Ética e genética: de mãos dadas

Ao longo das últimas décadas, foram desenvolvidas várias técnicas que permitiram aos pesquisadores modificar o DNA de seres vivos para alterar suas características. O avanço no uso desses métodos em laboratório suscitou a ampliação do debate sobre os potenciais riscos biológicos e os aspectos éticos desse tipo de pesquisa.

União da biologia molecular com a genética revelou um novo mundo para os pesquisadores da área, ao permitir a realização de modificações no genoma de um ser vivo. A possibilidade de ‘editar’ (ou modificar) o DNA surgiu em 1974, com um método conhecido como TALEN (Transcription Activator­Like Ef fector Nucleases). Nele, as chamadas enzimas de restrição funcionavam como ‘tesouras genéticas’, permitindo separar o DNA em locais específicos. Era o início da engenharia genética.

As repercussões sobre a possibilidade de alterar a sequência do DNA, em vez de apenas descrevê­la, inquietaram os próprios cientistas. Alguns deles, como o químico Paul Berg, o microbiologista David Baltimore e o geneticista James Watson, todos norte­americanos e ganhadores do Prêmio Nobel, encaminharam, ainda em 1974, uma carta às três mais representativas revistas científicas da época – Science, Nature e Proceedings of National Academy of Sciences – alertando sobre os potenciais riscos biológicos associados a essa nova técnica. Os autores propuseram uma moratória voluntária das pesquisas – acatada amplamente nas universidades e indústrias –, alegando que os riscos desconhecidos mereciam grande discussão entre cientistas e sociedade.

As repercussões sobre a possibilidade de alterar a sequência do DNA, em vez de apenas descrevê­la, inquietaram os próprios cientistas

Em 1975, esse mesmo grupo de pesquisadores, com o apoio de órgãos do governo norte­americano e de fundações privadas, realizou o Congresso Internacional sobre Mo­ léculas de DNA Recombinante, em Asilomar, na Califórnia (EUA). No documento final do encontro, foram propostas normas de biossegurança para a realização de pesquisas que envolvessem modificações no DNA, especificando cuidados com instalações, vestimentas e procedimentos. Além disso, os projetos foram divididos de acordo com os materiais biológicos en­ volvidos: bactérias, vírus ou células provenientes de plantas e animais.

A grande questão presente naquela época era a pouca precisão que a técnica TALEN tinha.  Os fragmentos de DNA eram separados e, posteriormente, reorganizados, sem uma garantia de qual segmento específico estava sendo retirado ou recolocado na sequência. Daí surgiu a necessidade de se usar o ‘princípio da precaução’, que estabelece que, quando uma situação pode ter algum resultado prejudicial, devem ser previstas as medidas para impedir ou minimizar a sua ocorrência. No ano seguinte, em 1976, com base no documento de Asilomar, o governo norte­americano estabeleceu normas para a pesquisa com DNA recombinante, ou seja, que resulta na combinação de diferentes sequências de DNA.

 

Novas técnicas, novos dilemas

A busca por aperfeiçoar a edição de DNA levou ao desenvolvimento de uma nova técnica, denominada ZFN (sigla em inglês para Nucleases de Dedos de Zinco), que melhorou a precisão com que as sequências de DNA eram manipuladas em laboratório. Essa técnica não teve maiores repercussões éticas e, portanto, não alterou as regras de biossegurança estabelecidas em documentos oficiais.

O passo seguinte foi a técnica CRISPR (sigla em inglês para Repetições Palindrômicas Curtas  Regularmente Interespaçadas), mais simples e precisa para editar sequências de DNA (ver ‘Edição de genomas: arma para o controle de insetos transmissores de doenças’, nesta  edição). Por essa maior precisão, as antigas ‘tesouras genéticas’ passaram a ser chamadas de ‘bisturis genéticos’.

