Um futuro de base florestal

A restauração florestal é a principal agenda da Organização das Nações Unidas (ONU) para enfrentar as mudanças climáticas provocadas pela ação humana. Essa atividade é vista como pouco competitiva devido aos custos elevados e ao baixo retorno monetário direto, o que mostra a necessidade urgente de torná-la atrativa para um público amplo. Opções de restauração usando a biodiversidade podem originar modelos de negócios sustentáveis em benefício do ser humano e da natureza.

CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK

A demanda global pela restauração florestal vem aumentando como forma de enfrentar o impacto humano nas mudanças climáticas e na biodiversidade, segundo sugerem Fangyuan Hua e colaboradores em artigo recente da Science de 2022. Pesquisadores ao redor do mundo buscam respostas para plantar milhões de hectares e trilhões de árvores de modo efetivo e assim impulsionar a mitigação das mudanças climáticas e cumprir acordos de restauração feitos entre diversas nações ao redor do mundo.

A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que seu principal foco temático para enfrentar os impactos do ser humano no planeta nesta década (2021-2030) será a restauração de ecossistemas. Mais de 60 compromissos nacionais e subnacionais – feitos a partir do chamado Desafio de Bonn, lançado em 2011 pelo governo alemão e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) para recuperar milhões de hectares de floresta em todo o planeta – preveem a restauração de mais de 170 milhões de hectares de paisagens florestais ao redor do mundo, incluindo 12 milhões de hectares do Brasil. Mas implementar a restauração florestal duradoura em larga escala requer mais do que aspirações e acordos.


A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que seu principal foco temático para enfrentar os impactos do ser humano no planeta nesta década (2021 2030) será a restauração de ecossistemas

Segundo Matthew E. Fagan em publicação de 2020 e J. Leighton Reid em artigo de 2018, é necessário superar desafios críticos não resolvidos que restringem os programas de restauração em todo o mundo, e um deles é a viabilidade financeira da atividade. A restauração florestal ainda é vista como um uso não competitivo da terra, uma vez que exige investimentos para alavancar a sucessão florestal e garantir a perenidade da vegetação, tendo um custo de oportunidade alto para alcançar um resultado ecológico de longo prazo.

 

Aspecto econômico

Sob a ótica do aspecto econômico, a comunidade científica vem destacando que os projetos de restauração devem não somente auxiliar na recuperação dos ecossistemas, mas também trazer recompensas monetárias aos proprietários de terra. Essa perspectiva da restauração esbarra na falta de conhecimento sobre o potencial das diversas espécies nativas e o uso comercial dos produtos delas extraídos. O desafio é enorme e muitas questões devem ser elucidadas pela ciência para garantir a sustentação ecológica e financeira da restauração florestal.

Apesar de haver muita especulação sobre o enorme potencial econômico da biodiversidade, a restauração florestal – mesmo utilizando técnicas que contemplam o uso de um maior número de espécies e a ancoragem em mecanismos ecológicos para o seu sucesso –  é vista por um amplo público como um passivo econômico frente às atividades tradicionais de uso do solo, especialmente a agricultura e a pecuária; embora já esteja comprovada a importância de florestas no provisionamento de água, e regulação do clima, essenciais para essas atividades.

Ao mesmo tempo em que as metas brasileiras de restauração apresentam a magnitude de milhões de hectares, a Lei da Vegetação Nativa (n° 12.651, de 25 de maio de 2012, também conhecida como novo ‘Código Florestal’), editada recentemente, flexibiliza a adequação ambiental no tocante à degradação dos ecossistemas naturais, pelos impactos realizados antes de 2008 e anistiados. Além disso, a ‘nova lei’ diminui as exigências legais de áreas florestadas em propriedades rurais, já que reduziu o quantitativo de florestas exigido para áreas de proteção permanente.

Embora os desafios sejam proeminentes na mata atlântica brasileira, lugar de grande riqueza natural e elevada biodiversidade (hot spot), com prioridade na conservação e maior necessidade de restauração no mundo, é possível pensar em uma excelente oportunidade de integração das agendas de restauração florestal e da bioeconomia. Ao mesmo tempo, essa agenda – restauração bioeconômica – pode proporcionar a ampliação do conhecimento científico a partir do uso de métodos orientados que permitam avançar para obter conclusões, assim como ajudar a solucionar sérios problemas socioeconômicos; sem contar o incentivo para cumprir os acordos mundiais.

