Manifestações culturais genuinamente brasileiras, o samba e o choro são dois dos ritmos musicais mais bem-sucedidos do país. Desde o aparecimento do samba urbano – entre as décadas de 1910 e 1920 – até o desenvolvimento de suas vertentes mais comerciais como o pagode, esse tipo de música serve como estudo de caso para compreender o gosto musical do brasileiro.

O sociólogo Dmitri Cerboncini-Fernandes acaba de traçar um histórico do samba, do choro e suas ramificações em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo, buscando entender a divisão simbólica entre os sambistas chamados autênticos e os inautênticos. A tese foi intitulada ‘A inteligência da música popular’ – a ‘autenticidade’ no samba e no choro.

De acordo com o pesquisador, no início do século 20 e em meio a uma confusão classificatória gritante, nomenclaturas como maxixe e embolada – com significado diferente dos atuais – foram desaparecendo e passaram a ser chamadas de samba, se tivessem versos, ou choro, se fossem sem letra.

“E foi justamente na época de 1920 e 1930 que começou a surgiu a separação entre gêneros musicais populares autênticos e inautênticos”, aponta Cerboncini-Fernandes.

Rótulos: o papel da mídia

A divisão entre essas duas categorias foi construída pelos próprios críticos de música da época. Graças à popularização dos jornais e rádios no Brasil, as opiniões desses profissionais influenciavam um público cada vez maior. De outro lado, figuras de grande prestígio, como o poeta Mário de Andrade, também escreviam sobre música popular para veículos como A Gazeta e A Cigarra.

O compositor Heitor Villa-Lobos era outro que fazia parte desse corpo respeitado de críticos musicais que “consideravam o verdadeiro samba como o vindo do morro; caso tivesse vindo da cidade, não poderia ter a intenção de gerar lucro, de vender discos”, afirma o sociólogo. 

Críticos musicais consideravam o verdadeiro samba como o vindo do morro; caso tivesse vindo da cidade, não poderia ter a intenção de gerar lucro

Além disso, não era incomum que críticos fossem amigos e parceiros profissionais de sambistas. Frequentavam os ranchos carnavalescos da época e muitas vezes tinham interesse pessoal de separar o autêntico do inautêntico. Para Cerboncini-Fernandes, autêntico era, na maioria das vezes, o que os amigos deles e eles próprios faziam e defendiam. Inautênticos eram os grupos rivais que surgiam.

Em meados de 1950, o jornalista Lúcio Rangel fundou a Revista da Música Popular, reunindo intelectuais como Rubem Braga, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira, que partilhavam dessa distinção entre autênticos e inautênticos. “De certo modo, eles eram nacionalistas e passaram a fomentar uma discussão em alto nível sobre a questão da música popular urbana nesse veículo”, diz o sociólogo.

Nas décadas de 1960 e 1970, críticos como Sérgio Cabral, Ricardo Cravo Albin e Hermínio Bello de Carvalho mantiveram essa dinâmica que abriu espaço para a criação da Fundação Nacional de Artes (Funarte). De acordo com o pesquisador, ela fez parte dos esforços de aproximação do governo militar com a classe média de esquerda.

Nesse período, o samba autêntico não precisava necessariamente apoiar a militância de esquerda, mas deveria ser composto por pessoas ligadas ao movimento de oposição.

Cerboncini-Fernandes cita Agenor de Oliveira, o Cartola, que nunca foi engajado politicamente, porém a turma da qual ele fazia parte era de jornalistas e produtores musicais que mantiveram essa chama de autênticos e inautênticos acesa. Assim, o sambista se tornou um dos baluartes do samba de raiz.

Combate estrutural

Novas vertentes do samba se desenvolveram livremente desde então e o ciclo de ascensão de novos artistas seguido pela perda do status de sambista tradicional se repetiu.

Em 1950, o inimigo da ‘autenticidade’ era o samba-canção, na figura do criticado Cauby Peixoto. Nas décadas de 1960 e 1970, quem ameaçava o samba de raiz era o chamado sambão-joia.

