Quem pode falar do Antropoceno?

Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde
Casa de Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

Embora o Antropoceno tenha sido proposto pelos cientistas do Sistema Terra (campo multidisciplinar surgido na década de 1950) como uma nova era na história planetária, marcada por eventos climáticos extremos e pelo fim das condições ambientais estáveis do Holoceno, essa ideia segue rejeitada pelos geólogos. Em meio a recordes de calor em pleno inverno e à fumaça dos incêndios no Brasil, fica a pergunta: quem sabe o que está acontecendo no planeta?

CRÉDITO: ILUSTRAÇÕES ANGELO ABU

Fogo e fumaça sufocante para todos os lados: este é o Brasil de setembro de 2024, um cenário de filme de fim de mundo. Incêndios com suspeita de origem criminosa varrem o Pantanal e a Amazônia, se alastram por outras regiões do país, de São Paulo a Brasília, e se somam a ondas recorde de calor em pleno inverno. 

A Amazônia experimenta a sua segunda seca consecutiva, já considerada um evento climático sem precedentes. Seus icônicos rios, como o Madeira, o Solimões e o Negro, sofrem baixas históricas do seu nível de água. Isso tudo acontece poucos meses depois da calamidade climática no Rio Grande do Sul, de maio de 2024, quando chuvas torrenciais devastaram partes inteiras do estado com inúmeras mortes de moradores e animais.

A Amazônia experimenta a sua segunda seca consecutiva, já considerada um evento climático sem precedentes. Seus icônicos rios, como o Madeira, o Solimões e o Negro, sofrem baixas históricas do seu nível de água

Os eventos climáticos extremos não se restringem ao Brasil. Secas, tempestades, enchentes, ondas de frio, incêndios florestais, recordes de calor, ciclones e furacões atingem a América Latina. E o planeta. Desigualdades variadas – sociais, regionais, nacionais, de raça e gênero – tornam assimétricos, e mais cruéis para uns do que para outros, os impactos das mudanças climáticas.

Desigualdades variadas – sociais, regionais, nacionais, de raça e gênero – tornam assimétricos, e mais cruéis para uns dos que para outros, os impactos das mudanças climáticas

Como se vê na tevê, nos jornais, nas redes sociais e na janela de casa, estamos em período recorde de desastres ecológicos globais, com altos riscos para segurança hídrica, alimentar e de saúde para humanos e não-humanos. Esta situação redobra o alerta dos cientistas de que estamos sob novo regime climático, cujas condições adversas se agravam em escala e velocidade não previstas. 

Debate público

Estudiosos defendem, assim, que estamos em uma nova época geológica, nomeada como Antropoceno. A seguir essa proposta, nós, os Homo sapiens, como espécie biológica, somos uma força geológica de transformação da história planetária.

O Antropoceno ainda está sob forte disputa para sua formalização científica, sobretudo, entre geólogos, que recusaram a proposta da nova época geológica, em decisão que teve muita repercussão na mídia – inclusive, nas importantes revistas Science e Nature em março de 2024. 

Apesar dessa negativa, o conceito já tem ampla circulação e aceitação em publicações científicas, na grande imprensa e na esfera cultural. Vai ser até enredo de carnaval da escola de samba carioca Unidos da Ponte em 2025. 

Representa, nesse debate público, o conjunto complexo e interligado de transformações sistêmicas de florestas, oceanos, rios e solos, da aceleração da taxa de extinção de espécies e do aumento da concentração na atmosfera de gases de efeito estufa, principalmente, do dióxido de carbono. 

Esses gases são os responsáveis pelas mudanças climáticas e pelo aquecimento global, os elementos mais conhecidos do Antropoceno na opinião pública, como afirmou o historiador das ciências André Felipe Cândido da Silva, em entrevista para o Invivo, portal do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2022.

