Em carta escrita ao psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) em 1927, o pensador e escritor francês Romain Rolland (1866-1944) mencionou seu interesse de que o colega explorasse melhor a sensação religiosa espontânea, o sentimento do eterno que desconhece limites, como um sentimento “oceânico”. Freud não se furtou a enfrentar o desato, já que a metáfora lhe pareceu rica de significado. No final de O futuro de uma ilusão, publicado no mesmo ano, Freud abordou o tema da construção do ego a partir da crítica da ideia de um sentimento oceânico primitivo, caro à religião. Quando publicou o seu célebre ensaio O mal-estar da civilização em 1930, esse ‘sentimento oceânico’, ou melhor, as formas que a sociedade encontrava para lhe impor limites, tornou-se o cerne de suas preocupações.
Os tempos eram de guerra e, evidentemente, sobressaía naquele contexto o problema da morte iminente diante dos imperativos da vida em sociedade. Havia três fontes intrínsecas ao desprazer que Freud identificava como decorrência da construção dos limites para esse sentimento oceânico, que emanava, em sua visão, do próprio ego primitivo da criança, e não de estruturas religiosas ou místicas pré-configuradas.
Fosse pela experiência existencial da dor ou da morte, pelo caráter destrutivo ou desastroso da própria natureza, mas sobretudo pelo sofrimento endêmico que os seres humanos necessariamente conhecem na vida em sociedade – isto é, na civilização –, surgiria imperativamente na criança que confronta seu sentimento oceânico a necessidade de reconciliar seus instintos, que buscam gratificação, com a realidade que a vida social impõe.
Como componente central das formas de vida de boa parte das civilizações contemporâneas, as redes sociais sujeitam aqueles que nela coexistem a imperativos e limites bastante similares aos que Freud apontava quando falava da relação paradoxal que a realidade social impõe ao ego primitivo da criança: ao mesmo tempo que induz à liberdade em busca de prazer, a cerceia com regras que devem ser introjetadas a fim de garantir a sociabilidade. A questão, então, está em pensar como tal relação encontra meios de se atualizar – e com quais efeitos – nas novas tecnologias de comunicação em geral e nas redes sociais em particular.
Protagonistas da comunicação
As plataformas eletrônicas nas quais as redes sociais não presenciais são estabelecidas estão passando por um momento de transição. À medida que as interfaces de interação social virtual foram regredindo novamente para a telefonia, a mobilidade introduzida pelo celular e a transmissão de dados por ele facilitada fizeram desses aparelhos os protagonistas da comunicação que engendra e reproduz redes sociais.
A tela do celular ganhou propriedades que teclas de um telefone comum nunca tiveram, e a capacidade de armazenamento de informação e outras aplicações no mesmo objeto transformaram o celular, em menos de uma década, no principal aparelho utilizado por seres humanos. Talvez seja cedo para decretar categoricamente a superação do Facebook, ou o fim da hegemonia das redes sociais mais adequadas ao computador caseiro. Contudo, não será apressado reconhecer que, mantidas as tendências em curso, aplicativos como o WhatsApp transformarão o Facebook e seus aparentados em plataformas secundárias.
O Facebook e outras redes sociais assemelhadas estão assentadas sobre um conjunto de atributos comuns: o fluxo em geral transparente da informação, em que cada um se dirige simultaneamente a muitos (one to many), torna público o privado; o conteúdo da informação, as trocas e os compartilhamentos efetuados conformam uma espécie de subesfera pública que mais repercute do que pauta a esfera pública propriamente dita.
O WhatsApp opera sob uma lógica diversa: as mensagens, sempre enviadas a uma ou poucas pessoas (one to one ou one to few), permanecem no âmbito do privado, cuja opacidade só muito raramente é violada; as trocas e os compartilhamentos se dão por grupos de interesse, afinidades ou necessidades pessoais, contextos profissionais, ou simplesmente em substituição a um telefonema. Combina-se a isso o silêncio que caracteriza a maior parte das trocas comunicativas das duas plataformas, ainda que mobilizado de modos distintos.
No Facebook, esse silêncio é quase imperativo, já que nenhuma de suas mensagens e publicações encontra um assento feliz no uso da voz humana como meio da comunicação. O que tem som no Facebook, em geral, já é um audiovisual postado.
