Tudo que observamos diretamente no universo ‒ de átomos, animais e plantas a planetas, estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias etc. ‒ responde por apenas 5% da composição dele. Os 95% restantes são divididos assim: energia escura (aproximadamente 70%) e matéria escura (cerca de 25%).A natureza de ambas ainda é misteriosa para a ciência, sendo que a energia escura, para nossos propósitos aqui, pode ser vista como um tipo de antigravidade que estaria acelerando a expansão do universo.
Nosso tema aqui é a matéria escura. As primeiras evidências sobre ela surgiram na década de 1930, em observações feitas por Fritz Zwicky (1898-1974), que, ao estudar os movimentos de galáxias em aglomerados de galáxias, percebeu que a quantidade de massa associada à matéria visível era inferior àquela que explicaria a velocidade desses objetos cósmicos.Conclusão desse astrônomo suíço: haveria nos aglomerados um tipo preponderante de matéria que não emitiria luz e que, portanto, só poderia ser detectada por sua ação gravitacional. Zwicky a denominou matéria escura.
Na década de 1970, a astrônoma norte-americana Vera Rubin (1928-2016) estudou o movimento das estrelas e dos gases em galáxias, chegando à mesma conclusão que Zwicky: a maior parte da matéria das galáxias é escura, embora sua proporção seja maior nos aglomerados do que nas galáxias individuais.
No mesmo período, dados de satélites de raios x mostraram que os aglomerados de galáxias têm grande quantidade de gás quente e difuso que não emite luz visível. E que há mais massa contida nesse gás ‒ essencialmente hidrogênio e hélio ‒ do que em estrelas.
Problema resolvido? Não. Mesmo levando em conta essa massa de gás, cerca de 80% da composição dos aglomerados ainda são matéria escura.
Há outras formas de medir a massa total dos objetos astrofísicos.A mais direta se baseia na deflexão da luz pelo campo gravitacional, fenômeno previsto pela teoria da relatividade geral, do físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955). Esse fenômeno foi medido pela primeira vez em 1919, em um eclipse total do Sol em Sobral (Ceará) e na Ilha de Príncipe, costa ocidental africana.
Ao desviar a luz, o campo gravitacional atua como uma lente, distorcendo a forma de objetos mais distantes. Assim, se olhamos em direção a um aglomerado, galáxias atrás dele aparecerão deformadas. Esse efeito só pode ser medido com telescópios modernos, e a técnica de lentes gravitacionais passou a ser muito empregada a partir deste século ‒ embora já tivesse sido proposta por Zwicky na década de 1930.
Hoje, é possível fazer um censo da distribuição total de matéria nas estruturas em todas as escalas de distância cosmológicas, usando o efeito de lente gravitacional.
A conclusão de todas as técnicas de medir massa de objetos cósmicos é sempre a mesma: existe mais matéria do que aquela que é observada por meio de todas as formas de luz, visíveis ou não (ondas de rádio, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios X e raios gama).
Então, cabe a pergunta: poderia esse excesso ser composto por matéria comum, mas ainda não detectada? Uma chave para essa questão está na história do universo.
Sustentado por vasto conjunto de observações astronômicas, o modelo cosmológico atual mostra que o universo passou por uma fase extremamente densa e quente, há cerca de 14 bilhões de anos. Nessa época primordial, o universo era composto por uma sopa de partículas elementares (quarks, elétrons, neutrinos, fótons etc.) em constante interação.
As altíssimas temperaturas não permitiam que as partículas se agrupassem como núcleos atômicos, muito menos átomos, que se formariam só com a expansão e o resfriamento contínuos do universo.
Comparando previsões teóricas com observações da quantidade relativa entre hidrogênio e hélio ‒ os primeiros elementos químicos a se formarem –, podemos saber qual a quantidade total de matéria no universo. Surpreendentemente, o resultado é que esses elementos ‒ e alguns levemente mais pesados que se formaram posteriormente ‒ só podem ser responsáveis por 20% da matéria do universo.
Conclusão: a matéria escura não pode ser do tipo‘comum’ (ou, dito tecnicamente, bariônica).
Quando o universo se resfriou ainda mais, foram criados os primeiros átomos neutros ‒ cuja quantidade de prótons (positivos) é igual à de elétrons (negativos). E, com isso, a luz passou a se propagar livremente, e o universo deixou de ser opaco.