Os vários ‘Antropocenos’

Então, não existe um único Antropoceno. Nas ciências, por exemplo, há três grandes definições para o conceito: a da geologia, a das Ciências do Sistema Terra (CST) e a das ciências sociais e humanas. 

Na geologia, o processo de reconhecimento de uma nova época é complexo, rigoroso e bastante demorado. A estratigrafia é a área do conhecimento geológico responsável por certificar o estabelecimento de um novo período a partir da identificação de um registro fóssil entre camadas de rocha que possa ser apontado como o marcador da época. Esse marcador precisa ser encontrado entre os sedimentos rochosos de qualquer parte do mundo. É preciso também definir quando se inicia esse novo período. 

No caso do Antropoceno, entre os geólogos, o início é exatamente o ponto de mais difícil e controversa definição. Discutem se teria começado no século 20, com o uso da energia nuclear e vertiginosa aceleração da queima de combustíveis fósseis, da perda de biodiversidade e do uso do solo e da água, dentre outros fatores; ou com os impactos ecológicos originados do aparecimento da agricultura, há 10 mil anos; ou da revolução industrial, na Europa Ocidental, a partir do século 18; ou da colonização das Américas e do Pacífico a partir dos séculos 15 e 16. 

Para os geólogos, o Antropoceno, para ser formalizado, precisaria ter raízes muito profundas no tempo geológico. A hipótese, então, do início da nova época no século 20 é a que mais enfrenta oposição e resistência.

Para os geólogos, o Antropoceno, para ser formalizado, precisaria ter raízes muito profundas no tempo geológico

Ocorre, no entanto, que a proposta do início do Antropoceno no século 20 é a mais aceita entre os cientistas do Sistema Terra. Aliás, foi desse campo multidisciplinar que partiram as discussões sobre mudanças climáticas e a própria proposta do Antropoceno nos anos 2000. 

As Ciências do Sistema Terra (CST), por sua vez, investigam objetos completamente diferentes dos geólogos: estudam as condições biotermodinâmicas do planeta, ou seja, como está seu equilíbrio na relação com os seres vivos, considerando fatores como temperatura, clima e energia. Argumentam que o sistema terrestre se encontra em um novo estado, sem precedentes na sua história geológica, e que esse novo estado deriva, em grande medida, do impacto das ações humanas. 

O planeta, então, está desequilibrado nas dinâmicas interconectadas que permitem a vida. Os humanos interferiram nesse equilíbrio, e a Terra está ‘esquentando’, como em uma febre planetária.

Limites planetários

Se os geólogos estão buscando identificar um marcador estratigráfico global, os cientistas das CST têm se ocupado em investigar mudanças no sistema terrestre, a partir dos chamados ‘limites planetários’. Esses limites dizem respeito ao clima, à acidez dos oceanos, à biodiversidade, ao uso da terra e da água doce, à densidade do ozônio estratosférico, dentre outros elementos. 

Como esses limites vêm sendo ultrapassados – e mesmo exauridos até a irreversibilidade em taxas jamais vistas, sobretudo, a partir da segunda metade do século 20 –, o Antropoceno marcaria, a partir dessa data, o fim do Holoceno, época que começou há 11 mil e 700 anos e foi caracterizada pela estabilidade climática e ambiental que permitiu a dispersão da espécie humana pelo planeta. 

Não haveria mais possibilidade de retorno ao Holoceno, porque o Antropoceno não é uma crise ecológica provisória, ou expressão de destruição ambiental que se replanta ou se despolui. É, na verdade, uma completa transformação sistêmica no funcionamento do Sistema Terra. Não é mudança, mas ruptura, um ponto de não retorno, como tem afirmado o cientista brasileiro Carlos Nobre em entrevistas.