No WhatsApp, por outro lado, o texto ou mensagem parecem destinados a um papel de ‘suplente’ da fala, já que esbanja trocas comunicativas que são meras substitutas de conversações que poderiam servia você, mesmo quando em grupos maiores. Não é acidental que o WhatsApp tenha sido rápido em incluir entre seus recursos a possibilidade de utilizá-lo como telefone. Não se trata meramente da possibilidade de utilizar som em comunicações – as duas plataformas incluem recursos para que as trocas sejam audíveis, mas, enquanto o Facebook utiliza esses recursos apenas para ampliar os modos de interação entre conectados, o WhatsApp os emprega para substituir as formas tradicionais da oralidade, que costumam exigir protocolos conversacionais que oneram, em tempo e disponibilidade, os ritos de introdução, desenvolvimento e conclusão das trocas comunicativas.
Implicações das redes
Consideradas as características e diferenças formais de ambas as plataformas, é hora de retornarmos a Freud para, com a licença do uso alargado de alguns dos seus conceitos e categorias, observar de que maneira tais características atravessam, ou mesmo ajudam a constituir, o mal-estar na civilização em rede. Pensar na tecnologia não como um artefato, mas como um contexto, implica partir do princípio de que a presença das redes sociais na vida das pessoas afeta orepertório de ações disponíveis a elas, assim como a forma em que experimentam o mundo ao seu redor.
Se as redes sociais favorecem certos modos de diálogo e tipos de interações, é de se esperar que ganhem aderência social. Por sua própria arquitetura, o Facebook estimula uma forma de enunciação que, emlinhas gerais, poderíamos caracterizar de espalhafatosa e assertiva, eque possui, no ‘curtir’ alheio, a medida de seu sucesso. Essa ênfase ubíqua no reconhecimento intersubjetivo, entretanto, cobra o seu preço: ao fazer da aprovação expressa de outros o termômetro cotidiano de suas atividades on-line, o indivíduo acostuma-se a exteriorizar excessivamente os critérios pelos quais julgará a si próprio.
O espelho facebookiano contribui para idealizar ainda mais as representações ideais que constituem o imaginário; sem a imagem desejada devolvida, resta aoindivíduo a mania patológica de persegui-la, ou a diluição depressiva de seu investimento libidinal pelo seu suposto fracasso.
Já o WhatsApp está fundado num modo de diálogo que, em função da exigência da ins- tantaneidade – se o sujeito se ausentar dos grupos de que participa, mesmo que apenas por algumas horas, arrisca aperder o fio da meada daconversa –, induz a um comportamento obsessivo-compulsivo, emque tiques excessivos, de olhos e dedos em busca constante de novidades, não se ligam ao propósito ao qual aparentemente se dirigem.
Custos psíquicos
O temor de excluir a si mesmo de trocas habitua à checagem do aparelho celular a intervalos cada vez mais curtos; quanto mais os grupos de que se participa, maiores aspossibilidades deexclusão, e os custos psíquicos decorrentes. Como alguém que rói as unhas, o usuário do WhatsApp opera um descolamento do real que pode durar poucos instantes, ou dias, e que se encontra demarcado como parte daspráticas sociais quase aceitáveis.
(foto: Pixabay.com / Domínio Público)
O WhatsApp fustiga o indivíduo em função da ansiedade provocada pela exigência incessante por disponibilidade, mas o protege da vigilância alheia. Em um contexto de patrulha politicamentecorreta, asegurança damensagem privada, ventilada entre amigos e conhecidos com vínculos e afinidades claramente delineados, oferece o conforto necessário à livre expressão de preconceitos ediscursos de ódio. No WhatsApp, pode-se sentir prazer com a humilhação ou dor alheia, sem a contrapartida da culpa: abolidas as interdições públicas ao gozo, o escárnio encontra nos grupos privados espaço privilegiadopara manifestar-se livremente.
O Facebook, ao contrário, obriga oindivíduo a comprometer-se diariamente com a apresentação da melhor versão de si. Como afirma o historiador norte-americano Christopher Lasch (1932-1994), se uma cultura narcisista é aquela na qual os relacionamentos são definidos pelo imperativo hedonista de aquisição e exibição de símbolos de status ou riqueza, então plataformas como o Facebook são seus principais operadores contemporâneos, uma vez que seus usuários parecem tomar parte de uma espécie de jogo de espelhos de reflexos indiretos: são fotos de viagens que pressupõem estilos de vida (saudável, aventureiro, intelectual, refinado etc.); postagens de conteúdos culturais sugerindo distinção; temáticas políticas que expressam visões de mundo com pretensões de infalibilidade; e assim por diante.
Não é preciso ser um etnógrafo do mundo virtual para nele reconhecer traços característicos do narcisismo clássico – hipersensibilidade acríticas, baixa disposição empática, arrogar para si o status de ‘especialista’ em assuntos variados, aparentar ser mais importante do que se é –, tudo em escala aumentada.
