A cidade do Rio de janeiro se esparramou pela costa para crescer. Tomou conta das praias com aterros, muros e outras estruturas onde, hoje, há espigões, calçadões, autopistas, faixas de areia equipadas para lazer e tanto mais. Afinal, como ocorreu esse processo que se estendeu por séculos e persiste até hoje, apesar dos já conhecidos danos à dinâmica natural das praias e suas consequências?
Nossa jornada começa nas primeiras décadas do século 19, quando as intervenções se intensificaram para contenção do mar durante as ressacas em antigas praias como Gamboa, Saúde e do Valongo e, também, na orla da Glória. Na Glória, aliás, ainda no século 17, já havia sido levantada uma murada de pedra que, entre 1858 e 1861, durante as obras do cais e do mercado da Glória (posteriormente demolido), recebeu uma escadaria que permanece até hoje. Ao longo do século 20 a morfologia das praias do Valongo e da Saúde foi gradualmente alterada com a construção de trapiches e aterro de áreas que projetaram suas fronteiras para águas mais profundas.
No início do século 20, algumas das praias foram extintas por aterros, e outras tiveram seus contornos completamente transformados. Do Centro da cidade até o atual Aterro do Flamengo, o contorno que o litoral apresentava até o final do século 19 foi bastante modificado (veja o mapa). Na Gamboa, por exemplo, havia uma praia de enseada homônima ao bairro. Da antiga praia de Santa Luzia, resta apenas a igreja que deu origem ao seu nome. De outras, como Pedra da Prainha, Praia do Peixe e Praia do Pedro, não sobrou qualquer referência a não ser seus nomes em mapas, fotos e livros antigos.
Essas profundas transformações foram iniciadas em 1903 pela reforma urbanística de Francisco Pereira Passos (1836-1913), prefeito da então capital da república entre 1902 e 1906. O contorno sinuoso do litoral foi retificado por aterros e muros, não deixando espaço para a faixa de areia e para a prática do banho de mar. Durante esse período, as primeiras ressacas do mar foram fotograficamente documentadas no novo muro da praia do Flamengo e na Avenida Beira-Mar.
Outra mudança marcante, na segunda década do século 20, foi a criação, por aterro, do bairro da Urca (sigla de Urbanização Carioca, nome da empresa que realizou a obra), onde também passou a se configurar um litoral retilíneo cercado de muros à beira-mar.
Hoje é difícil imaginar a cidade sem a agitação das praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Mas até o começo do século 20, essas áreas ainda eram praticamente desabitadas. À medida que as praias oceânicas passaram a ser mais frequentadas e a cidade se expandia, a faixa litorânea de Copacabana foi gradativamente ocupada. O calçadão e as casas foram construídos próximo à faixa de areia – que não era muito larga – ou mesmo sobre as dunas frontais. De tão próximas ao mar, as estruturas urbanas eram afetadas durante as ressacas.
Já em Ipanema e Leblon, nas duas primeiras décadas do século 20, ainda havia uma ocupação urbana rarefeita, e a paisagem era de uma planície costeira vegetada, com dunas frontais altas em alguns trechos. As mudanças mais profundas começaram no final da década de 1930, quando, entre outras mudanças, foi construído na praia do Leblon, no meio da faixa dinâmica da praia, um muro em forma de escadaria que está lá até hoje.
As zonas costeiras, além de importantes destinos turísticos, são as áreas mais populosas do mundo. Esse processo de urbanização se intensificou a partir do século 20. Por volta da década de 1960, em meio a debates e controvérsias sobre a eficiência e impactos dessas estruturas, obras leves passaram a ser uma alternativa.
Na década de 1990 o Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) publicou documento alertando sobre o aumento do nível dos oceanos e sugeriu, como alternativas para enfrentar a erosão costeira e a subida do nível do mar, medidas como o estabelecimento de faixas de proteção da orla e o recuo da urbanização. Nada disso, no entanto, impediu que o acelerado crescimento urbano das zonas costeiras causasse transformações da dinâmica natural das praias que levaram, em muitos casos, ao aumento da vulnerabilidade costeira a eventos de ressaca e à subida do nível do mar.
Na década de 1960, a cidade esteve em plena transformação, com a construção do Aterro do Flamengo, que, mais uma vez, reconfigurou o traçado original do litoral. Nessa época, ocorreu, simultaneamente, um movimento interessante: a preocupação em recriar uma faixa de areia para banho de mar na praia do Flamengo, que fora completamente remodelada, e na praia de Botafogo, onde se viu a necessidade de uma faixa de areia mais larga.
