Gregory Berns é um dos maiores especialistas da atualidade em cognição canina. Em parte, esse reconhecimento se deve a um experimento que ganhou a mídia mundial: cães quietinhos, sem sedação, dentro de um aparelho de ressonância magnética – equipamento, por sinal, bem baru- lhento. Foram dois anos de treinamento para ensinar os cachorros a deitar e usar protetores de ouvidos, mas os resultados valeram os esforços: as imagens revelaram quão similares são regiões do cérebro canino com as do nosso.

Autor do clássico Como os cães nos amam – um neurocientista e seu cão adotado decifram a mente canina (ainda não publicado em português), Berns – com formação em física, engenharia biomédica e medicina – é professor catedrático de neuroeconomia da Universidade Emory (EUA) e diretor de centros de pesquisa em neurociências naquela instituição. Nesta entrevista, ele fala sobre temas como amor, afeição, culpa, passagem do tempo e pessoalidade.

Em 1974, o filósofo norte-americano Thomas Nagel escre- veu que seria impossível dizer como é ser um morcego. Mais de quatro décadas depois, com base no conhecimen- to acumulado desde então pela pesquisa com cães, daria para dizer como é ser como um cão, como esses animais veem e sentem o mundo?

O ensaio de Nagel era basicamente uma reação contra a ideia de que experiências mentais poderiam ser reduzidas a fenômenos físicos no cérebro. Ele achava que não importaria o quanto aprendêssemos sobre o cérebro, pois isso nunca explicaria a experiência de, digamos, [ver] a cor vermelha ou de dizer o que um morcego ou um cão sentem. Acho que o ensaio impediu o progresso na área de cognição comparativa, porque desencorajou pesquisadores a fazerem as perguntas mais difíceis.

Ao realizar procedimentos invasivos nos animais, é mais fácil justificar [essa intervenção] quando você descarta a possibilidade de que o animal deva ter experiências similares à sua. De todo modo, o caso do morcego foi um exemplo tolo. Hoje, é comum para as pessoas vestirem roupas com asas e se lançarem do alto de montanhas, voando de modo muito semelhante a um morcego. E, em um caso extremo como o da ecolocalização, as pessoas, nesse sentido, têm habilidades rudimentares: podemos dizer se estamos ou não em um ambiente pequeno ou em um auditório, apenas com base no modo como o som se propaga nesses locais.

Então, acho que estamos muito mais perto de saber como é ser um morcego ou um cão. Entendendo como os cérebros desses animais processam diferentes tipos de estímulos sensoriais, aprendemos muito sobre o que eles percebem e, ao longo desse processo, com o que se parecem suas experiências subjetivas. Em realidade, encontramos muito mais similaridades conosco do que diferenças. Por exemplo, descobrimos que cães, como os primatas, têm uma região do cérebro dedicada a processar imagens de faces.

Alguns biólogos defendem que “o comportamento em animais é fato; a emoção inferida é crença”. No entanto, o senhor escreveu um livro, sucesso de vendas, cujo título é Como os cães nos amam. Afinal, animais têm emoção?

O mesmo pode ser dito em relação aos humanos: como você pode saber o que outra pessoa sente? A não ser pelo comportamento, o único modo de sabermos isso é perguntando a ela. A linguagem nos dá uma capacidade única para a comunicação, mas, quando se trata de emoções, tendemos a usar a linguagem que evoca a sensação física – como nos sentimos.

O neurologista [português] António Damásio tem escrito muito sobre a relação entre emoção e sensação, do mesmo modo o fez [o filósofo norte-americano] William James [1842-1910] há um século. Há amplas evidências de que ratos demonstram expressões faciais idênticas àquelas apresentadas por bebês quando esses animais experimentam algo agradável ou desagradável.

Se aceitarmos que bebês expressam emoções, então precisamos aceitar que animais também as têm. Não acho que a linguagem é necessária para sentir emoção. Meu livro é sobre como ‘driblar’ o problema da linguagem e usar imagens do cérebro para deter- minar o que os cães sentem e pensam. Todos nossos resultados apontam para uma grande similaridade de funções nas estruturas [cerebrais] intimamente associadas a recompensa e motivação.


Gregory Berns estuda a cognição canina.
(foto: Helen Berns)

Diz-se que a memória dos cães é muito mais de natureza olfativa. No entanto, seria possível para um cão, depois de anos de afastamento, lembrar-se de seu dono ou dona apenas com base na visão dele ou dela?

Não acho que saibamos como os cães integram os diferentes sentidos para formar uma representação estável de uma pessoa. Além disso, não acho que a estabilidade das memórias tenha sido estudada em detalhe, como ocorreu com os tipos de memória.

