância e o número de espécies vegetais. Entretanto, a maior causa de distúrbio na comunidade de plantas é o chafurdamento, que, em áreas de alta densidade de javalis, pode causar redução de 80% a 90% na cobertura vegetal de pequeno porte existente abaixo da camada mais alta das florestas.

Bando de javalis com uma fêmea e 10 filhotes (com coloração diferente dos pelos),
registrado em Itamonte (MG). (foto: Fernando Puertas)

As consequências dessa atividade podem variar em função da comunidade de plantas, mas geralmente o chafurdamento diminui a diversidade, a regeneração e a distribuição das espécies no ambiente, o que pode levar à extinção local de algumas delas.

Os javalis também podem afetar as comunidades nativas de animais, por meio de predação direta, destruição de hábitat e de ninhos e competição por recursos, sendo que a predação parece ser o principal processo. Vários estudos indicam que os javalis se alimentam de uma ampla variedade de vertebrados e invertebrados. Essa situação se agrava pelo fato de que frequentemente os animais predados es­ tão ameaçados de extinção.

Os itens animais presentes na dieta dos javalis em sua forma invasora incluem insetos e suas larvas, caramujos e minhocas, além de anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Aves que fazem seus ninhos no chão são um dos grupos mais afetados pela predação e destruição de ninhos.

O comportamento predatório passa a ser mais severo em ilhas, onde as espécies predadas podem ser mais afetadas devido à restrição de espaço. Nas ilhas havaianas, por exemplo, a predação de ninhos por javalis tem sido associada a declínios populacionais de várias espécies de aves e até a extinção de algumas delas.

Acredita-­se que a predação ocorra mais intensamente no verão, tanto em regiões onde o javali é invasor quanto em áreas de distribuição natural, já que nessa época do ano há escassez de matéria vegetal energética disponível.

Córrego pisoteado por javalis em Itamonte (MG), área em que o animal é espécie invasora. Esse é o dano mais comumente observado em locais com a presença de javalis. (foto: Fernando Puertas)

Em épocas de cheias, é comum os javalis usarem corpos d’água com mais frequência. Alguns pesquisadores descobriram que 45% das planícies de inundação em um parque no Texas (EUA) sofreram danos pelas atividades dos javalis. Os animais provocam assoreamento dos corpos d’água e deterioração da qualidade da água, o que pode ameaçar as mais diversas espécies aquáticas locais, como populações endêmicas de trutas. Esses danos também podem causar explosões populacionais de algas, decaimento do oxigênio na água e mortandade de peixes. No entanto, diversos outros estudos não identificam esse mesmo padrão de efeitos negativos.

Impactos socioeconômicos

A presença do javali como espécie invasora também é capaz de impactar diversas atividades humanas. A produção agropecuária, por exemplo, pode sofrer queda substancial, principalmente quando alimentos ricos em energia estão escassos no meio natural. As populações de javalis podem atacar todo tipo de cultivo e gado em sua fase juvenil. Nesses casos, o impacto financeiro pode ser elevado. Nos Estados Unidos, o dano à agropecuária provocado por javalis é estimado em US$ 800 milhões por ano, po­ dendo um único animal causar prejuízo de US$ 1 mil em uma noite. Na Austrália, o ata­ que de javalis pode gerar perda anual de 20 mil toneladas de cana­de­açúcar por ano.

Além do impacto econômico, as atividades dos javalis podem ter consequências socioculturais, ao devastar cultivos de pequenos produtores que vivem de sua agricultura de subsistência, forçando­os a abandonar a vida rural devido à falta de alimento. Exemplo disso ocorre na região de Itamonte (MG) e arredores, onde javalis têm atacado várias pequenas culturas, causando prejuízo aos produtores, que, consequentemente, têm se deslocado para as cidades.

Os javalis podem ainda representar um grande risco para a saúde e o bem-estar dos seres humanos, de animais criados para produção de alimentos e até da vida selvagem. Javalis são suscetíveis a uma grande variedade de doenças, podendo carregar pelo menos 30 importantes vírus e bactérias patógenas, o que pode resultar em elevado prejuízo financeiro associado à mortalidade dos rebanhos e ao controle e à erradicação das doenças.

Efeitos positivos

Embora a maioria dos estudos mostrem impactos negativos dos javalis em sua forma invasora, a atividade desses animais também é relacionada a efeitos positivos.

Em alguns casos, os javalis podem servir como presa para predadores nativos, como pumas, linces e dingos (cão selvagem australiano). Podem também estabelecer uma relação simbiótica (mutuamente vantajosa) de limpeza e alimentação com alguns corvídeos, como o gaio­dos­arbustos e o corvo­comum, que foram observados consumindo parasitas de javalis.

Em vários locais, os javalis são apreciados por sua carne e por seu valor recreativo como espécie de caça, gerando recursos derivados desse tipo de exploração. Países como Estados Unidos e Austrália, por exemplo, obtêm renda de milhões de dólares com a caça do javali.

Prejuízo ecológico ou econômico?

É sabido que o javali preda inúmeras espécies de animais e vegetais. No entanto, não se sabe qual a extensão do impacto dessa predação sobre as comunidades afetadas, nem se associa diretamente a magnitude dos danos com a população de javalis que aparentemente os está causando. Por isso, são necessários estudos com uma abordagem integrada, que considere fatores demográficos e interações ecológicas, para avaliar o possível impacto do javali não em uma só espécie, mas em todo o ecossistema.

A maioria dos estudos existentes sobre a introdução de javalis em novos ambientes relata efeitos comprovados estatisticamente e, em geral, apenas os negativos são publicados, talvez por serem mais impactantes. Muitas pesqusias que mostram ‘efeitos nulos’ podem não ter sido divulgadas, e elas ajudariam a compreender melhor a capacidade de interação do javali em diferentes ecossistemas. Em outras palavras, pode ser que o dano ambiental não ocorra em tantos locais como é reportado e que falte divulgar áreas onde esse invasor não causa problemas.

Por fim, pode ser que o javali provoque mais prejuízos econômicos, por meio da interferência em atividades antrópicas, do que danos em ambientes naturais. Para esclarecer essa questão, é preciso realizar mais estudos que aliem aspectos sociais e ecológicos e permitam avaliar o real impacto do javali como espécie invasora.

Sugestões para leitura

FERNANDEZ, F.; ARAUJO, B. Se for exótica “atire primeiro e pergunte depois”, diz Simberloff. 2014. Clique para ler.

SALVADOR, C.H. Loucos e porcos depois de quase meio século sem caça. 2014. Clique para ler.

SALVADOR, C.H. Ecologia e manejo de javali (Sus scrofa L.) na América do Sul. Tese de doutorado. p.152. Programa de Pós-graduação em Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Vídeo

Quanto um javali anda na sua propriedade? Clique para assistir.

Fernando Puertas
Marcelo Passamani

Laboratório de Ecologia e Conservação de Mamíferos,
Universidade Federal de Lavras

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