Animais nem sempre migram em busca de uma boa qualidade de vida – basta que as condições no local de destino sejam melhores do que as do lugar de origem. É o que mostra estudo de pesquisadores brasileiros e do Reino Unido, publicado no Journal of Zoology. O que levaria um peixe-boi amazônico a se arriscar, percorrendo centenas de quilômetros por rios estreitos, onde caçadores o aguardam com um arpão em mãos, para chegar a um lago onde ficará em jejum durante meses?

“O peixe-boi aprende que é vantajoso migrar, embora arriscado”

Esse comportamento, a princípio curioso, é agora explicado por especialistas: “O peixe-boi aprende que durante a vazante do rio é mais vantajoso migrar, embora seja arriscado, pois assim garante que na seca terá espaço aquático para viver e ficar mais protegido dos predadores”, explica Eduardo Arraut, da Divisão de Sensoriamento Remoto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Arraut expandiu a pesquisa de Miriam Marmontel, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que já rastreava os peixes-boi amazônicos desde 1994. Ela e seus colaboradores haviam mostrado que os peixes-boi migram sazonalmente.

“Prendemos um cinto à cauda de cada peixe-boi capturado e que depois era devolvido à natureza. O cinto emite um sinal eletromagnético detectado por uma antena direcional que carregamos no barco, o que possibilita o acompanhamento dos movimentos do animal”, esclarece o pesquisador.

A técnica utilizada é chamada de radiotelemetria e funciona de modo semelhante a uma recepção de sinal de rádio ou televisão. Através dessa técnica, os pesquisadores rastrearam 10 peixes-boi.

Preparados para a seca

“Foi como se perguntássemos aos animais quais os lugares importantes para eles. O mapeamento nos deu a resposta”

Tendo como ponto de partida a descoberta de que os peixes-boi migravam, Arraut, com seu grupo, dedicou-se a descobrir a motivação desse comportamento. “Foi como se perguntássemos aos animais quais os lugares importantes para eles. O mapeamento de sua posição nos deu essa resposta”, diz Arraut.

Uma vez registrados os locais onde os animais passavam mais tempo e definida a sua “área de vida” (polígono hipotético que contorna os pontos que representam as localizações de um animal), iniciou-se o estudo do hábitat, sua caracterização e análise.

“Estivemos em campo, usamos imagens de sensoriamento e analisamos todos os dados em sistemas de informação geográfica. Descobrimos que apesar das macrófitas [plantas aquáticas] serem encontradas em apenas cerca de 5% da área de estudo, elas cobriam de 15% a 45% da área de vida de cada peixe-boi. São, portanto, um alimento vital para eles”, explica.

Peixe-boi com movimentos monitorados
Pesquisadores colocam cinto para monitorar os movimentos do peixe-boi (Foto: ISDM).

Através da análise estatística, os pesquisadores descobriram duas áreas de vida frequentadas por cada animal. Durante a época de cheias, eles ficam na várzea, uma planície onde originalmente há vegetação, que é inundada pelos rios quando o nível de água aumenta. Os animais encontram aí alimento e proteção, pois as macrófitas são abundantes e eles podem esconder-se dos predadores nos labirintos da floresta alta alagada.

Mas por que eles se deslocam, durante a seca, por rios estreitos, onde ficam mais visíveis e correm o risco de serem capturados por pescadores?

A resposta é que, nessa época, os lagos de várzea onde os peixes-boi passam a cheia sofrem uma redução de 90% a 100% da área alagada. Já a ria (lago formado por rio que, após ter sua foz represada naturalmente, sofre alagamento da parte final) para onde migram continua alagada mesmo na seca. As rias têm águas pretas e lá quase não há comida – o animal perde muito peso, mas está protegido dos predadores e encontra mais espaço. 

“A escolha por migrar ou não é ecológica, não genética”

Enquanto isso, os filetes de rios da várzea estão cheios de peixes, o que atrai jacarés, onças e caçadores: ameaças ao peixe-boi. “Um dos nossos bichos não migrou e morreu na várzea. Só encontramos o cinto que estava em sua cauda”, conta Arraut.

Lago Mamirauá, no Amazonas, durante a seca
Vista aérea do Lago Mamirauá, no Amazonas, em 2008, durante o período da seca, quando os peixes-boi se refugiam em lagos com pouca comida, mas a salvo de predadores (Foto: INPE).

Fenômeno ecológico-comportamental

Como o ambiente dos peixes-boi é muito dinâmico, os especialistas não acreditam que houve tempo de ocorrer uma mutação genética que teria conferido essa capacidade de adaptação aos animais, selecionando-os para sobreviver nesse meio. “Para ocorrer a evolução, são necessárias muitas gerações até que o gene se estabeleça. A evolução deu aos peixes-boi a capacidade de migrar, mas a escolha por migrar ou não é ecológica, não genética”, define Arraut.

“Por ser um fenômeno ecológico-comportamental, levantamos a hipótese de que peixes-boi de outros lugares podem escolher migrar ou não migrar, dependendo das condições que o ambiente apresente”, completa.

Na década de 1960, registros de 4 mil a 7 mil animais caçados por ano

Embora vantajosa, a migração dos animais é muito arriscada: na década de 1960, quando a caça ao peixe-boi ainda era legal, houve registros de cerca de 4 mil a 7 mil animais caçados por ano. Nas décadas de 1930 a 1950, os peixes-boi eram mandados para o Rio de Janeiro, São Paulo, Paris e Nova York, onde seu óleo era usado para acender lamparinas nas ruas.

Como o tempo que um peixe-boi leva para se reproduzir varia entre três e cinco anos, houve um colapso populacional e hoje o animal está ameaçado de extinção. Depois da proibição, a caça comercial de grande escala parou, mas até hoje a caça comercial local e a de subsistência são comuns. “E não se sabe ainda se a população de peixes-boi amazônicos está conseguindo se recuperar”, diz Arraut.

 
Raio-X do litoral

Há mais de três décadas na lista dos mamíferos criticamente ameaçados de extinção, os peixes-boi do Nordeste brasileiro serão alvo de um novo mapeamento científico. Pesquisadores do projeto Peixe-Boi, que existe há 30 anos e acaba de ser incorporado ao Instituto Chico Mendes, estão realizando um censo aéreo, desde o início do ano, sobre a população desses mamíferos na região. A última contagem foi feita pela entidade em 1997, com base em questionários respondidos por pescadores.

De acordo com o censo antigo, os animais vivem em uma faixa descontínua, entre Alagoas e Amapá, mas o novo levantamento pode apontar outras áreas habitadas. Por meio de sobrevoos lentos e de baixa altitude, os pesquisadores já verificaram o litoral de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Vinte peixes-boi foram avistados no percurso, que deve continuar pelo Rio Grande do Norte e Ceará. Depois que um modelo estatístico for definido, a população da região poderá ser estimada.

 O projeto Peixe-Boi já resgatou 56 animais encalhados, dos quais 22 foram reintroduzidos à natureza. Destes, 10 são monitorados por radiotelemetria ou satélite, a mesma técnica utilizada pelos pesquisadores que rastrearam e descobriram as causas das migrações dos peixes-bois. Interdisciplinar, o método une áreas diversificadas, como ecologia, sensoriamento remoto e geoprocessamento.

Bruna Ventura
Ciência Hoje/RJ

Texto publicado na Ciência Hoje 269 (abril/2010)

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