Direito integral à saúde é prioridade

A sociedade brasileira espera, há vários anos, que o governo federal saia da inércia e passe a atuar de modo mais efetivo na atenção ao doente mental – e agora, especialmente, ao dependente químico. Uma luz mais forte surgiu no final de 2011, quando o governo anunciou um conjunto de ações para operacionalizar o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, criado em maio de 2010. No entanto, a proposição midiática ainda não se tornou prática assistencial e preventiva.

Para esclarecer esse assunto, é necessário atentar para o que acontece hoje e avaliar o cenário dos problemas psicossociais que o Brasil enfrenta. Partimos do princípio definido pela Lei 10.216, de 2001, que estabelece os três tipos de internação em psiquiatria: a voluntária, involuntária e a compulsória. A primeira se dá quando o paciente concorda com a internação e tem a capacidade de decidir e de compreender a finalidade da internação.

A involuntária é aquela determinada contra a vontade do paciente, mas com o consentimento da família. Cabe ao médico informar ao Ministério Público, no prazo de 72 horas, a justificativa para esse tipo de internação. Já a compulsória é decidida pelo magistrado, após ouvir o parecer do psiquiatra. A justificativa habitual para a forma compulsória é o fato de o paciente representar risco para si ou para a coletividade.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) não prioriza ou prestigia qualquer das formas de internação. O que a entidade defende é a aplicação da Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Ela redireciona o modelo assistencial em saúde mental e determina que é direito de todo cidadão ter acesso ao melhor tratamento, o que pode acontecer no ambulatório, com internação restrita ao dia, à noite ou integral.

Cabe ao psiquiatra fazer a indicação do tratamento, já que esse profissional detém o conhecimento a respeito dos procedimentos mais efetivos para preservar a integridade e a vida da pessoa enferma

A ABP também defende que cabe ao psiquiatra fazer a indicação do tratamento, já que esse profissional detém o conhecimento a respeito dos procedimentos mais efetivos para preservar a integridade e a vida da pessoa enferma. É necessário que a sociedade entenda que as doenças mentais requerem atendimento diferenciado e não podem ser comparadas a outros males ou problemas de saúde mais conhecidos, como infarto do miocárdio, pneumonia, apendicite, insuficiência renal ou fraturas em geral, para citar alguns.

Os médicos indicam o melhor tratamento para o paciente, respaldados por evidências científicas de efetividade das opções terapêuticas. Cabe ressaltar que as questões sociais envolvidas em cada situação clínica devem ser resolvidas por assistentes sociais e as questões jurídicas por profissionais do direito.

O objetivo é garantir condutas clínicas eficazes, contando com os esforços integrados de equipes multidisciplinares. A ação dessas equipes deve estar focada no melhor tratamento dos doentes. São estes que estão em situação de risco e se espera que possam discernir os fatos e decidir pelo que, de fato, julguem ser o melhor. No entanto, diante da eventual incapacidade do paciente, cabe ao médico – juntamente com os familiares responsáveis e, por extensão, com o poder público – garantir a melhor atenção em saúde.

Atualmente, no Brasil, há uma demanda por atendimento psiquiátrico em todos os níveis e a rede especializada existente não é capaz de atender a essa necessidade. Com exceção dos hospitais psiquiátricos, os serviços atuais não têm sido avaliados sistematicamente em termos de eficácia, eficiência e efetividade, o que contribuiria para seu aprimoramento. Além disso, o país perdeu cerca de 90 mil leitos psiquiátricos nos últimos anos. Portanto, o poder público não apenas demonstra um marcado desinteresse em qualificar o atendimento existente, mas também fecha serviços psiquiátricos, demonstrando descaso para com a população carente de atenção em saúde nessa área.

Ilustração de internação
Segundo Antônio Geraldo da Silva, o Brasil perdeu cerca de 90 mil leitos psiquiátricos nos últimos anos. (ilustração: Cavalcante)

Outra grande preocupação para os psiquiatras é a transformação dos presídios em novos manicômios. Pacientes psiquiátricos que cometem delitos são somados aos presidiários que padecem de doenças mentais. Este é outro subproduto da desassistência crescente em psiquiatria: os presídios brasileiros, em seu conjunto, já abrigam mais de 60 mil doentes mentais graves.

Assim, lutamos exatamente pelo cumprimento da Lei 10.216. Essa norma legal precisa ser obedecida nos seus parâmetros reais, sem ser burlada por interpretações espúrias que embasam portarias equivocadas sobre a atenção em psicopatologia. É preciso evitar discursos ideológicos, que evidenciam grave conflito de interesses. Nós, psiquiatras, nos colocamos em oposição ao que se observa hoje: doentes mentais tornando-se moradores de rua, ao sabor da desassistência psiquiátrica. A ABP também se dispõe a colaborar para uma abordagem organizada de problemas como a disseminação do uso de cocaína em sua forma fumável, o crack.

Mais de 90% do trabalho psiquiátrico pode ser realizado em ambulatórios, com condições dignas de atendimento e com um melhor resultado para o paciente. A internação é o último recurso dentro de uma rede de atenção ao doente mental e, quando necessária, deve ser feita em local adequado, com qualidade comprovada e com resolutividade, ou seja, capacidade de resolução dos casos. Capacidade esta que é rotina no sistema privado e nos melhores centros acadêmicos do mundo. Lidamos com a vida e por isso buscamos a qualidade de vida da sociedade.

Você leu um dos textos da seção ‘Polêmica’ da CH 295. Leia também o artigo do psiquiatra Pedro Gabriel Delgado sobre o mesmo tema. Clique no ícone a seguir para baixar a versão em PDF aberto (gif)

Antônio Geraldo da Silva
Associação Brasileira de Psiquiatria (presidente)

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