A partir do momento em que organismos unicelulares evoluíram para formar seres multicelulares, dotados de vários órgãos, surgiu um problema importante de regulação: Quantos e que tipos de células o organismo resultante teria? Como elas seriam controladas?

Humanos e outros animais começam a vida com só uma célula. Mas, rapidamente, os embriões se desenvolvem e, quando adultos, podem conter cerca de 100 trilhões de células, distribuídas entre os órgãos.

Cada órgão contém células especializadas, com papéis fisiológicos diversos. Assim um organismo em harmonia é algo parecido como uma orquestra: os instrumentos, embora diferentes, se unem na execução de sinfonias, concertos etc.

Qualquer desregulação no mecanismo de sinais químicos do ciclo celular pode trazer problemas sérios para um indivíduo

No caso do organismo, é fácil entender que o comportamento de cada célula depende de um programa interno que não só determina o que a célula fará do ponto de vista fisiológico, mas também se ela vai se replicar ou não.

A decisão de se proliferar ou não resulta da ação de muitos componentes – interligados por meio de sinais químicos – que se integram para comandar o ciclo celular. O artigo ‘A patrulha da ordem e progresso da divisão celular’, de Adriana Silva Hemerly (CH n. 268), explica bem esse processo.

Qualquer desregulação no mecanismo de sinais químicos do ciclo celular pode trazer problemas sérios para um indivíduo. Ao proliferar sem controle, as células poderão formar um tumor. Se as células descontroladas (transformadas) se desprenderem do tumor e colonizarem outros órgãos, irão formar as chamadas metástases, podendo comprometer a função do tecido invadido, o que frequentemente leva o indivíduo à morte.

As células de um órgão estão sujeitas a um equilíbrio entre os sinais que estimulam e os que antagonizam a proliferação – estes últimos mantêm as células em estado quiescente. Mas, às vezes, os sistemas envolvidos na regulação antiproliferativa apresentam defeitos (mutações em seus genes) que os inativam.

Quando o organismo não dá conta das mutações, as células ainda dispõem de um último (edesesperado) recurso: a ativação de sinais químicos que as levam àmorte

Na maioria das vezes, as mutações potencialmente perigosas são corrigidas pelos mecanismos de reparo das próprias células. Mas, em alguns casos, as lesões produzidas pelas mutações são de tal monta que o sistema de reparo não dá conta do serviço.

Quando essa crise acontece, as células ainda dispõem de um último (e desesperado) recurso: a ativação de sinais químicos que as levam à morte. A lógica dessa morte programada é simples: é melhor que uma célula morra do que o organismo que a hospeda. Nesse processo, há várias opções de morte. As células podem ser eliminadas por: i) apoptose (destruição geral de seu DNA, de suas organelas etc.); ii) necrose; iii) senescência – esta última, espécie de velhice antecipada.

 

Envelhecimento induzido

O método da pesquisa divulgada na Nature (v. 464, pp. 374-380, 2010) consistiu em alterar sinais químicos envolvidos na regulação do ciclo celular. Usando camundongos como modelos experimentais, descobriu-se uma maneira de controlar o crescimento de tumores por meio de interferência nos mecanismos que promovem a senescência – algo que pode se tornar estratégia importante para a terapia específica de certos tipos de câncer.

Os autores raciocinaram assim: se fosse possível inibir a produção da Skp2, as células tumorais, talvez, antecipassem a crise que deflagraria sua senescência

O artigo de Hui-Kuan Lin e colaboradores descreve resultados bem animadores. Uma das proteínas que normalmente participam da regulação do ciclo celular é a Skp2, que ajuda a degradar outras proteínas que inibem a progressão do ciclo celular. Em função dessa atividade, a proteína Skp2 é considerada mitogênica, ou seja, promotora da proliferação celular.

De fato, sabe-se que, em muitas células tumorais, a Skp2 está presente em concentrações relativamente altas, o que sugere que ela pode estar envolvida na transformação de uma célula saudável em tumoral.

Os autores raciocinaram assim: se fosse possível inibir a produção da Skp2, as células tumorais, talvez, antecipassem a crise que deflagraria sua senescência. Para isso, os pesquisadores usaram camundongos nocautes para a proteína Skp2, ou seja, animais modificados geneticamente para não produzir essa proteína.

A equipe verificou que esses animais eram viáveis e férteis. Mas o mais promissor foi a observação de que, na população de células embrionárias desses animais, havia mais células em senescência do que as normalmente encontradas em animais normais (selvagens).

Outros experimentos relatados na mesma edição mostraram que as células embrionárias dos animais nocautes também eram levadas à senescência quando tratadas para elevar a concentração das proteínas inibidoras da proliferação – as mesmas proteínas que eram destruídas pela Skp2.

A manipulação de sinais químicos envolvidos no ciclo celular é alternativa promissora para o tratamento do câncer

Para complementar os resultados acima, os pesquisadores conduziram experimentos que mostraram que as células de camundongos deficientes em Skp2 restringiam a formação de tumores quando injetadas em camundongos desprovidos de sistema imune, normalmente usados para esse tipo de teste.

De importância para os homens: uma droga que inativa a formação da proteína Skp2 induziu a senescência em células tumorais de câncer de próstata de uma linhagem humana agressiva. A consequência disso foi uma massa tumoral bem menor.

Coletivamente, esses resultados levaram à seguinte conclusão: a manipulação de sinais químicos envolvidos no ciclo celular é alternativa promissora para o tratamento do câncer. O trabalho de Lin e colaboradores também ilustra eloquentemente um caso de pesquisa translacional, isto é, pesquisa básica que transborda para aplicação médica.

 

 

Franklin Rumjanek
I
nstituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

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