As mudanças climáticas já afetam nossas vidas

Não se trata de algo que veremos e sentiremos apenas num futuro distante, as mudanças climáticas já estão entre nós. Pesquisador do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais, Argemiro Teixeira afirma que “metade da população mundial já vive sob risco climático, e os impactos são mais graves entre populações urbanas marginalizadas, como os moradores de favelas”. Engenheiro florestal, Teixeira tem trabalhos recentes que quantificam os impactos do desmatamento e das mudanças climáticas na Amazônia e no Cerrado ao agronegócio brasileiro, apontando prejuízos bilionários. O engenheiro florestal também vem avaliando como a crise climática pode ter consequências em setores chave da economia do país e, claro, na vida dos brasileiros: “Mesmo com cortes rápidos de emissões, a população afetada pelas enchentes no Brasil deverá dobrar ou até triplicar”.

CIÊNCIA HOJE: O ano de 2022 começou com várias catástrofes ambientais no Brasil. Até que ponto podemos relacionar chuvas e inundações na Bahia e no Rio de Janeiro, deslizamentos em Minas, entre outros, às mudanças climáticas?

ARGEMIRO TEIXEIRA: Para cada um destes eventos extremos é possível atribuir uma explicação meteorológica. Por exemplo, os extremos de chuva que aconteceram no sul da Bahia, em Minas Gerais, Piauí, Tocantins e Maranhão estão associados ao La Niña. Além disso, no verão é comum a atuação de um sistema meteorológico denominado Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS). Esse sistema é marcado pela presença de uma banda de nebulosidade e chuvas com orientação noroeste-sudeste, que normalmente se estende da Amazônia até o Sul-Sudeste do Brasil, contribuindo para grandes volumes de chuva. Adicionalmente, durante o mês de dezembro de 2021 ocorreu uma rara configuração de três episódios de ZCAS em um curto período, ocasionando os extremos de precipitação. Entretanto, a simultaneidade destes eventos extremos e o aumento da frequência deles nos acende um alerta: este pode ser, sim, mais um efeito da crise climática global. Embora a comunidade científica ainda adote uma cautela antes de associar eventos climáticos específicos às mudanças globais do clima, em conjunto, os eventos climáticos de chuva em algumas regiões e secas em outras sugerem a influência do aquecimento global. Ambos estão potencializados pelo maior aquecimento da atmosfera que, entre outros fatores, afeta a circulação atmosférica. A dinâmica da atmosfera com 419 partes por milhão de CO2 (atualmente) é marcantemente diferente da atmosfera de 280 partes por milhão de CO2 (era pré-industrial).

CH: No Brasil, as catástrofes são muito noticiadas, mas já há efeitos das mudanças climáticas em curso que não chamam tanto a atenção popular, como a desertificação em regiões do Nordeste. Poderia enumerar algumas dessas consequências e se podem ser revertidas?

AT: Diversos estudos recentes apontam o semiárido brasileiro – isso inclui muitas áreas do Nordeste – como uma das regiões do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas. Os impactos das mudanças nos padrões de temperatura e as secas afetarão em cheio a produção agrícola – no Brasil, pouco mais de 13% dos cultivos são irrigados –, a biodiversidade – muitas espécies não estão adaptadas às novas condições climáticas –, bem como o abastecimento residencial e industrial, tanto de água, quanto saneamento e energia – o Brasil é em grande parte dependente da energia hidroelétrica. Especificamente no Nordeste brasileiro, modelos indicam que a temperatura poderá aumentar entre 1.5° C e 2.5° C e, com esse aquecimento, haverá aumento na evaporação e diminuição da disponibilidade hídrica. É bom ressaltar que a seca já é uma ameaça crescente em algumas partes do Brasil. As áreas do Nordeste sujeitas à seca, por exemplo, aumentaram em 65% no período de 2010 a 2019 em comparação a 1950 a 1959.