Mas a obra mais emblemática ocorreu naquela que já era conhecida como a Princesinha do Mar: a alimentação artificial da praia de Copacabana, entre 1970 e 1972. O principal objetivo foi garantir a segurança dos prédios e da avenida litorânea (a Atlântica, que fora duplicada), mas, também, permitir o uso da praia para lazer. A faixa de areia, que tinha cerca de 55 metros de largura, passou a aproximadamente 145 metros.
Esse projeto – desconhecido para muitos cariocas do século 21 – seguiu a tendência internacional de substituir obras duras por leves, alternativa ainda rara naqueles tempos. Apesar do sucesso da obra, que também pretendia proteger a costa do ataque das ondas, esta não impediu a erosão no limite sul da praia, provocada por ressacas. Leblon e Ipanema também receberam aportes pontuais de areia após eventos de erosão causados por ressacas.
Um ponto de destaque na ocupação das praias cariocas foi a quase total eliminação das dunas frontais e da vegetação de restinga que, até recentemente, não eram valorizadas ecológica e geomorfologicamente, apesar de restingas fixadoras de dunas já serem consideradas áreas de proteção permanente desde o Código Florestal de 1965. Em 1988, foi criada a APA Orla Marítima (Lei 1272/88), uma unidade de conservação municipal que visa, principalmente, à preservação das dunas frontais e restingas do Leme até a Barra da Tijuca.
Foi nessa época que surgiram movimentos para remodelação das dunas frontais de Ipanema. As dunas passaram a ser compreendidas, nos estudos nacionais e internacionais, como parte do sistema praial e uma importante proteção natural à erosão e inundação pelo ataque de ondas. Também foi reconhecida sua importância ecológica para diversas espécies. Recentemente, empresas privadas adotaram parte desses ambientes e, junto com ONGs e órgãos ambientais fizeram diversas ações recuperação.
Restingas podem ser definidas como vegetação herbácea, arbustiva ou arbórea muito diversificada em termos fisionômicos que se desenvolve sobre depósitos arenosos costeiros de origem variada. No Brasil existem quase três mil espécies vegetais nas restingas, das quais aproximadamente 1.700 ocorrem no Rio de Janeiro, sendo 49 espécies endêmicas e 35 ameaçadas de extinção. Além de sua função ecológica, as restingas possuem também o importante papel de fixação das dunas que, por sua vez, funcionam como barreiras naturais ao ataque das ondas.
Em 2003, começaram a ser instaladas na zona Oeste as obras do projeto Eco Orla, em que, além de ciclovias, estacionamentos e novos quiosques, foram plantadas mudas de restingas. No entanto, paradoxalmente, esse projeto instalou estruturas urbanas na faixa dinâmica das praias, aumentando sua vulnerabilidade a ressacas. Na praia da Macumba, desde que as obras foram realizadas, ressacas do mar já destruíram mais de seis vezes as estruturas urbanas e quiosques, sendo o evento mais severo o ocorrido no ano de 2017.
Quiosques novos, que fazem parte desse projeto, continuam a ser construídos na faixa de areia das praias, em cima das dunas e restingas. Soma-se a este cenário a retirada de grandes quantidades de areia dragadas do canal de Sernambetiba, na praia da Macumba, e do canal do Jardim de Alah, entre Ipanema e Leblon.
A retificação do litoral, os aterros e a substituição das dunas e restingas por muros e calçadas destacam-se como as principais transformações antrópicas ocorridas nos séculos 19 e 20 na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, no Centro, quase nada resta do que um dia foi um litoral recortado, com praias de enseada. O que se observa nas praias de mar aberto, nas zonas Sul e Oeste da cidade, é um padrão em que, frequentemente, o final da praia é delimitado por um muro, seguido de ciclovia, calçadão, pistas de rolamento e prédios. A faixa de areia das praias foi gradualmente sendo tomada por essas estruturas urbanas e por quiosques, com pouca ou nenhuma atenção à dinâmica natural das praias.
A retirada da proteção natural oferecida pelas dunas e restingas, a alteração do estoque de areias, assim como a colocação de estruturas rígidas, gera mudanças na dinâmica natural das praias, que apresentam desequilíbrio do balanço sedimentar e redução da sua resiliência em caso de eventos de ressaca ou subida do nível do mar. Mas a evolução das praias urbanas não precisa necessariamente transformá-las em plataformas de recreação planas e descaracterizadas. É possível pensar numa gestão adequada, orientada para a efetiva recuperação de suas funções naturais, recriando sua topografia e vegetação e contribuindo para familiarizar o público com a natureza e melhorar a imagem de um litoral urbanizado.
Flavia Moraes Lins-de-Barros e Josefa Varela Guerra
Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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