Mãe atrás das grades

Pré-natal inadequado, uso de algemas no trabalho de parto, humilhação, solidão. Relatos de detentas mostram que a gravidez e a maternidade nos presídios brasileiros é uma dura pena às mulheres e também a seus filhos, com violações aos direitos humanos, assistência de saúde insuficiente e afastamento das famílias.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. São 790 mil pessoas atrás das grades, a maioria delas vivendo em celas insalubres, mal ventiladas, escuras, e sem acesso a um sistema de saúde eficiente. A situação é ainda mais precária quando se trata das 41.087 mulheres encarceradas, frente a uma instituição que não foi pensada para elas.

Ainda que represente menos de 7% do total de detentos do país, o número de mulheres presas cresceu 700% entre 2000 e 2017, mais que o dobro do aumento da população carcerária masculina. Esse crescimento agravou os problemas que cercam o aprisionamento feminino, apesar de 40% das presas não serem condenadas e estarem à espera de julgamento, principalmente por delitos cometidos sem violência, como crimes ligados ao tráfico de drogas, roubo ou furto.

Ser mãe atrás das grades se impõe, especialmente, como um enorme desafio, em que são frequentes as violações aos direitos humanos das detentas e de seus filhos, particularmente os nascidos durante a pena, revela o estudo “Nascer nas prisões”, conduzido por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, e do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, ambos da UFRJ.

Variação da taxa de aprisionamento* entre 2000 e 2016 nos 5 países com maior população prisional feminina do mundo

Fonte: Elaboração própria, com dados do World Prision Brief e do World Female Imprisonment List
4a Edição, Institute for Criminal Policy Reserarch.
*Taxa de aprisionamento é o número de presas para cada 100 mil mulheres

Solidão e pré-natal inadequado

Esperar o nascimento de um filho atrás das grades e longe das famílias não é o único obstáculo das detentas grávidas. A assistência pré-natal foi inadequada para 65% das mulheres ouvidas no estudo, com um número de consultas inferior às sete recomendadas. Se em liberdade, a responsabilidade por procurar um médico é da mulher, quando encarceradas, as gestantes dependem do Estado.

Durante a gestação, quase 40% não também receberam visitas de parentes ou amigos. O início do trabalho parto de apenas 10% delas foi informado aos familiares; mesmo assim, elas não contaram com a presença de acompanhantes da sua escolha quando foram levadas ao hospital para ter o bebê.

Esse conjunto de falhas configura desrespeito aos direitos de proteção à saúde da gestante e do recém-nascido, que deveriam ser garantidos pelos serviços regulares da atenção pré-natal.

Mãe e bebê também foram privados do conforto social e familiar durante o parto e nascimento, respectivamente, direito assegurado pela Lei 11.108, conhecida como “Lei do Acompanhante”, de 2005.

Outro dado chama a atenção: a transmissão vertical (de mãe para filho) da sífilis foi dez vezes mais frequente entre recém-nascidos gestados dentro no sistema prisional em comparação aos filhos de mulheres atendidas pelo SUS. A ausência de tratamento para sífilis deixa marca indelével nessas crianças que, além de doentes por causa evitável, tiveram que permanecer hospitalizadas, na maioria das vezes, sem a companhia das suas mães, ferindo outro direito garantido por lei.

Algemas no parto e maus-tratos

As puérperas relataram ter sofrido maltrato ou violência durante a estada nas maternidades por parte de profissionais de saúde (16%) e de guardas ou agentes penitenciários (14%). Nas duas situações, as principais formas de agressão relatadas foram verbal e psicológica.

Outra expressão da violência, o uso de algemas em algum momento da internação, foi mencionado por 36% das gestantes, dentre essas, 8% relataram ter permanecido algemadas durante o parto.

Entrevistas individuais e em grupos mostraram que, mesmo antes da chegada à maternidade, angústia e sofrimento tomam conta dessas mulheres. A razão é a transferência, ao final da gravidez, para prisões na capital ou região metropolitana, onde há UMI (Unidade Materno Infantil), o que implicou o afastamento delas – e dos recém-nascidos – de seus familiares, especialmente de seus outros filhos, que vivem fora do sistema penitenciário.

A situação das mulheres gestantes ou com filhos pequenos nas prisões é quase invisível para a Justiça: o tema é abordado em apenas 33 normas (12 federais), entre Constituição, leis, decretos-lei e normas administrativas, apontou o estudo.