Diversos estudos recentes apontam o semiárido brasileiro como uma das regiões do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas

CH: Quais lugares do planeta estão sendo (e serão no futuro) mais afetados pelas mudanças climáticas? E em relação aos biomas brasileiros?

AT: Metade da população mundial já vive sob risco climático, e os impactos são mais graves entre populações urbanas marginalizadas, como os moradores de favelas. Em geral, as áreas de alto risco às mudanças climáticas são regiões caracterizadas por grande densidade populacional, altos índices de pobreza e dependência de condições climáticas para o cultivo agrícola. Além disso, é importante falar que as áreas próximas da linha do Equador correm mais riscos do que as áreas temperadas. Todos os modelos mostram que, no Brasil, aumentarão a frequência e intensidade de ondas de calor e, por sua vez, aumentará o número de mortes.

CH: Pode falar dos efeitos dessa crise climática na segurança alimentar e na saúde humana?

AT: Em todo o mundo, altas temperaturas e eventos climáticos extremos como secas, ondas de calor e enchentes já prejudicam a produção de alimentos. O fornecimento internacional de alimentos está sob ameaça. Os riscos de quebra generalizada nas colheitas devido a eventos extremos que atingem locais em todo o mundo aumentarão se as emissões não forem reduzidas rapidamente. Isto poderia levar à escassez global de alimentos e ao aumento de preços, o que prejudicará particularmente as pessoas mais pobres. O novo relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na tradução em português) sugere que esses fatores prejudicarão especialmente a agricultura no Brasil se as temperaturas continuarem a subir. A produção de arroz poderia cair em 6% com altas emissões. A produção de trigo poderia cair 21%, e a de milho poderia cair em até 71% até o final do século no Cerrado. Além disso, a combinação do aumento continuado de emissões de gases de efeito estufa com o desmatamento local pode causar uma queda de 33% na produção de soja e na das pastagens na Amazônia. Os impactos das mudanças climáticas também prejudicarão a pesca e a aquicultura no Brasil. Se as emissões seguirem altas, a produção de peixes cairá em 36% no período 2050-2070 em comparação com 2030-2050. Além de tudo isso, estudos sugerem que as mudanças climáticas refletem em mudanças no ambiente como a alteração de ecossistemas e de ciclos de biológicos, geográficos, e químicos, que podem aumentar a incidência de doenças infecciosas (malária, dengue etc.), mas também doenças não-transmissíveis, que incluem a desnutrição e enfermidades mentais.


Estudos sugerem que as mudanças climáticas refletem em mudanças no ambiente como a alteração de ecossistemas e de ciclos de biológicos, geográficos, e químicos, que podem aumentar a incidência de doenças

CH: O mais recente relatório do IPCC aponta que o nível das emissões de gases do efeito estufa atingiu recordes em 2021, com níveis pré-pandemia. O documento aponta ainda que, se nada for feito, chegaremos ao fim do século com um aumento de 3,2º C na temperatura do planeta. Quais as consequências disso?

AT: Para o futuro, espera-se que os impactos das mudanças climáticas impulsionem ainda mais aumentos nas secas, fortes ondas de calor e eventos extremos hidrogeológicos. As secas se tornarão mais frequentes e afetarão também áreas maiores no sul da Amazônia. Ao mesmo tempo em que se projeta a diminuição da pluviosidade geral em grande parte do Brasil, deve aumentar o número de eventos de chuvas extremas, o que implica aumento na probabilidade de enchentes e deslizamentos de terra. Mesmo com cortes rápidos de emissões, a população afetada pelas enchentes no Brasil deverá dobrar ou até triplicar.

CH: O mesmo relatório do IPCC sugere uma série de medidas para tentar deter o aumento da temperatura do planeta. Pode falar sobre isso e apontar quais medidas acha que, efetivamente, serão adotadas?

