A extraordinária capacidade do cérebro de se modificar em resposta a desafios do ambiente é o que nos garante a possibilidade de aprender e exibir novos padrões de comportamento. Além disso, em termos biológicos, é essa aptidão que permite ao nosso organismo responder a intervenções terapêuticas que visam reverter os sintomas e o curso de doenças neuropsiquiátricas. Essa capacidade de transformação – denominada neuroplasticidade – nos faz únicos.
Assim, aumentar a flexibilidade cerebral para possibilitar melhores respostas terapêuticas tem sido um dos grandes desafios da neurobiologia moderna. Já se sabia que certos fármacos, como, por exemplo, alguns antidepressivos, são importantes indutores de neuroplasticidade, bem como os exercícios físicos, a interação social e outros fatores ambientais. Hoje, porém, um novo fator emerge com grande potencial para acionar a neuroplasticidade: a nutrição.
Numerosas evidências, obtidas principalmente em estudos com animais, revelam que fatores nutricionais – como a redução do consumo de calorias (restrição calórica) e dietas ricas em compostos como polifenóis e ômega-3 – podem aumentar a plasticidade no hipocampo, estrutura do cérebro essencial para a aprendizagem e a memória e para a regulação do humor e da ansiedade. Tais intervenções nutricionais com efeitos terapêuticos são chamadas de nutracêuticas. Em roedores, por exemplo, essas dietas foram associadas à capacidade do hipocampo de gerar novos neurônios funcionais, mesmo em animais adultos.
Por outro lado, uma alimentação rica em gorduras e carboidratos – conhecida como ‘dieta de cafeteria’ – tem sido associada a prejuízos no funcionamento cerebral e na saúde mental.
Portanto, os estudos têm mostrado, de modo inovador, que fatores nutricionais são capazes de modificar o funcionamento cerebral e podem contribuir para prevenir e combater transtornos neuropsiquiátricos. Como? Vejamos algumas hipóteses.
Comer menos e viver mais
O interesse da comunidade científica pela redução do consumo de calorias começou com os trabalhos do bioquímico norte-americano Clive McCay (1898-1967) e colaboradores na década de 1930, demonstrando que a restrição calórica aumentava significativamente a longevidade em ratos. A restrição não só aumentou a expectativa de vida, mas também a de saúde, isto é, o tempo vital livre de patologias.
Em termos de benefícios para o cérebro, pesquisas em roedores indicam que a restrição calórica aumenta a atividade elétrica e a atividade nas sinapses (sítios de comunicação entre neurônios), bem como a produção de fatores tróficos (moléculas de sinalização cerebral envolvidas na sobrevivência das células e na comunicação entre neurônios). Mas por que isso ocorreria?
Do ponto de vista teórico, a resposta à restrição calórica é considerada um caso de ‘hormese’, fenômeno caracterizado pelo surgimento de efeitos adaptativos quando um organismo (ou célula) é exposto a doses leves de fatores estressantes. Assim, quando houvesse restrição calórica – não se trata de privação alimentar ou restrição severa, em que níveis mínimos de proteínas, vitaminas e minerais não são preservados –, o cérebro responderia produzindo moléculas ‘protetoras’ de suas células.
Interessantemente, os cardiologistas japoneses Takuya Kishi e Kenji Sunagawa, da Universidade de Kyushu, propuseram em 2012 que restrição calórica e exercício físico têm ação combinada (sinérgica) na prevenção do declínio cognitivo em ratos hipertensos. Esse efeito está ligado, possivelmente, ao aumento dos níveis do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), proteína envolvida na neuroplasticidade. A associação de redução de calorias e exercício também levou a melhora cognitiva em humanos com mais de 50 anos.
Vale ressaltar que a restrição calórica não é indicada para crianças e gestantes, e não se sabe com precisão que grupos ela beneficiaria. Os melhores efeitos têm sido observados em pessoas com massa corporal entre o normal e o sobrepeso, o que pode indicar que magros ou obesos não seriam beneficiados da mesma forma. Essa e outras hipóteses exigem, portanto, novos estudos.
Apesar disso, o potencial da restrição calórica como indutor de funções ligadas à saúde mental merece a atenção de pesquisadores e, talvez no futuro, dos setores de saúde pública. Estudo da neurocientista norte-americana Megan C. Riddle e colegas, publicado em 2013, mostrou que a redução de 60% na ingestão de alimentos em camundongos adultos, por apenas sete dias, melhorou o aprendizado e a retenção da ‘extinção do medo’ – quando o organismo não exibe mais a resposta de medo mesmo diante de estímulos antes aprendidos como ameaças. Essa condição é alterada em pacientes com transtornos de ansiedade, e novas formas de obter ou manter a extinção do medo seriam importantes no tratamento desses transtornos.
No entanto, a aplicação de regimes de restrição calórica por toda a vida ou em seu início, após o nascimento, parece ter efeitos opostos em ratos, apontando para a necessidade de estudos que definam em que circunstâncias poderiam ter sucesso.
No caso do envelhecimento, os efeitos neuroprotetores da restrição calórica têm sido consistentemente demonstrados: roedores em idade avançada e com reduzida ingestão de alimentos apresentam menores déficits de aprendizado e memória. Em nível molecular, foi demonstrado que a restrição calórica ajuda a manter, em ratos, um número adequado de receptores N-metil-D-aspartato (NMDAr). Esses receptores são fundamentais para a transmissão de sinais entre neurônios mediada pelo neurotransmissor glutamato, importante para o aprendizado e a memória. Manter os níveis de NMDAr durante o envelhecimento ajudaria a preservar a capacidade de formar memórias de longa duração.
Além disso, outros estudos em roedores revelam que a restrição calórica atenua a redução, que ocorre no envelhecimento, da expressão de proteínas importantes nas sinapses. Essa restrição, em modelos animais para a doença de Alzheimer, levou a maior expressão de genes reguladores da neuroplasticidade no hipocampo, bem como menor expressão de genes associados à resposta inflamatória (que tem sido apontada como um fator envolvido nessa doença grave e ainda sem cura).
Como já dito, um dos principais mecanismos de neuroplasticidade é a geração de neurônios no hipocampo ao longo da vida. Denominado neurogênese hipocampal adulta (NHA), esse processo contradiz a ideia antiga de que só geramos neurônios na fase embrionária, durante a gestação. A NHA em adultos foi confirmada em estudo publicado em 2013 pela neurobióloga Kirsty Spalding, do Instituto Karolinska (Suécia) – que não só demonstrou sua ocorrência, mas apontou que as taxas são comparáveis às observadas em roedores. Isso sugere que outros resultados obtidos em animais, no contexto da NHA, provavelmente sejam válidos também para o cérebro humano.
Gisele Pereira Dias,
Anna Claudia Domingos da Silveira da Luz,
Renata Lopes Fleming,
Mário Cesar do Nascimento Bevilaqua e
Antonio Egidio Nardi
Unidade de Neurobiologia Translacional e Unidade de Psicologia do Coaching,
Laboratório de Pânico e Respiração, Instituto de Psiquiatria,
Universidade Federal do Rio de Janeiro