Não haveria mais possibilidade de retorno ao Holoceno, porque o Antropoceno não é uma crise ecológica provisória, ou expressão de destruição ambiental que se replanta ou se despolui. É, na verdade, uma completa transformação sistêmica no funcionamento do Sistema Terra

Então, apesar de a proposta do Antropoceno envolver uma nova periodização geológica, ela já se configurou efetivamente como problemática científica a partir da emergência das Ciências do Sistema Terra. Não se trata de uma disputa de ‘o certo’ versus ‘o errado’, de conhecimento atualizado versus conhecimento ultrapassado, mas de diferentes abordagens disciplinares sobre o mesmo objeto. A recusa dos geólogos, portanto, não invalida nem encerra a discussão científica sobre o Antropoceno.

O debate segue vivo, inclusive, nas ciências sociais e humanas, que também têm se dedicado a análises, como dizem os historiadores franceses Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz no seu livro O Acontecimento Antropoceno (2024), que configurem respostas às perguntas: como chegamos até aqui? O que fazer agora? Quais humanos estão efetivamente implicados na origem das mudanças climáticas? 

Alguns teóricos das humanidades têm criticado o conceito de Antropoceno tanto quanto proposto outras nomenclaturas que evidenciem aspectos invisibilizados nas propostas geológica e climática, uma vez que atribuem, de maneira indiscriminada, à toda a espécie humana, a responsabilidade pelas transformações planetárias. 

Esses conceitos não são recomendações alternativas formais para a geologia e as Ciências do Sistema Terra. Buscam chamar a atenção para processos históricos e socioeconômicos que estão na origem das mudanças no sistema terrestre e formular fortes críticas aos empreendimentos coloniais e modernizantes que resultaram em processos de perda da sociobiodiversidade, ou seja, de domesticação de espécies vegetais, animais e populações humanas racializadas; violência que atinge sobretudo os territórios dos povos originários e tradicionais. 

Bonneuil e Fressoz, no seu livro citado acima, explicam esses termos, como Tecnoceno, Plantationceno, Capitaloceno, Lixoceno, Sojaceno, Negroceno, Angloceno e Termoceno, dentre outros. Independentemente da definição usada, a responsabilidade por termos chegado até aqui, como dizem esses autores, é colonial, urbana, industrial, consumista, nuclear e química.

Pontos de consenso

Por trás dessa enorme diversidade de conceitos, metodologias e abordagens das ciências sociais e humanas no debate do Antropoceno, há dois pontos de consenso: o primeiro deles, a necessidade de superação do chamado excepcionalismo humano, ou seja, da ideia secular de que o Homo sapiens é a espécie mais importante em 4,5 bilhões de anos de história planetária, a medida de todas as coisas, uma entidade de direitos exclusivos sobre o planeta, apartada do que se conhece por natureza, podendo dela dispor quando e como quiser. 

O outro consenso é que a negativa da formalização do Antropoceno pelos geólogos pode alimentar o negacionismo científico, confundindo a sociedade, como se as mudanças climáticas não existissem, ou como se as mudanças climáticas não tivessem origem nas ações humanas, o que pode resultar no apagamento completo das responsabilidades históricas pelas atuais calamidades climáticas.

Defendemos então, urgentemente, que deixemos de ver a natureza como algo externo, separado do mundo humano, como mercadoria, como diz o filósofo e liderança indígena Davi Kopenawa, ou como ‘meio ambiente’, como nas palavras de Bonneuil e Fressoz, ou seja, como o que meramente nos circunda, o lugar de onde extraímos recursos, onde despejamos lixo e devemos deixar algumas coisas virgens. 

É preciso uma rediscussão também do que significa a própria humanidade, generalizada como categoria antinatural e agregada em números na pesquisa global sobre mudanças climáticas. Não existe uma única maneira completamente uniformizada de habitar o planeta, sem nenhuma ligação com o local, com as condições objetivas de sobrevivência e as relações com as pessoas e outras espécies do lugar em que se vive. Isso significa que as injustiças ambientais e sociais invisibilizadas pela pretensa universalidade do Antropoceno precisam ser discutidas por todos os cientistas.