A principal questão colocada é se os cientistas têm o direito de gerar intencionalmente linhagens de animais portadores de doenças tão graves

Assim como a ZNF, a CRISPR não gerou qualquer intranquilidade. Antes de uma ampla discussão sobre seus usos e efeitos, muitas aplicações já estavam incorporadas à indústria.  Mas, no início de 2014, mais de 10 anos após o surgimento dessa técnica, a divulgação de que pesquisadores chineses haviam alterado, com sucesso, sequências específicas de DNA em macacos utilizando CRISPR afligiu a comunidade científica. Isso possibilitaria a geração de macacos com doenças humanas, como os males de Parkinson e Alzheimer, para servir de modelo para pesquisa – algo que já é feito com outras espécies animais, como ratos e camundongos.  A reação inicial favorável a essas pesquisas foi acompanhada por questionamentos sobre sua adequação a espécies com tão alto grau de desenvolvimento. A principal questão colocada é se os cientistas têm o direito de gerar intencionalmente linhagens de animais portadores de doenças tão graves. Outro ponto de debate é a possibilidade de patenteamento dessas linhagens e a consequente apropriação desse patrimônio genético por algumas companhias ou pessoas.

Em seguida, houve a publicação de artigos relatando o uso da técnica CRISPR em células germinativas humanas, que dão origem a espermatozoides e óvulos, capazes de transmitir as novas características derivadas do genoma modificado às futuras gerações. Então, um grupo de cientistas, liderado por David Baltimore e Paul Berg, publicou, em 2015, uma nova carta na revista Science, apresentando quatro propostas para reflexão sobre o uso de CRISPR. A primeira delas era justamente a de desencorajar a realização de pesquisas com linhagens germinativas.

 

Sem barreiras regulatórias

Caso algum pesquisador brasileiro desejasse fazer pesquisa usando essa técnica em embriões humanos, não encontraria barreiras regulatórias. Na ausência de uma legislação específica sobre pesquisa em seres humanos e sobre reprodução assistida, os documentos que orientam essas práticas são as resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS), para a pesquisa em seres humanos, e do Conselho Federal de Medicina (CFM), para a reprodução assistida.

Quanto à pesquisa com embriões, a Resolução CNS 466/2012 não menciona qualquer referência específica, salvo a necessidade de avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Essa avaliação deveria ser baseada em aspectos éticos, e não de cunho legal ou regulatório.

Por outro lado, a recente Resolução CFM 2.121/2015 permite que, nos procedimentos de reprodução assistida, “embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças” podem ser doados para pesquisa. A mesma resolução estabelece que o tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro é de 14 dias. Antes disso, a Lei de Biossegurança já havia aberto a possibilidade de que embriões congelados em 2005, ou que já estivessem congelados há três anos quando da aprovação da lei, em março de 2005, pudessem ser doados à pesquisa.

A questão de fundo é aceitar ou não a possibilidade de manipular embriões humanos para fins exclusivos de pesquisa, tenham eles ou não a possibilidade de se desenvolverem em estágios mais avançados

A questão de fundo é aceitar ou não a possibilidade de manipular embriões humanos para fins exclusivos de pesquisa, tenham eles ou não a possibilidade de se desenvolverem em estágios mais avançados.

O debate está aberto e as respostas são múltiplas.  Já existem inúmeras propostas para a realização de encontros visando discutir o tema, entre elas, a de uma reunião entre as principais sociedades científicas dos Estados Unidos, do Reino Unido e da China.  A lição de Asilomar ainda é útil e adequada. A própria carta publicada na Science em 2015 sugere  a criação  de fóruns de discussão específicos sobre o tema, mas com ampla representatividade.

As pesquisas não devem ser banidas, o método não deve ter seu uso impedido, mas é fundamental e necessária uma reflexão para verificar a sua adequação às diferentes situações de pesquisa que estão sendo propostas. Estabelecer uma moratória para as pesquisas envolvendo edição de DNA em linhagens celulares germinativas é uma alternativa prudente para que sejam estabelecidos critérios mínimos e comuns de adequação. Esses critérios deverão ser utilizados internacionalmente, para evitar que a realização das pesquisas seja direcionada para países com menor rigor na avaliação ética.

Finalmente, outra questão importante que deve ser levantada é a da submissão de pesquisas consideradas inadequadas eticamente para publicação em periódicos. Nesses casos, os editores deveriam não apenas rejeitar a publicação, mas também relatar a situação a um órgão internacional capaz de avaliar o caso em profundidade e tomar as medidas cabíveis, quando a inadequação for comprovada. Com essa avaliação prévia, as consequências da publicação de um artigo inadequado do ponto de vista ético podem ser evitadas.  Essa transparência beneficiaria não apenas os periódicos, mas também a comunidade científica e a própria sociedade.

 

José Roberto Goldim
Programa de Pós-graduação em Medicina: Ciências Médicas
Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Faculdade de Medicina
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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