Das normas federais, a metade diz respeito à garantia de local apropriado para o cumprimento da pena de gestante e parturiente, ao direito de a detenta permanecer com os filhos durante período mínimo para amamentação, à obrigatoriedade de assistência social e de saúde para mulheres e filhos, além do direito à prisão domiciliar em situações especiais.

Nos estados pesquisados a regulamentação das leis relacionadas ao tema também foi muito baixa e desigual. Quanto à análise da jurisprudência, as decisões relativas às gestantes encarceradas e seus filhos também foram escassas. Não foi encontrada nenhuma decisão que discutisse a responsabilidade estatal.

Os resultados mostram pouca regulamentação legislativa, um incipiente debate jurisprudencial sobre a questão, além de uma prática local muito dependente de iniciativas pessoais dos profissionais responsáveis.

Evolução das mulheres privadas de liberdade (em mil) entre 2000 e 2016

Fonte: Ministério da Justiça. A partir de 2005, dados do Infopen. Dados para série histórica.

Jovens, com pouca instrução e nascidas na pobreza

O perfil das mulheres que dão à luz dentro do sistema prisional apresenta diversos pontos em comum: a maioria pertence às camadas mais desfavorecidas da população. Nascidas na pobreza, em geral, são mães jovens, entre 20 e 29 anos de idade, pardas e negras. Acima de 50% sequer completaram o ensino fundamental.

Mais de um terço delas se declarou chefe de família, e 60% não tinham companheiro na época em que foram presas. Quando foram encarceradas, 90% já estavam grávidas, mas apenas um terço delas afirmou desejar a gestação, enquanto quase a metade não queria isso nem neste nem em outro momento.

Uma das possíveis razões para não quererem a gravidez atual é que 60% delas já tinham três ou mais filhos; entre essas, metade era mãe de cinco ou mais. A prisão dessas mulheres desorganiza, de forma devastadora, a vida dessas crianças, que são separadas de suas mães para ficarem com parentes ou seguirem para abrigos. Quase a metade era presa provisória, o que significa que poderiam vir a ser consideradas inocentes por ocasião dos seus julgamentos.

 

Gravidez com alegria e medo

A alegria por não estarem mais sozinhas e a apreensão quanto ao próprio futuro e o de seus filhos foram os sentimentos antagônicos relatados pelas detentas, ao falarem sobre sua percepção da gravidez vivida dentro do sistema prisional.

Muitas mulheres relataram apreensão em relação ao momento do trabalho de parto, quando seriam transferidas para a maternidade, por essa decisão caber ao agente penitenciário. Já a permanência no hospital foi associada a sentimentos de solidão – pela proibição da presença de familiares – e de discriminação e humilhação, devido à presença da escolta policial e ao uso de algemas, que expunha sua condição de prisioneira.

Depois do parto, a convivência das detentas com seus filhos nas prisões foi marcada pelas imposições da segurança, pela falta de autonomia das mães, pelo preconceito por parte dos profissionais quanto à sua aptidão para cuidar do bebê e pela incerteza quanto ao destino das crianças e sobre quais procedimentos que seriam utilizados para tomada da decisão de sua saída.

Taxa de presas sem condenação por Unidade da Federação

Fonte: Levantamento de Informações Penitenciárias – INFOPEN, Junho/2016.

Alternativas ao encarceramento

Os resultados da pesquisa “Nascer nas prisões” evidenciaram sofrimento e violações de direitos humanos vivenciados pelas mulheres no sistema prisional brasileiro. Em contradição à Constituição Federal, a pena ultrapassa a presa, atingindo sua família, particularmente o filho nascido na prisão.

Esses dados contribuíram para o debate sobre o Habeas Corpus Coletivo (nº143.641), recentemente concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que acorda o benefício de prisão domiciliar às presas provisórias, grávidas ou mães de filhos menores de 12 anos ou deficientes sob sua responsabilidade.

Em todas as áreas, o estudo expôs lacunas na atenção a gestantes e mães vivendo com seus filhos nas prisões brasileiras. A consequência disso são múltiplas violações dos direitos sexuais, reprodutivos e parentais, que prejudicam a mulher e, especialmente, as crianças, socialmente invisíveis neste contexto.

Com relação à saúde, a ausência de padrões mínimos de atenção pré-natal e de tratamento digno durante o parto precisam ser imediatamente corrigidos.

Dentro das prisões, também deveria ser oferecida oportunidade de educação, em especial no campo da saúde sexual e reprodutiva e da puericultura, o que traria chance de aprendizagem e desenvolvimento humano para as mulheres, em concordância com as Regras de Bangkok (ONU), que recomendam ainda que o encarceramento de gestantes e mães com filhos pequenos seja a exceção.