As injustiças ambientais e sociais invisibilizadas pela pretensa universalidade do Antropoceno precisam ser discutidas por todos os cientistas

Como vemos, para entender melhor a complexidade e o desafio existencial que o Antropoceno significa para todas as espécies, é preciso rever enquadramentos disciplinares rígidos e mais tradicionais: geólogos, cientistas climáticos e cientistas sociais precisamos trabalhar juntos. Nenhuma disciplina detém a exclusividade como porta-voz do planeta, da espécie ou da reconexão dos humanos com a biosfera. 

Entramos em um mundo e um tempo de limites, inclusive dos próprios conhecimentos científicos. Estudiosos temem que o planeta tenha entrado em território desconhecido e imprevisível.

Por isso, nós, cientistas sociais, também insistimos em uma ampliação do debate público sobre o Antropoceno, porque, afinal, envolve questões existenciais que interessam a todas as diferentes sociedades: como será o futuro? Como devemos trabalhar, criar filhos? O que vamos poder comer? Onde vamos poder morar?

 A filósofa das ciências belga Isabelle Stengers, no seu livro Uma outra ciência é possível (2023), sugere que cada parte interessada no futuro do planeta deve ter o direito de apresentar o seu saber, de forma que todas e todos nos beneficiemos da multiplicidade de pontos de vista. 

No lugar de conhecimento ‘sobre’ algo, optemos pela cosmopolítica, ou seja, uma política que produz novos mundos, tal como já defende o conhecimento indígena, sugere a historiadora Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack, em seu artigo ‘Um fazer histórico xamânico’ (2023). Ou seja, Seixlack destaca que importam outras formas de fazer as coisas. 

Fazer ciência passa a ser uma simbiogênese, como propõe a bióloga e historiadora estadunidense Donna Haraway, em o Manifesto das espécies companheiras (2021), ou seja, são as conexões que permitem a vida dos envolvidos. 

Então, além das alianças transdisciplinares entre as ciências e da intensificação do debate público, os saberes indígenas também são cruciais para a vida no planeta agora. As sociedades indígenas têm pegada de carbono zero, promovem biodiversidade e se orientam por forte ética relacional e horizontal com outras espécies. 

Além disso, como ressalta o filósofo indígena Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), as sociedades indígenas já enfrentaram seu Antropoceno, o fim do seu mundo com a colonização europeia. São, assim, especialistas na criação de novos mundos e seu conhecimento pode nos ajudar a pensar alternativas ao imaginário apocalíptico frequentemente associado ao Antropoceno. 

Como dizem a filósofa Déborah Danowski e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no seu livro Há mundo por vir? (2017), engajar-se em diálogo com o conhecimento indígena representa o único futuro possível, não um retorno ao passado. 

Então, todas e todos podemos e devemos falar do Antropoceno. Aliás, nossa única chance de vidas menos hostis é com a completa transformação dos saberes e alianças para o Antropoceno. 

Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack. Um fazer histórico xamânico: o potencial cosmo-histórico de reconectar territórios no Antropoceno. Topoi (Rio de Janeiro), 24(54), 725–746, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237-101X02405405

André Felipe Cândido da Silva Silva. “Antropoceno é um chamado para imaginarmos outros padrões de interação com o planeta”. Entrevista Invivo Museu da Vida Fiocruz, 2022. Disponível em: https://www.invivo.fiocruz.br/entrevista-antropoceno-e-um-chamado-para-imaginarmos-outros-padroes-de-interacao-com-o-planeta/

Christophe Bonneuil; Jean-Baptiste FRESSOZ O Acontecimento Antropoceno: a Terra, a História e Nós. São Paulo: Quina Editora; Campinas: Ed. da Unicamp, 2024.

Davi Kopenawa; Bruce Albert. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Déborah Danowski; Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie/Instituto Socioambiental, 2017.

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