Um espaço para cultura, ciências humanas e saberes interdisciplinares, o suplemento trimestral da Ciência Hoje foi lançado com a CH 269. A primeira edição do encarte traz um artigo de José Reginaldo Santos Gonçalves sobre a moda dos ‘patrimônios’, sejam eles históricos, ecológicos ou imateriais; textos de Luiz Camillo Osório e Paulo Sergio Duarte sobre o lugar da crítica de arte nos dias de hoje; e um ensaio desta página, em que Bernardo Borges Buarque de Hollanda coloca o futebol no meio de campo da história. O encarte completo pode ser lido aqui.
Quem conta a história do futebol brasileiro? De que maneira ela se diferencia do memorialismo e da escrita jornalística? Como a história futebolística é narrada e quais são os seus fundamentos científicos?
Eis algumas perguntas que vêm norteando o trabalho de historiadores do esporte nos últimos anos. Ressalte-se o frescor dessas pesquisas, uma vez que até pouco tempo atrás quase nada havia sido produzido nos departamentos de História das universidades sobre a temática esportiva. Nesse sentido, inspirada nos ensaios estruturais de Roberto DaMatta, a antropologia social já tinha assumido um caráter precursor desde fins da década de 1970, quando uma geração de antropólogos do Museu Nacional defendeu suas primeiras teses acerca do assunto.
É sempre arbitrário determinar um marco zero e mais difícil ainda abarcar todos os livros, sem pecar com omissões ou esquecimentos. Mas, circunscrevendo a obra de historiadores strictu sensu, é possível destacar o livro pioneiro de Joel Rufino dos Santos, História política do futebol brasileiro [PDF] (1981), publicado na série ‘Tudo é História’, da editora Brasiliense. Na mesma série foi lançada a obra introdutória O que é futebol? (1990), de José Sebastião Witter, da Universidade de São Paulo.
No final dos anos 1990, um primeiro processo de institucionalização do campo esportivo acadêmico começou a se manifestar. No Rio, por iniciativa de Francisco Carlos Teixeira da Silva, uma equipe de pesquisadores ligados ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ) se debruçou sobre os arquivos do Clube de Regatas Vasco da Gama. O resultado foi a organização do acervo daquele clube e a publicação de São Januário: arquitetura e história (1998), uma caixa com livros e CD-ROM, de Hamilton e Clara Malhano.
Embora o levantamento arquivístico não tenha sido estendido a outros grandes clubes, a produção acadêmica continuou intensa naquele departamento, com o trabalho do Sport – Laboratório de História do Esporte e do Lazer. Sob liderança de Victor Melo de Andrade, o grupo se caracteriza por abordar o futebol à luz de estudos comparativos com outros esportes. Uma das publicações recentes desse centro, organizada em parceria com a historiadora Mary Del Priore, intitula-se História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais (2009).
Raízes do fenômeno
Em São Paulo, as publicações na área vêm crescendo desde o ensaio seminal de Nicolau Sevcenko: Futebol, metrópoles e desatinos [PDF] (1994). Nele, o historiador correlaciona o advento dos esportes na capital paulistana aos novos parâmetros da modernidade européia e ao impacto da revolução científico-tecnológica de 1870 no país no início do século 20. Para ele, longe de ser apenas efeito do velocíssimo processo de expansão urbana e dos gigantescos condicionamentos técnicos sobre o corpo humano, o futebol seria ao mesmo tempo um vetor da vida moderna e um componente identitário importante no processo de enraizamento do homem do campo às metrópoles que surgem nos anos 1920.
Ainda nesse estado, deve-se apontar o volumoso Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938), de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1998, trata-se de uma original abordagem da introdução do futebol na capital da República. O autor põe em xeque a versão dicotômica consagrada acerca do período do amadorismo – a belle-époque e a exclusividade de seus clubes de elite –, proposta pelo jornalista Mário Filho em O negro no futebol brasileiro (1947).
Sem fazer eco à historiografia canônica, que identifica a popularização do futebol apenas na década de 1930, fruto de uma concessão do Estado, Leonardo reconta a história desse esporte sob novo prisma – “de baixo para cima” –, com base nas ligas operárias e suburbanas, formadas pelos “trabalhadores da bola”, durante a Primeira República.
Em período recente, Flávio de Campos e Hilário Franco Júnior, da USP, vêm ministrando cursos dedicados à compreensão histórica do fenômeno futebolístico. O segundo autor elaborou um denso e completo livro, no qual explora, sob um viés ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico, nacional e internacional, quase todas as latitudes e longitudes do futebol. A dança dos deuses – futebol, cultura e sociedade (2007) situa esse esporte na micro-história da vida contemporânea, difundido em todos os quadrantes da Terra.