Esse narcisismo amplificado pelas redes sociais não presenciais não desaparece com as novas plataformas deinteração mais intimistas como o WhatsApp em celulares. A trama especular que nelas se desenrola, entretanto, sempre tem endereços definidos que não permitem nenhuma forma romantizada de circulação livre de ideias, modelo ao qual muitos ainda seapegam para descrever a dinâmica comunicativa de redes sociais ancoradas em plataformas como o Facebook.
No WhatsApp, o público morreu; no Facebook, ele simula a sua própria farsa. É concebível escrever uma postagem no Facebook sem se preocupar com quem vai lê-la, mas no WhatsApp, não. O destino conhecido de toda comunicação no WhatsApp devolve seu protagonista narcisista ao mundo da interação virtual como um indivíduo, e o silêncio de uma audiência que simplesmente não se manifesta – isto é, que não ‘curte’ sua postagem com um mero clique, como no Facebook – ecoa mais alto: na intimidade do privado, a ausência de reconhecimento carrega o peso da indiferença ou desaprovação explícitas.
Gramáticas próprias
Tal qual o Facebook, o WhatsApp também tem sua gramática. Enquanto o Facebook constrói o império da extroversão, tornando a troca comunicativa uma luta para ver quem grita mais alto – a métrica é o alcance, afinal –, no WhatsApp, os extrovertidos precisam ser cautelosos: sussurros altos demais são causas implacáveis de exclusão e ostracismo. Em contraste com o território do excesso do Facebook, onde (quase) tudo vale, a gramática do WhatsApp é uma disciplina com regras de etiqueta mais exigentes: textos curtos, imagens em arquivos leves, emojis e repressão às falas fora do tópico.
Acima de tudo, rege esta gramática a regra que cada rede social imprime para o ritmo das postagens. O WhatsApp converte em párias aqueles que falam demais, que falam de menos e que esquecem de falar. Saber o ritmo dos ritos comunicativos do grupo é questão de sobrevivência.
Tudo somado, eis a dicotomia construída até aqui: de um lado, plataformas de amplificação de discurso público, referido a um simulacro da polis, vazado em prosa imagética ruidosa, que sequer expansiva; de outro, plataformas de reprodução de comentários privados, endereçados à esfera de uma certa intimidade, e que são vazados sem estardalhaço.
No Facebook, grita-se histericamente para reivindicar a aprovação imaginária dos outros, sempre os mesmos outros, em doses homeopáticas diárias, buscando uma satisfação narcísica alimentada pela falsa sensação de excesso ou a inevitável melancolia produzida pela falta de ‘curtidas’. No WhatsApp, tecla-se compulsiva e silenciosamente para dar vazão ao que não pode ser dito em público, para manter-se a par do inconfessável do outro, para assegurar pertencimento a grupos mais ou menos próximos, de modo a afastar rotineiramente o medo da exclusão. Afinal, um celular que não anuncia novas mensagens insinua o ostracismo.
Na internet, vozes não se convertem nem em gritos, nem em sussurros, sem escapar do paradoxo de que quanto maior é o alcance e a possibilidade da fala no mundo conectado das redes sociais, maior a importância do silêncio que lhe subjaz. A repressão, a imposição de limites ao que pode ser dito num contexto em que aparentemente todos podem falar livres de amarras presenciais, começa na negociação sutil de tal silêncio.
O sentimento oceânico a que Freud se referia encontra no silêncio das redes, mais do que nos ruídos que as atravessam, a verdadeira medida de sua contenção – é o vazio, a ausência da interação, e não o seu excesso, que causa verdadeiro desconforto ao indivíduo contemporâneo. Ele ostenta um celular para não ter que conversar com quem está ao seu redor. Cabisbaixo e absorto, ele navega pelas teclas enquanto soergue diante de si uma muralha que, ao mesmo tempo, lhe priva e lhe subtrai dos desprazeres que a vida em sociedade impõe. Ninguém o ouve e ele nem sabe ao certo sequer ser ouvido. Está cada vez mais enterrado em um narcisismo de pequenas diferenças.
Sugestões para leitura
EISENBERG, J E MUDESTO, R. ‘A PAX ZUCKERBERG: o que está por trás do sucesso do Facebook’ in Ciência Hoje, v. 50, n. 300, 2013.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
MOROZOV, E. THE NET DELUSION. The dark side of internet freedom. New York: PublicAffairs, 2011.
TURKLE, S. ALONE TOGETHER. Why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic books, 2011.
José Eisenberg
Antonio Engelke
Instituto de Ciências Sociais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro