A Jerusalém do meio

A temática é LGBT, mas O confeiteiro é um filme abrangente, que busca mostrar os dilemas e incertezas de uma cidade tradicionalista, excludente e misteriosa.

O premiado O confeiteiro é o primeiro longa-metragem do jovem diretor israelense Ofir Graizer. Graizer é mais uma grata surpresa vinda da nova geração de diretores do cinema israelense. Formado na subversiva e periférica Escola Sapir de Cinema (localizada no sul de Israel, próxima à fronteira com a faixa de Gaza), o diretor de O confeiteiro apresenta um filme que faz companhia a uma série de excelentes obras baseadas na temática LGBT naquele país. Tal qual Yossi e Jagger (2002), A bolha (2006), ou Andando sobre a água (2007), a obra de Graizer tem o mérito de ser um filme sobre a ambiência gay, sem deixar, no entanto, de apresentar a sociedade israelense, seus graves dilemas e conflitos.

Seguindo a boa tradição do cinema gay em Israel, O confeiteiro não pretende dirigir-se exclusivamente à comunidade LGBT. Não é um filme de nicho, restrito e baseado em códigos internos desse público; ao contrário, tem uma narrativa complexa e sofisticada, crivada de referências universalistas e com uma forte perspectiva humanista.

O confeiteiro tem como tomadas iniciais a cidade de Berlim. Em um ambiente   melancólico, se desenvolve um romance entre Thomas, dono de uma confeitaria tipicamente berlinense, e Oren, engenheiro israelense que trabalha na cidade. A relação entre ambos se dá até o desaparecimento súbito de Oren, que, conforme Thomas descobre depois, morre em um acidente de carro na cidade de Jerusalém.

A partir daí, a trama se desloca para aquela cidade, para onde Thomas viaja no afã de descobrir mais sobre a vida de seu amante, conhecer Anat, sua viúva, e o filho do casal. Desse momento em diante, o filme sofre uma transformação. Baseado em silêncios e cortes longos, Graizer apresenta ao espectador sua principal personagem: a cidade de Jerulalém.

Aqui, O confeiteiro se diferencia da grande maioria dos filmes LGBTs israelenses, o cenário do drama não é a capital, Tel Aviv, cosmopolita, aberta e inclusiva, mas uma cidade extremamente tradicionalista, excludente e misteriosa.

 

Uma outra Jerusalém

O deslocamento para Jerusalém acontece com a descoberta do centro da cidade. Anat, a mulher de Oren, tem um café encravado no mercado popular, para onde Thomas vai como parte da obsessão de conhecer mais a vida e a história de seu amado. Se o exterior do café apresenta uma Jerusalém barulhenta, empoeirada e cheia de certezas, o diretor nos convida para, em uma narrativa sensível e cuidadosa, conhecermos outra Jerusalém, mais silenciosa, calma e cheia de dúvidas.

No pequeno restaurante, Anat e Thomas parecem nos apresentar essa outra Jerusalém, aquela que o diretor se interessa em descortinar diante de nossos olhos. Uma cidade menos conhecida e, principalmente, menos percebida. A Jerusalém que Graizer nos mostra é a Jerusalém de dentro, e que passa a se impor na narrativa à Jerusalém de fora. É a Jerusalém de dentro do café de Anat, de dentro da solidão de Thomas, de dentro das certezas daqueles que circundam as vidas do improvável casal.


O que transforma o filme de Ofir Graizer justamente em algo especial é a relação que ele impõe com seus cenários; principalmente, com a própria cidade.

De fato, o que transforma o filme de OfirGraizer justamente em algo especial é a relação que ele impõe com seus cenários; principalmente, com a própria cidade. Para além da trama de Anat, Thomas e Oren, Jerusalém passa a nos contar suas histórias, suas dúvidas e seus dramas. Aqui, referências à literatura e à poesia da cidade passam a se impor na tela. Nesse contexto, Anat e Thomas poderiam facilmente ser confundidos com personagens de YehudaAmichai ou, mesmo, de Amos Oz.

O filme apresenta as mazelas e incertezas de pessoas em uma cidade que tenta viver de certezas. O diretor não joga fora as referências, a religião ou a tradição, como fazem, em grande medida, filmes da temática em Israel. O confeiteiro apresenta a vida de pessoas seculares, absolutamente não religiosas, em uma cidade que, ao menos externamente, parece impor tradição e religiosidade.

Anat não tem relação alguma com o mundo que tenta invadir sua loja. Não come kosher, não respeita o shabat e não vê nada demais no fato de um não judeu (justamente um alemão, como afirma seu cunhado) ser contratado como assistente na cozinha de seu pequeno café. Apesar disso, está presa nas teias que a cidade estende para ela.

Usando os termos de Yehuda Amichai, o filme apresenta “a Jerusalém do meio”, a Jerusalém que tenta estar fora da tradição e da ortodoxia, mas que não passa incólume por elas. Os personagens dessa Jerusalém do meio estão longe da cidade sagrada, mas não podem viver em uma Jerusalém completamente secular.

O diretor nos apresenta essa Jerusalém em diálogos incompletos, em sinais exteriores, em imagens simbólicas. São as entrelinhas que nos contam a história. São os personagens simples, os não notados, os cheios de dúvidas, típicos das obras de Amos Oz, que se impõem na trama. Todos, religiosos e não religiosos, parecem estar sempre em enfrentamento com aqueles, religiosos e não religiosos, cheios de certezas.

Não é o divino que marca a diferença entre tradição e secularidade, mas a dúvida, o direito a não ter certeza. A possibilidade de viver fora de fronteiras preestabelecidas, o desafio de desrespeitar esses limites.

A centralidade do direito à dúvida é fundamental na trama do filme até seu final. Nosso desafio como espectador é perceber a importância desse personagem que se impõe de maneira constante e silenciosa — a cidade de Jerusalém.

Michel Gherman

Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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