Com foco na Europa e no Brasil, Franco Júnior faz do futebol o elemento-síntese, fio condutor das transformações por que passou o mundo após a eclosão da Revolução Industrial, no final do século 18. Além da visão sintética, o futebol também faz as vezes de metáfora que empresta sentido às ações humanas, trazendo em sua prática conotações sociológicas, antropológicas, religiosas, psicológicas e linguísticas insuspeitadas.
Nos dias de hoje, é possível dizer que as dissertações e as teses defendidas na área de história se irradiam por todo o país, de Curitiba a Belém, de Goiânia a Porto Alegre. Seu crescimento se evidencia a cada encontro regional e nacional da Associação Nacional de História (ANPUH).
A cada Copa, mais história
Conforme costuma ocorrer a cada quatro anos, quando se inaugura um novo megaevento esportivo, a Copa do Mundo de 2010 convida à reflexão. Da mesma forma que Gisela de Araújo Moura, em O Rio corre para o Maracanã (1998), sobre a construção do estádio do Maracanã e a realização da Copa de 1950 no Brasil, publicado no ano da Copa na França; e que Rubim Aquino, no panorâmico Futebol, paixão nacional (2002), lançado por ocasião da Copa do Japão e da Coréia, a Copa na África do Sul constitui um momento propício para esse tipo de balanço histórico.
Pelo que se depreende do já considerável elenco de livros, a relação entre futebol e brasilidade é, sem dúvida, o aspecto mais recorrente na historiografia nacional. Pode-se dizer que a identidade nacional é o ponto quase obsedante da reflexão historiográfica, algo compreensível, pois o futebol mobiliza uma gama de questões cruciais no Brasil: o papel do Estado, a composição étnica do povo, o peso da representação regional na nacionalidade, a expansão dos meios de comunicação de massas e a construção da imagem de nação moderna.
É fato que, desde os amistosos entre brasileiros e ingleses no Rio de Janeiro da virada do século 20, a rivalidade dos selecionados se justapunha de modo quase imediato à disputa figurada e simbólica entre dois países. O alcance geopolítico transformará em pouco tempo o sentido lúdico, desinteressado e até certo ponto naïf dessas primeiras partidas internacionais, com a participação brasileira nos Campeonatos Sul-Americanos, instituídos em 1916.
No decênio de 1930, a simbologia nacional crescerá de importância com o aumento da escala dos confrontos internacionais, a partir da criação das Copas do Mundo, momento no qual a alteridade nacional passa a ser confrontada com as equipes de países europeus.
Se o estilo nacional dos anos 1930 traduzia uma forma de jogar que era condizente com a forma de viver considerada típica do brasileiro, reforçando estereótipos como a malandragem e a improvisação, as derrotas do Brasil em partidas decisivas traziam à baila as supostas deficiências do caráter nacional e as carências psicológicas do povo, encarnadas nos jogadores, tais como diagnosticadas por jornalistas e dirigentes esportivos.
Seria preciso esperar uma Era de Ouro, iniciada em 1958 e culminada em 1970, para que a auto-estima nacional se colasse em definitivo à imagem da Seleção canarinho. Desde então, à parte o excesso de confiança quanto à superioridade técnica do jogador brasileiro, as alternâncias positivas e negativas de desempenho produziram calorosas discussões em torno das preferências tático-estilísticas dos treinadores em cada Copa do Mundo – a famosa querela entre futebol-arte e futebol-força –, tornando esse personagem esportivo alvo de incessantes controvérsias.
Jogadores na berlinda
A partir da década de 1990, junto às polêmicas sobre a figura do técnico, um outro ator começou a ser questionado: o jogador de futebol. Decorrência do aumento de circulação internacional do futebol globalizado e da mudança de perfil com a emigração crescente do atleta brasileiro, a identificação de alguns grandes ídolos com os símbolos nacionais passou a se esgarçar e a ser explicada pela imprensa em função dessa nova configuração global, que distancia os jogadores da terra da população de origem.
Assim, em que pese uma atual crise de identidade entre jogadores ‘estrangeiros’ e Seleção brasileira, a ideia de brasilidade continua sendo o esteio com base no qual os historiadores colocam e recolocam o futebol em suas pautas de pesquisa.
Como resultado, eles mostram de que maneira as contínuas metamorfoses da identidade nacional na história republicana evidenciam a condição dinâmica e semovente da brasilidade no âmbito esportivo. Nunca reificada ou essencialista, esta tem se mostrado capaz de reconfigurações surpreendentes, mesmo na contemporaneidade, em meio ao proclamado enfraquecimento do Estado-nação.
Bernardo Borges Buarque de Hollanda
Bolsista recém-doutor do Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e autor de O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego
Texto publicado no encarte Sobre Cultura da CH 269