Hoje, mapeamos com precisão essa ‘primeira luz’, chamada radiação cósmica de fundo, a qual nos fornece uma ‘fotografia’ detalhada do universo 400 mil anos depois da formação dos primeiros núcleos atômicos. Ela não só aponta inequivocamente para a existência da matéria escura, mas também indica que esta última não interage com a luz ‒ portanto, sendo escura por definição.
Resumo: a matéria escura é peça fundamental para nossa compreensão do universo. Mas, afinal, do que ela é feita?
Em geral, considera-se que a matéria escura seja uma partícula elementar, como as muitas conhecidas hoje pela física. Sabemos que ela tem massa ‒ pois sofre a ação da força gravitacional ‒ e não possui carga elétrica. Que outras propriedades ela poderia ter?
Há quatro interações (ou forças) fundamentais na natureza: a gravidade, o eletromagnetismo ‒ ambas percebidas em nosso cotidiano ‒, bem como duas outras cuja ação é restrita às dimensões do núcleo atômico: a força forte e a fraca.
A matéria escura não ‘sente’ a interação eletromagnética, o que faz dela não só transparente, mas insensível ao toque ‒ ou seja, ela pode nos atravessar sem ser percebida. Ela também não ‘sente’ a força forte, a qual mantém prótons e nêutrons ‘colados’ no núcleo atômico.
Ea força fraca? Grande parte dos experimentos que buscam detectá-la assume um ‘sim’ como resposta a essa questão.
No Modelo Padrão de Partículas Elementares e Interações Fundamentais ‒ com o qual os físicos descrevem a constituição da matéria e três das quatro forças da natureza, excetuando-se a gravitacional ‒,há duas categorias de partículas: i) férmions (quarks e neutrinos, bem como o elétron e seus parentes mais pesados, múon e tau); ii) bósons, os ‘carregadores’ (mediadores)das forças fundamentais (no caso, eletromagnética, forte e fraca).
O Modelo Padrão relaciona hoje 17 tipos de partículas. A última delas, o bóson de Higgs ‒ responsável por conferir a propriedade massa às suas companheiras subatômicas ‒, foi detectada, em 2012, no mais potente acelerador da atualidade, o Grande Colisor de Hádrons(LHC, na sigla em inglês), em Genebra (Suíça). Mas nenhuma delas tem as propriedades que se esperam para a matéria escura.
Com base em hipóteses simples, é possível calcular a quantidade produzida, no universo primordial, de uma partícula massiva (cerca de 100 vezes mais ‘pesada’ que o próton)e que interage com a matéria por meio das forças fraca e gravitacional. Os físicos têm nome para isso: WIMP (sigla, em inglês, para partícula massiva de interação fraca).
Surpreendentemente, o resultado desse cálculo é compatível com a abundância observada de matéria escura no universo. Isso ficou conhecido como ‘Milagre dos WIMPs’, os quais não só pareciam se encaixar com tudo o que se sabia da matéria escura, mas vinham com um bônus: um mecanismo que descrevia a produção deles nos primeiros instantes douniverso.
Na década de 1970, para resolver problemas teóricos do Modelo Padrão, foram propostas teorias como as de supersimetria (SUSY, na sigla em inglês), que preveem uma miríade de novas partículas. Uma delas é estável, massiva, não tem carga elétrica e ‘sente’só as forças fraca e gravitacional ‒ exatamente, as propriedades dos WIMPs. O problema parecia resolvido. Restava detectar WIMPs e comprovar a supersimetria.
Na década de 1990, iniciaram-se os primeiros experimentos para detectar a matéria escura ‒ o foco eram os WIMPs. Desde então, a sensibilidade das tecnologias usadas vem aumentando. Boa parte dos especialistas acreditava que matéria escura seria descoberta até 2020. Mas, até agora,não há sinal comprovado da matéria escura em experimentos tanto terrestres quanto espaciais.A instrumentação desses experimentos atingiu a sensibilidade para detectar o WIMP previsto pelos modelos mais simples de supersimetria. Mas ele não parece estar lá.
Teste importante para a SUSY foi a entrada em operação do LHC. Com o acelerador, esperavam-se evidências que confirmas semas teorias de supersimetria. Mas os modelos mais simples e naturais de supersimetria parecem estar descartados pelos dados desse acelerador.
Para muitos, os WIMPs foram por água abaixo. E, agora, é preciso procurar por novos candidatos e modelos.
Considerar modelos alternativos aos WIMPs amplia enormemente o leque de possibilidades teóricas. A física de partículas nos permite conceber candidatos a matéria escura com diferentes propriedades, interações e motivações. Exemplo: ela poderia ser composta pelos (ainda não detectados) neutrinos estéreis ‒ diferentes dos três tipos conhecidos hoje. Os neutrinos são igualmente fugidios e atravessam a matéria sem dificuldade ‒ com era previsto para os WIMPs.
Há modelos, como a matéria escura autointeragente, que requerem um novo mediador de força, ou seja, um novo bóson. É comum denominá-lo fóton escuro, por analogia com a força eletromagnética, cujo ‘carregador’ é o fóton.
Há modelos ainda mais exóticos. Em um deles, a matéria escura poderia formar ‘átomos escuros’, ou seja, também invisíveis. Outras propriedades possíveis da matéria escura: i) sofrer autoaniquilação; ii) desintegrar-se (decair) em outras partículas; iii) ter novas interações (extremamente tênues) com a matéria ordinária; iv) ter carga elétrica ínfima.
Há quem defenda que a solução estaria em alterar a gravidade ‒ em vez de criar um novo tipo de matéria. Muitos pesquisadores apresentaram nas últimas décadas diversas modificações da gravidade que descartariam a hipótese até mesmo da existência de matéria escura.Mas esses modelos também apresentaram problemas, e suas previsões parecem não coincidir com dados observacionais.
Com esse cabedal de novas propriedades, é forçoso buscar também um mecanismo para sua produção no universo primordial, para substituir o ‘milagre frustrado’ do WIMP.
É comum se referir a essa plêiade de candidatos a matéria escura como ‘setor escuro’, que deve necessariamente se conectar ao setor da matéria comum ‒ aquela descrita pelo Modelo Padrão.
A conexão pode ser via uma força conhecida, como a força fraca, ou por meio de novos mediadores.
Há basicamente quatro formas de buscar a matéria escura: i) observações astronômicas, pelo seu efeito gravitacional; ii) observações de raios cósmicos (partículas que vêm do espaço e bombardeiam a Terra a todo instante), buscando sinais de aniquilação ou desintegração (decaimento) dessas partículas; iii) experimentos em que o setor escuro interage com uma parte sensível de um detector; iv) aceleradores de partículas em que alguma partícula do setor escuro poderia ser produzida.
Todas essas alternativas têm sido exploradas nos últimos anos. Excetuando-se o caso astronômico, até agora não houve detecções confirmadas, embora haja sinais que ainda são controversos na comunidade científica.
Por isso, novos experimentos buscam aumentar a sensibilidade dos detectores, detectar partículas com diferentes propriedades ou verificar sinais positivos já relatados.
Há um zoológico de teorias para a matéria escura ‒ e é possível que a correta seja bem diferente da que prevemos. Talvez, ela faça parte de uma mudança mais profunda da física. É provável que uma detecção direta acabe revolucionando essa disciplina ou, ao menos, apontando para uma solução para além do Modelo Padrão.
Detectando ou não a matéria escura, todo esse esforço terá incentivado o desenvolvimento de novos detectores, experimentos e análises de dados que podem levar a descobertas que não seriam obtidas sem essa busca. Embora a motivação dessa empreitada seja compreender a natureza, é certo que ela já tenha contribuído para o desenvolvimento tecnológico (especialmente, de novos sensores).
No século passado, surgiu e se solidificou o conceito de matéria escura como ingrediente fundamental para compreender o cosmo. Mas o assunto estava limitado a astrônomos. Agora, a busca por essa ainda misteriosa composição do universo se tornou área interdisciplinar, na confluência entre astrofísica, cosmologia e física de partículas, envolvendo intensa atividade teórica, observacional e experimental.
Não podemos prever quando ou se a matéria escura será detectada ‒ temos até mesmo de pensar na possibilidade de ela não existir. Mas podemos afirmar que os próximos anos continuarão sendo de intensa atividade de pesquisa nessa área.
Martín Makler
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas(RJ)
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José Victor
Alguém já considerou toda radiação eletromagnética,existente no Universo, em termos da massa associada, dada por E=mc²? Tal que a massa equivalente, E/c², compondo-se de alguma maneira com a massa devido à matéria, pudesse responder pelo aumento de velocidade das galáxias? (não estou querendo inferir aquí que a radiação tenha massa…, mas apenas querendo considerar sua influência, em termos da equivalência acima.)