AT: A ação climática deve se concentrar em duas estratégias: os esforços de mitigação para reduzir ou remover gases de efeito estufa da atmosfera e os esforços de adaptação para ajustar sistemas e a sociedade para enfrentar os impactos das mudanças climáticas. A adoção dessas medidas depende fortemente das ações governamentais de proteção social e enfrentamento à crise do clima. Para que isso seja possível, os governos devem adotar a ciência como seu norte principal. Algumas ações que, na minha concepção, são efetivas e devem ser priorizadas: aumentar a proteção das áreas úmidas costeiras e recuperar a cobertura global desse tipo de bioma; diversificar a produção pode permitir que o agricultor tenha novas fontes de renda e possa reduzir riscos causados por mudanças climáticas; expandir o uso dos sistemas agroflorestais pode resultar em ganhos financeiros coletivos para produtores; assegurar o direito à terra para os povos indígenas pode garantir que eles mantenham suas terras, protejam recursos naturais e melhorem o seu sustento diante das mudanças climáticas. Além disso, é necessário buscar a redução contínua de emissões específicas de gases de efeito estufa e do balanço líquido de emissões desses gases por meio de ações de redução direta das emissões nos processos de produção, investimentos em captura e sequestro de carbono e/ou apoio às ações de redução de emissões por desmatamento e degradação, considerando a melhor tecnologia disponível.

CH: ONGs, como Greenpeace, têm defendido planos de adaptação climática. O que diria sobre isso?

AT: Os planos de adaptação climática são instrumentos que têm como objetivo promover a redução da vulnerabilidade nacional, ou mesmo de setores e regiões específicas à mudança do clima. Nestes planos devem constar as estratégias de adaptação a serem adotadas, envolvendo a identificação da exposição a impactos atuais e futuros com base em projeções de clima, a identificação e análise da vulnerabilidade a esses possíveis impactos e a definição de ações e diretrizes que promovam a adaptação voltada para cada setor.

CH: Quais os processos e tecnologias usados pelos cientistas para analisar os impactos das mudanças climáticas?

AT: Um dos grandes avanços que podemos citar é a ampla adoção das tecnologias de geoprocessamento e sensoriamento remoto na elaboração de estudos climáticos e ambientais. Hoje, cientistas procuram construir soluções de eficiência energética que reduzam o consumo de água e energia e, portanto, as emissões de gases de efeito estufa; soluções de reciclagem de resíduos sólidos; procedimentos de despoluição de matérias-primas como água, além de processos que busquem a diversificação da matriz energética, mediante adoção de fontes renováveis de energia. Atualmente, somam-se a esses recursos tecnologias mais avançadas como a captura e armazenamento geológico de dióxido de carbono e a geoengenharia, que intervém em grande escala em oceanos e na atmosfera. Gostaria de ressaltar que, antes de tudo, hoje, nós, cientistas, nos valemos de grande potencial de processamento de imensos volumes de dados através do aprendizado de máquina, por exemplo, para que possamos entender o problema ao longo do curso da história.


Um dos grandes avanços é a ampla adoção das tecnologias de geoprocessamento e sensoriamento remoto na elaboração de estudos climáticos e ambientais

CH: É possível destacar alguns dos trabalhos feitos no Brasil nesta área?

AT: Temos importantes avanços no Brasil, embora nos últimos anos a agenda ambiental do governo federal esteja omissa quanto a isso. O governo do presidente Jair Bolsonaro cortou em 93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos três primeiros anos da sua gestão quando comparado com os três anos anteriores. Podemos citar o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), instituído em 10 de maio de 2016 por meio da Portaria nº 150. Observamos ainda que diversas cidades já apresentam ou estão em processo de construção dos seus inventários de emissões de gases do efeito estufa e muitas cidades também já avançam na criação dos planos locais de mitigação das emissões e/ou de adaptação às mudanças climáticas. É importante citar também que muitas abordagens em muitas localidades do país já incluem as mudanças climáticas nos seus planos diretores municipais.


O governo do presidente Jair Bolsonaro cortou em 93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas

Por Valquíria Daher
Jornalista, Instituto Ciência Hoje

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