Nos anos 1950, após a morte de Josef Stalin (1879-1953), o líder totalitário da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) desde 1924, o cenário artístico e cultural do país foi marcado por duas realidades antagônicas. De um lado, os soviéticos experimentaram, em variados setores, entre eles as artes e a cultura, um período de maior abertura, conhecido como ‘degelo’ (nome inspirado no romance lançado em 1954 pelo ucraniano Ilya Ehrenburg – 1891-1967), quando foi permitida a publicação e exibição de livros e obras com tons críticos ao regime comunista. De outro, a censura ao conteúdo dessas obras continuou a ser feita, e foi mantida uma postura hostil à cultura ocidental, em especial a norte-americana.

As políticas de isolamento impostas pelo governo comunista, no entanto, não evitaram totalmente a entrada, no sistema soviético, de elementos da cultura ocidental. Um exemplo que confirma esse fato, de forma parcial, envolve o rock and roll, gênero musical originado nos Estados Unidos em meados dos anos 1950. Criticado e censurado pelo partido comunista durante a maior parte da existência da URSS, esse gênero teve uma recepção inicial fria por parte da população dos países do bloco, mas aos poucos ganhou a aceitação dos jovens, o que culminou, nos últimos anos da União Soviética, com a realização autorizada de shows de artistas e grupos de rock locais e de grandes eventos com a participação de astros e bandas ocidentais.

 

Artistas pioneiros

O rock and roll não teve, em sua primeira década (de 1954 a 1964), um grande impacto na União Soviética

O rock and roll não teve, em sua primeira década (de 1954 a 1964), um grande impacto na União Soviética. Nas raras apresentações desse tipo de música no país, nessa época, a recepção do público soviético foi pouco entusiástica. Isso aconteceu, por exemplo, no 6° Festival Internacional da Juventude, realizado em Moscou, em 1957, e em movimentos isolados, como o stilyagi (‘estilo’), que reuniu uma geração de jovens dissidentes originada no pós-Segunda Guerra e no qual alguns artistas criaram obras que transitavam entre o rock e o jazz.

O então secretário-geral do partido comunista, Nikita Kruschev (1890-1971), classificava o rock como um estilo “decadente” e dizia que este se opunha à música produzida na União Soviética. Chegou, em alguns momentos, a afirmar que o gênero norte-americano era uma ameaça à juventude, porque incentivaria práticas como alcoolismo, fascismo, violência e perversão sexual. Essas opiniões justificavam as medidas que restringiam a entrada de material do estilo no país.

Essa realidade começaria a apresentar pequenas mudanças em meados dos anos 1960. Apesar do controle e da censura, muitos jovens soviéticos conseguiram obter, de modo clandestino, discos de artistas norte-americanos – como Chuck Berry, Elvis Presley (1935-1977), Jerry Lee Lewis e Little Richards – e do conjunto inglês The Beatles. Essa ‘importação’ permitiu a formação, de forma discreta e escondida, de uma primeira geração de roqueiros soviéticos, os quais, no decorrer dessa década, criaram suas bandas e até gravaram, de maneira rudimentar, algumas canções. Dessa geração faziam parte artistas como Yan Frenkel (1920-1989), que flertou com o rock em trabalhos localizados, além da cantora Aleksandra Pakhmutova e do grupo Pojuschie Gitary (em tradução livre, Guitarras cantantes).

Chapas de raios X usadas para reproduzir discos
Os artistas soviéticos, como os de rock, gravavam seus discos (frágeis e clandestinos) em chapas usadas de raios X, técnica conhecida como ‘roentgenizdat’. (foto: Wikimedia Commons)

 

‘Pirataria’ comunista

As restrições oficiais fizeram com que parte da juventude soviética, curiosa para conhecer essa música ‘decadente’ do Ocidente, se valesse de meios clandestinos para conseguir material desses artistas. Ainda na segunda metade dos anos 1950, era muito utilizada a técnica denominada roentgenizdat, em que os discos de rock de outros países eram reproduzidos em chapas de raios X – os finos ‘discos’ feitos com esse tipo de material existiam no país desde os anos 1930, devido à escassez de vinil, e até o governo, de forma localizada, usava a técnica para lançar peças sonoras oficiais. As informações sobre como os registros clandestinos eram produzidos, distribuídos e exibidos pelos jovens do país ainda são controversas, mas alguns estudiosos do tema afirmam que dezenas de milhares de roentgenizdats desse tipo teriam sido comercializadas na URSS até 1959, quando o governo comunista endureceu a repressão sobre a atividade.

Com isso, os primeiros roqueiros soviéticos, também impossibilitados de exibir suas músicas nas casas de shows e nas emissoras de televisão e rádio do país, partiram para a prática conhecida como magnitizdat, ou seja, a produção e distribuição de registros sonoros em fitas magnéticas (de rolo ou cassete). Essa nova forma de distribuição – que muitas vezes dependia de gravadores primitivos – floresceu no país entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira metade da década de 1980, e permitiu que a música de artistas regionais chegasse a amigos e colaboradores. Muitos artistas e bandas devem a esses registros sonoros sua sobrevivência artística e a divulgação de seu trabalho e de suas ideias para uma parcela diminuta, mas importante, da população soviética. Após o fim da URSS, grande parte desse material tem sido recuperado, remasterizado e relançado em formatos mais modernos.

Antigo gravador soviético
O antigo gravador soviético Tembr MAG-59M é um dos símbolos da ‘magnitizdat’, quando os artistas de rock só conseguiam divulgar suas novas músicas por meio de fitas. (foto: Wikimedia Commons)

Como parte dessas gravações não era de protesto ou de oposição ao regime comunista, e como as leis do país permitiam aos cidadãos portar e usar gravadores em suas  residências, os órgãos que comandavam a repressão – o Comitê de Segurança do Estado (a KGB) e a organização juvenil do Partido Comunista (o Konsomol) – não tinham como exercer grande controle sobre essas fitas. Por isso, os esforços desses órgãos eram focados nas versões escritas de materiais considerados ‘subversivos’, conhecidos como samizdat.

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Roberto Lopes dos Santos Junior
Escola de Arquivologia, Faculdade de Biblioteconomia,
Universidade Federal do Pará

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