Com o pagode dos anos 1980, os cariocas do Fundo de Quintal, Almir Guineto e Zeca Pagodinho trouxeram inovação e foram taxados como impuros pelos mais ortodoxos. Nos anos 1990, bandas como Exaltasamba e Sensação foram sucessos de vendas, mas execrados pela crítica especializada.

Zeca Pagodinho
Com o pagode dos anos 1980, os cariocas do Fundo de Quintal, Almir Guineto e Zeca Pagodinho (na foto) trouxeram inovação e foram taxados como impuros pelos mais ortodoxos. (foto: Fernando Madeira/ CC BY-NC-ND 2.0)

Para o sociólogo, o modo como estruturalmente esse universo simbólico do choro e do samba se armou é voltado para a retaguarda. Após a consolidação de um grupo como autêntico, grandes mudanças em relação às letras, aos instrumentos e ao ritmo passam a ser consideradas desvios do padrão e devem ser excluídas do universo desse samba puro.

A armadilha do sucesso

O sucesso comercial é tido como um grande causador da perda de autenticidade desses grupos. Ainda na década de 1930, as vendagens de discos eram cada vez mais altas e os sambistas de grande sucesso eram sistematicamente rotulados como inautênticos.

“Se quiserem fazer o que bem entender e ninguém prestar atenção, tudo bem. Agora, se acontecer desse pessoal que eu chamo de heterodoxo ter algum sucesso comercial, obviamente será atacado”, afirma Cerboncini-Fernandes se referindo ao grande sucesso de público de grupos de pagode dos anos 1990, do sambão-joia nos anos 1980 e do samba-canção na década de 1950 – entre outros estilos de sucesso negados como samba.

Os próprios sambistas tradicionais, vendo a vigorosa ascensão de novas ramificações, passaram a atuar na defensiva, com a composição de músicas que anunciam a iminência do fim do samba. “Eles se sentem acuados ao ponto de fazer canções dizendo que o samba vai morrer, que o samba vai acabar”, diz o sociólogo, citando o exemplo de ‘Agoniza mas não morre’, de Nelson Sargento, composta em resposta à ascensão do sambão-joia dos anos 1970.

Assista ao vídeo de Nelson Sargento cantando ‘Agoniza mas não morre’ com Teresa Cristina

Para ele, o temor de morte do samba é produzido pela própria estrutura do meio. “Vemos, não só nos discursos desses personagens, mas também nos próprios versos das canções, essa estrutura sendo anunciada e reproduzida.”

Divisão social

A partir de uma série de entrevistas com o público carioca e paulista e com os próprios sambistas e chorões, o sociólogo percebeu que os envolvidos em diferentes estilos costumam vir de classes sociais distintas. A partir dessas informações, foi constatado que os consumidores e produtores do pagode dos anos 1990, por exemplo, vêm de camadas sociais com poucos recursos.

“Eles tinham uma educação formal muito baixa, quase ninguém havia feito faculdade –  tanto o público quantos os músicos –, geralmente vinham da periferia de São Paulo ou da Zona Norte do Rio de Janeiro. Em contrapartida, o samba tradicional tem hoje um público muito diferenciado”, afirma Cerboncini-Fernandes.

O samba tradicional é desde décadas atrás um samba muito mais elitizado do que os pagodes e outras ondas que são execradas pela crítica

Sambistas considerados autênticos, como Paulinho da Viola, dificilmente fazem shows em casas de espetáculos pequenas e cobram preços altos pelas suas apresentações.

Para o sociólogo, o samba tradicional é desde décadas atrás um samba muito mais elitizado do que os pagodes e outras ondas que são execradas pela crítica musical; tem um público bem escolarizado, pertencente a uma classe média que tem engajamento político e ainda uma noção nacionalista. “Os críticos também provêm dessa camada da população e acabam sendo porta-vozes que reafirmam todo o seu ideário.”

Cerboncini-Fernandes acredita que essas noções de autenticidade e inautenticidade se cristalizam como transfigurações simbólicas de lutas entre diferentes camadas sociais. Essas frações da sociedade se segregam e não reconhecem as inovações como parte da evolução do samba, mas como uma perda da tradição dessa música popular brasileira.

Rafael Foltram
Ciência Hoje/ SP

Texto originalmente publicado na CH 283 (julho de 2011).

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