Diante de todas essas falhas do sistema prisional, alternativas a esse encarceramento, especialmente a prisão domiciliar, prevista na legislação brasileira, e agora reafirmada no Habeas Corpus Coletivo, precisam ser implantadas imediatamente

As grades não deixam dúvidas sobre a vocação daqueles lugares. As instalações do sistema prisional brasileiro são inadequadas às necessidades de mães e filhos, apontou o estudo. 

Os problemas variam. Quando não estão localizadas em uma das alas de uma prisão feminina – barulhenta e potencialmente violenta –, as instalações estão situadas em locais independentes, na maioria das vezes áridos, pouco salubres, sem espaços lúdicos para as crianças.

Uma proposta para criar um ambiente melhor para mães e filhos é separar a Unidade Materno Infantil de outras unidades prisionais. Pelo projeto, a UMI teria um pátio central ajardinado, sobre o qual se abririam quartos individuais e os espaços de vivência coletiva.

A parte administrativa da UMI e os postos de segurança ficariam na periferia do prédio e não seriam visíveis a partir do pátio, com a ideia de reduzir ao mínimo a ambiência carceral.

Sem comprometer a segurança, as janelas não seriam gradeadas, permitindo ver o céu e conviver com ambientes e texturas diferentes para a experimentação das crianças.

Como foi feito o estudo

A base para este artigo são os resultados do estudo “Nascer nas prisões”, financiado pelo Ministério da Saúde e pela Fundação Oswaldo Cruz, que se caracterizou pela abordagem multidisciplinar, integrando os componentes de saúde, psicossociologia, jurídico e arquitetura.

Saúde: a análise desse componente pretendeu conhecer as condições de saúde e assistência oferecidas na gestação, parto, nascimento e puerpério para as mulheres e seus filhos que viviam com elas nas prisões até um ano de vida após o nascimento. O estudo foi um censo de base institucional realizado entre 2012 e início de 2014, em todas as unidades prisionais femininas que abrigavam gestantes e mães vivendo com seus filhos, localizadas nas capitais e regiões metropolitanas dos estados brasileiros e no Distrito Federal. Foram entrevistadas 447 gestantes e mães internas nas unidades prisionais materno infantis (UMI). Também foram buscadas informações dos prontuários de mães e recém-nascidos nos hospitais onde ocorreram os partos, houve entrevistas com os gestores locais sobre a estrutura da unidade prisional e foram fotografados cartões de pré-natal das gestantes e as cadernetas de saúde das crianças.

Psicossocial:  para avaliar esse componente, foi avaliada a relação das detentas e de suas crianças com suas famílias, os guardas, as outras detentas, a administração penitenciária e os profissionais de saúde. Foi um estudo qualitativo, com entrevistas individuais e em grupo de gestantes e mulheres com filhos na prisão, guardas, profissionais de saúde, técnicos e gestores de quatro estados.

Jurídico: neste componente, foram estudadas as modalidades e bases legais das decisões sobre o futuro das crianças e das mães após a saída da prisão, utilizando-se de pesquisa documental legislativa e jurisprudencial referente aos direitos de grávidas e mães privadas de liberdade e dos seus filhos nascidos no cárcere. Foram entrevistados profissionais do Direito e analisados documentos e processos administrativos e judiciais na tomada de decisão sobre a permanência do filho com a mãe, em quatro estados.

Arquitetura:  foi avaliada a adequação do ambiente carcerário para abrigar mães e filhos e sua capacidade de gerar oportunidades de desenvolvimento para as crianças. Foram feitas entrevistas individuais e em grupos com mães e gestantes, além de um estudo de caso com observação e registro fotográfico das UMI onde já foram realizadas adequações espaciais voltadas para a permanência dos filhos junto às suas mães em dois estados da federação.

A equipe de pesquisa foi formada por: Maria do Carmo Leal, Alexandra Sanchéz, Bernard Larouzé e Vilma Diuana (ENSP/FIOCRUZ); Luciana Simas e Miriam Ventura (IESC/UFRJ); e Mauro Santos (FAU/UFRJ).

Algumas características das mães encarceradas em unidades prisionais das capitais e regiões metropolitanas do Brasil. Nascer nas Prisões, 2011-2014

Maria do Carmo Leal
Alexandra Sánchez
Bernard Larouzé

Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

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