É sabido que humanos e cães mantêm os laços mais fortes entre todas as espécies animais. Recentemente, um artigo trouxe evidência sobre a atividade da oxitocina para essa relação. O senhor acha que apenas um hormônio pode explicar uma relação tão estreita?

Não, nada no cérebro é guiado por apenas uma substância ou um hormônio. Os dados sobre a oxitocina são muito sugestivos, mas há ainda grande debate sobre o significado dela na corrente sanguínea versus a presença dela no cérebro. Além disso, muitos dos efeitos atribuídos à oxitocina em relação a comportamentos como altruísmo e confiança em humanos são pequenos, e o papel desse hormônio ainda é desconhecido. É possível que a ação da oxitocina seja no sentido de diminuir a ansiedade associada a um olhar diretamente para dentro dos olhos.

Acho que a ligação entre cães e humanos foi forjada há dezenas de milhares de anos por meio, principalmente, de uma diminuição na ‘distância de fuga’, ou seja, aquela com que os animais se aproximam dos humanos antes de decidirem fugir. Isso é obviamente um fenômeno complexo e não devido apenas à oxitocina.

Em sua pesquisa com imagens obtidas por ressonância magnética, o senhor descobriu que alguns estímulos (sinais manuais, cheiros etc.) podem ativar o [núcleo] caudado [região cerebral] em cães do mesmo modo que comida, amor e dinheiro o fazem em humanos. Quais são os resultados mais recentes dessa linha de pesquisa que o senhor e seus colegas vêm desenvolvendo nos últimos cinco anos?

Continuamos a focar no como o caudado responde à recompensa. Depois de estudos iniciais, com poucos cães, fomos capazes de expandir o número de animais treinados [para permanecerem imóveis, sem sedação, dentro dos aparelhos de imagem por ressonância magnética]. Até o momento, obtivemos imagens [do cérebro] de quase 80 deles. Com esses números, podemos, agora, responder a questões sobre diferenças individuais.

Por exemplo, em um dos estudos, fizemos uma variação do experimento envolvendo os sinais com a mão, comparando a resposta do caudado quando o cão recebia esses sinais de seu dono, de um estranho ou de um computador. Alguns cães mostraram uma resposta do caudado apenas quando os sinalizadores eram seus donos, enquanto outros também apresentaram resposta a um estranho ou um computador.

Do ponto de vista do conteúdo de informação, todos os sinais significam a mesma coisa, mas as reações dos cães foram diferentes. Descobrimos que há uma correlação com a personalidade dos animais. Aqueles que tiveram pontuações altas no quesito agressividade tenderam a ter respostas mais fortes do caudado quando os sinais vinham de um estranho ou computador. Cães não agressivos tiveram uma resposta mais forte com seus donos. Achamos que a resposta do caudado indica saliência, ou seja, quão importante o estímulo é naquele instante, e isso, obviamente, depende de cada animal.

No momento, estamos testando a teoria segundo a qual um sinal poderia ser usado para predizer a adequação de um cão para diferentes tipos de tarefa.

Sabemos de cães, como os dois border collies Rico e Betsie, que são capazes de entender centenas ou até mais de mil palavras isoladas. Um cão poderia entender um conjunto delas (por exemplo, ‘bola, acima, esquerda, escura, maior’) e interpretá-las como um comando único?

Não saberia dizer. Treinar para esse tipo de tarefa poderia demandar muito tempo. Nesse caso, imagens cerebrais poderiam dar uma resposta mais rápida, caso pudéssemos montar experimentos com as chamadas violações da sintaxe. Se o cérebro do cão responder a um par [de palavras] sem sentido, por exemplo, isso, então, poderia indicar algum entendimento básico.

Às vezes, quando voltamos para casa, mesmo que tenhamos ficado pouco tempo fora, é comum que nossos cães nos saúdem como se tivéssemos ficado ausentes por um longo período. O que a neurociência pode nos dizer sobre como os cães percebem a passagem do tempo?

A neurociência não é tão boa em estudar a percepção do tempo. O problema é que a maioria das técnicas que empregamos nessa área (ressonância magnética ou eletroencefalograma) apenas capturam mudanças transientes de atividade. Essas ferramentas são muito boas para medir fenômenos em uma escala de segundos a, talvez, minutos, mas, para além disso, não são adequadas.

De modo mais geral, acho que podemos supor que os cães têm múltiplos relógios internos, como os humanos. Ritmos circadianos orientam processos homeostáticos básicos [suor, pulso, temperatura, pressão arterial etc.] em um ciclo de 24 horas, também sincronizados pela luz e escuridão. Cães também teriam consciência da própria fome e da necessidade de esvaziar a bexiga e o intestino.

Acho que a pergunta interessante é essa: por que a excitação dos cães não é diretamente ligada à extensão do tempo que o dono fica fora? Não acho que tenhamos resposta para ela. Podemos especular que deve haver múltiplas razões, cada uma delas de- pendendo do período de tempo em questão e da personalidade do cão – especialmente, do nível de ansiedade dele.

Podemos achar grande quantidade de vídeos na internet nos quais cães, depois de fazer algo considerado errado (morder a sandália do dono ou destruir o sofá, por exemplo), mostram um comportamento que é comumente classificado como ‘culpa’. Os cães sentem culpa?

[A pesquisadora norte-americana especialista em cognição canina] Alexandra Horowitz tem estudado isso, e ela diz que cães não sentem culpa. Em vez disso, eles aprendem a antecipar uma reação negativa do dono. Para sentir culpa, um cão precisaria se lembrar do que ele fez e sentir algum tipo de vergonha interna, independentemente das consequências. Considerando que a culpa não tem um padrão particular de respostas no cérebro humano, duvido que as imagens do cérebro [de cães] ajudariam a resolver essa questão.

Vamos imaginar que um advogado bem estabelecido venha até o senhor e lhe peça evidências relacionadas à cognição dos cães para que ele possa escrever um projeto de lei no qual esses animais ganhariam pessoalidade [ou seja, algo equivalente ao status de pessoa]. O senhor concordaria em dar pessoalidade aos animais? Se sim, que evidências o senhor listaria para esse advogado?

Meu modo de pensar continua evoluindo sobre essa questão importante. Quanto mais estudo o cérebro dos animais, mais similaridades vejo com o dos humanos. Acho que, em breve, chegaremos a um ponto em que iremos considerar não só o sofrimento dos animais, mas também que direitos à existência eles deveriam ter. É suficiente minimizar o sofrimento deles quando os usamos para pesquisa e alimentação?

Quando olhamos os cérebros dos cães e vemos estruturas relacionadas com recompensa e motivação que parecem ser muito similares às nossas, precisamos pensar na possibilidade de que eles gostem de muitas das coisas das quais gostamos. Acho que isso é óbvio. Nossos últimos experimentos estão explorando a intensidade dos laços entre cães e humanos do ponto de vista do cão, do cérebro deles. Então, sim, eu argumentaria a favor de uma expansão dos direitos baseada nesses resultados.

Atualmente, cães são vistos, segundo a lei [nos EUA], como propriedade. Mas, por causa de eles não terem o mesmo senso de certo e errado que os humanos, não faria sentido dar a eles os mesmos direitos que as pessoas têm. Cães têm um tipo de código moral, mas não é igual ao nosso. Uma possível solução seria a criação de uma nova categoria [jurídica]: animal. Animais teriam um conjunto de direitos e privilégios, segundo suas capacidades. A primeira, tal- vez, fosse o direito à vida. Isso é um problema para muitos animais que estão próximos da extinção.

Como um especialista em pesquisa canina, é quase certo que o senhor já tenha visto e estudado praticamente todos os tipos de comportamento em cães. No entanto, qual é aquele que ainda o deixa perplexo como humano e cientista?

Por que os cães perseguem seus rabos. Às vezes, parece como se houvesse uma falta de autorreconhecimento; por vezes, parece que é só diversão. Provavelmente, não vamos conseguir resolver essa questão com imagens cerebrais!

Qual questão o senhor gostaria de ver respondida nos próximos 10 anos sobre cognição canina? E por que é tão difícil respondê-la hoje?

Sou ainda fascinado pela questão da teoria da mente. Cães entendem que humanos ou outros animais têm uma mente? Ou será que eles apenas leem nosso comportamento? De modo similar, cães têm empatia pelas emoções humanas? Essas questões têm sido difíceis de responder, porque os cães são muito bons em ler comportamentos. Eles tendem a olhar para os humanos em busca de orientação em muitos testes.

Estou esperançoso, no entanto, de que essas questões podem ser respondidas não com testes, mas, sim, com base em imagens [por ressonância magnética] que mostrem diferenças de padrões de atividade do cérebro. Já seria um bom começo se pudermos demonstrar a presença [nos cães] dos neurônios-espelho [neurônios da ‘imitação’, só observados até agora em primatas].

Cássio Leite Vieira
Instituto Ciência Hoje/ RJ

Everton Lopes
Especial para Ciência Hoje

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