O setor elétrico e as mudanças climáticas

Um dos ditados mais corretos que conheço diz: “Tudo na vida tem dois lados”. É bem isso que ocorre quando falamos sobre o setor elétrico brasileiro e as mudanças climáticas. Nosso país tem enorme potencial hidroelétrico, o que nos permite gerar energia elétrica razoavelmente ‘limpa’ e barata. Essa fonte responde, atualmente, por cerca de 70% da energia elétrica consumida no país.

Entretanto, para que possamos usufruir dessa energia, precisamos transportá-la a longas distâncias – muitas vezes, milhares de quilômetros – por meio de linhas de transmissão aéreas, expostas ao tempo e a seus caprichos. E esses caprichos, segundo estudos científicos, tendem a se tornar cada vez mais frequentes em um planeta sujeito a mudanças climáticas em um ritmo jamais visto pelos humanos.

A experiência brasileira mostra isso. Entre 50% e 70% das falhas ocorridas no passado em linhas de transmissão brasileiras estavam relacionadas, de alguma forma, às condições climáticas – mais especificamente, às chamadas tempestades intensas ou tempestades severas, segundo um jargão comum, embora tecnicamente pouco preciso.

Esses temporais mais fortes, embora representem apenas cerca de 1% das tempestades que ocorrem no país, caracterizam-se por condições extremas de vento, raios ou precipitação – chuva, na linguagem corrente. Combinados ou de forma isolada, esses fenômenos são capazes de interromper o fluxo de energia ao longo das linhas, interferindo de maneira significativa no sistema elétrico.

Estudo do Elat estima quehaverá um crescimento de 10% a 30% no número de tempestades a cada graude aumento da temperatura global

No Brasil, país com a maior incidência de tempestades no mundo (cerca de 500 mil tempestades por ano), mesmo esse pequeno percentual (1%) equivale a um número expressivo de temporais (algo em torno de 5 mil/ano).

Com o aquecimento global, esse número tende a aumentar nas próximas décadas. Estudo elaborado pelo Elat a partir de modelos numéricos estima que haverá um crescimento de 10% a 30% no número de tempestades a cada grau de aumento da temperatura global.

A esse risco deve ser somada uma possível intensificação das tempestades. Observações feitas pelo Elat revelam que a intensificação das tempestades já faz parte da realidade. No Sudeste brasileiro, por exemplo, tempestades com mais de mil raios em uma hora vêm se tornando cada vez mais comuns. Nos últimos três anos, tais tempestades foram registradas em São Paulo (SP), Taubaté (SP), Mogi das Cruzes (SP), Belo Horizonte (MG), Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ) e em muitas outras cidades.

Se as alterações do clima podem causar problemas na transmissão de energia, na distribuição a situação não é diferente. A quase totalidade (99%) das redes de distribuição de energia elétrica existentes no Brasil também é aérea e concentra-se em grandes áreas urbanas, onde vive a maioria dos consumidores.

Nessas áreas, as edificações, a substituição da vegetação por asfalto e a poluição dos automóveis e das fábricas causam alterações atmosféricas (como aumento da temperatura, aumento da concentração de partículas no ar e redução dos ventos) que favorecem a ocorrência de fortes tempestades. Na maior cidade do país, São Paulo, por exemplo, a frequência das tempestades cresceu cerca de 60% nos últimos 50 anos, com um aumento mais significativo na década de 1970, exatamente o período em que a população dessa metrópole mais cresceu.

Tempestade
Tempestades intensas podem interferir de maneira significativa no sistema elétrico brasileiro. (foto: Roger Kirby/ Scx.hu)

Os danos provocados por raios nas redes de distribuição podem se tornar ainda mais frequentes se levarmos em consideração o novo modelo de rede de distribuição que começa a ser adotado no país e no mundo – o modelo de redes inteligentes (ou smart grids, como são chamadas tecnicamente).

Essas redes, baseadas no uso de equipamentos digitais para monitorar a distribuição em tempo real e na possibilidade de utilizar diferentes fontes de energia, devem transformar radicalmente o sistema elétrico nas próximas duas décadas, possibilitando, entre as concessionárias de energia e os consumidores, uma interatividade similar à existente nas redes de computadores. Essa transformação se dará tanto na disponibilização quanto no consumo de energia, levando, inclusive, à economia desse recurso.

No entanto, a busca de maior comodidade para os consumidores, maior controle operacional pelas empresas e maior flexibilidade da rede (no sentido de utilizar fontes alternativas de energia) tende a torná-las mais sofisticadas e, ao mesmo tempo, mais vulneráveis a descargas elétricas.

No futuro, as redes de energia precisarão contar com o potencial hidrelétrico ainda quase inexplorado da Amazônia, onde deverá ocorrer o maior aumento de temperatura e de tempestades

Essa maior vulnerabilidade decorrerá da introdução no sistema de um número maior de equipamentos dependentes de componentes que contêm semicondutores, mas suscetíveis a danos por raios, e de um número maior de conexões com circuitos que operam em baixa tensão, mais sensíveis às tensões induzidas também por raios.

Finalmente, é importante salientar que, no futuro, as redes de energia precisarão contar com o potencial hidrelétrico ainda quase inexplorado da Amazônia. Hoje, utilizamos apenas cerca de 30% do potencial hidrelétrico nacional, e a maior parte do restante está na região Norte. Por outro lado, segundo as projeções climáticas baseadas em modelos computacionais, nessa região deverá ocorrer o maior aumento de temperatura e de tempestades.

Outro aspecto relevante está na necessidade – cada vez maior – de adequar tais redes às normas legais de proteção e conservação ambiental. Por isso, em alguns casos, como o aumento da altura das torres ou da extensão das linhas de uma rede de transmissão (para evitar ou contornar uma área protegida), essa necessidade poderá ampliar a chance de problemas decorrentes de fatores climáticos.

O setor elétrico brasileiro ainda é baseado no modelo criado há mais de um século, quando a primeira linha de transmissão foi instalada em Nova York (Estados Unidos), mas deverá mudar radicalmente no futuro. Se quisermos que um novo modelo sobreviva por mais um século, teremos de enfrentar com inteligência e sabedoria as mudanças do clima.

Osmar Pinto Júnior

Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat)
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

Texto originalmente publicado na CH 280 (abril de 2011).

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