Desde que o Brasil conheceu os rudimentos de um processo democrático – a partir de 1946 –, o período aberto com a Constituição de 5 de outubro de 1988 é o mais duradouro. A Carta de 1946 foi revogada pela força do Golpe de 1964, que legou ao país uma Constituição outorgada em 1967 e uma Emenda Constitucional, em 1969. Esta deu ‘forma legal’ ao arbítrio, se é que isso faz algum sentido. Assim, a Carta de 1988, com seus 20 anos, é o documento mais longevo do processo de democratização brasileiro.

Com a redemocratização do país, a partir de 1985, a onda de reformas e expectativas liberalizantes incluiu a pressão pela convocação de uma Assembléia Constituinte. Os trabalhos foram concluídos em outubro de 1988, com a célebre declaração do Presidente da Assembléia, o deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), de que o texto da carta a caracterizava como a “Constituição Cidadã”.

Dois mitos acabaram por fixar-se na nossa percepção a respeito da Carta de 1988: o de que é excessivamente detalhista e o de que estabelece direitos em excesso, sem conseqüências práticas.

Os que defendem a primeira opinião julgam que a qualidade de uma Constituição depende de sua concisão. Tomam a Constituição dos Estados Unidos como exemplo, esquecidos das incontáveis peças de jurisprudência, produzidas pela Suprema Corte daquele país, nos últimos dois séculos, e que valem como orientação e aplicação constitucional. A Carta brasileira foi produzida em inédito ambiente de abertura à participação externa: emendas populares foram apresentadas e sempre foi intensa a presença do público, por vezes em contato direto com os constituintes.

Além disso, graças à orientação do relator da Constituição, senador Mário Covas (1930-2001), o processo de elaboração foi descentralizado. Nada semelhante ao processo tradicional, no qual uma comissão de notáveis prepara o texto e a Assembléia o vota, com poucas alterações. Os detalhes da Constituição expressam as orientações ali fixadas pelos constituintes, envolvidos em sua elaboração por meio de um processo altamente includente: todos estiveram envolvidos em comissões e subcomissões, não se limitando, pois, a votar resultados finais.

Direitos extensos e inaplicáveis?
O segundo mito diz respeito à extensão e à inaplicabilidade dos direitos incluídos na Carta. Com efeito, a Constituição de 1988 distingue-se das demais pelo papel e pela força ocupada pelos direitos dos cidadãos, em seu Preâmbulo e no capítulo dos Direitos Fundamentais. O próprio Estado brasileiro é ali definido como um “Estado Democrático de Direito”. Isso significa que, mais do que um conjunto de instituições e leis, o Estado tem finalidades éticas e sociais, concretizadas em uma série de direitos fundamentais, acompanhados de mecanismos processuais para torná-los eficazes.

A Constituição de 1988 difere, ainda, de textos constitucionais caracterizados pelo simples estabelecimento das regras que devem governar a interação dos cidadãos. Tais textos apresentam-se como neutros e cuidam tão somente da definição dos procedimentos a serem seguidos pelos indivíduos e pelos grupos sociais – trata-se, pode-se dizer, de um tipo de Constituição ‘prefigurada pelos fatos’.

Na Carta de 1988, dá-se o contrário: o texto constitucional, mais do que cuidar do país tal como ele é, indica o que ele deve ser. Nesse sentido, o texto sempre estará em dissonância com a experiência imediata, por constituir um programa permanente de democratização do país, com implicações fortemente igualitárias.

É fundamental que o país ‘aprenda’ a Constituição. Além dos direitos, ali estão estabelecidos os mecanismos para concretizá-los. No lugar do vago patriotismo sazonal que nos assalta em eventos esportivos, seria interessante que adotássemos aquilo que certa vez o filósofo alemão Jürgen Habermas definiu como “patriotismo constitucional”.

Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro,
da Universidade Candido Mendes,
e Universidade Federal Fluminense
[email protected]

 

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