 

Qual a melhor opção?

Mas como juntar as agendas da restauração e da bioeconomia? Priorizar a restauração de florestas nativas para obter os maiores benefícios climáticos e ambientais, conhecidos como serviços ecossistêmicos, ou focar na produção de madeira nativa (meio mais difundido e lembrado sobre como fazer dinheiro da floresta)? Nesse caso, a comparação do benefício gerado por um projeto de restauração ‘madeireiro’ seria feita com as plantações comerciais de árvores, geralmente monocultivos compostos por espécies não nativas da Mata Atlântica nem do Brasil.


A restauração florestal ainda é vista como um uso não competitivo da terra, uma vez que exige investimentos para alavancar a sucessão florestal e garantir a perenidade da vegetação, tendo um custo de oportunidade alto para alcançar um resultado ecológico de longo prazo

Os ambientes florestais biodiversos entregam com mais qualidade e abundância os serviços – armazenamento de carbono, controle da erosão do solo, abastecimento de água – em comparação com o estabelecimento de plantações comerciais madeireiras que, por outro lado, apresentam biomassa comercial maior em menor tempo, gerando um trade-off (escolher uma opção em detrimento de outra). Como grupo de pesquisa destaque da restauração florestal no Brasil, o Laboratório de Silvicultura Tropical da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo, em Piracicaba (LASTROP, Esalq/USP), reúne pesquisadores em busca da melhor relação custo-efetividade-atratividade de projetos de restauração.

Esse nosso grupo analisa madeiras nativas crescendo em diferentes áreas sob restauração no estado de São Paulo, usando técnicas renomadas para definição do período de colheita de madeira (figura 1).

Figura 1 . O Laboratório de Silvicultura Tropical da Esalq/USP analisa madeiras nativas crescendo em diferentes áreas sob restauração no estado de São Paulo, usando técnicas renomadas para entregar serviços ecossitêmicos e gerar benefícios ambientais, climáticos e econômicos CRÉDITO: PEDRO H. S. BRANCALION (LASTROP/USP)

Como conclusão, verificamos que, em plantios voltados exclusivamente para fins ecológicos, o diâmetro de corte para utilização comercial da madeira, baseado na relação natural entre crescimento da árvore e tempo, necessitaria de tecnologias específicas de processamento que promovessem maior rendimento no aproveitamento da madeira.

Além disso, o tempo para se colher madeira nativa difere significativamente entre as várias espécies, o que leva à recomendação de um plano de manejo robusto que considere a grande variação natural de cada espécie e não apenas uma generalização baseada no diâmetro exigido pela indústria.

Com foco em uma multifuncionalidade da floresta e pensando em ampliar as alternativas de restauração florestal, nós, do LASTROP, levantamos dados da vegetação regenerada do estado de São Paulo e consultamos mais de 400 artigos sobre o potencial biotecnológico de cerca de 150 espécies arbóreas encontradas em áreas com diferentes níveis de degradação. Mesmo utilizando apenas uma pequena parte do banco de dados construído com informações das florestas em restauração (projeto NewFor), os resultados apontam que 78% das espécies nativas presentes nessas áreas apresentam algum indício de potenciais de uso biotecnológico, revelando uma oportunidade de restauração em que produtos florestais de alto valor agregado, normalmente associados ao mercado de fármacos , poderiam ser contemplados (figuras 2 e 3).

Figura 2 . O óleo de pau-rosa é utilizado na perfumaria fina mundial, como no caso do famoso Chanel n° 5 CRÉDITO: PEDRO KRAINOVIC
Figura 3. As sementes de andiroba produzem óleo com propriedades medicinais, que também pode ser usado como ingrediente em produtos cosméticos CRÉDITO: PEDRO KRAINOVIC

Mercado ‘verde’

O mercado global de medicamentos movimenta cerca de 1,1 trilhão de dólares, e em torno de 35% dos medicamentos comercializados atualmente originaram-se de produtos naturais. O Brasil, com sua megabiodiversidade, pode ser fonte desse mercado, que pode ser mais ‘verde’. A identificação e organização de estudos que trazem tais potenciais podem levar à expansão de modelos de restauração produtivos que agreguem mais resultados sobre o provisionamento de serviços ecossistêmicos do que os plantios compostos por poucas espécies, e que, ao mesmo tempo, possa se transformar em um uso de solo competitivo e atrativo para um público amplo.

No entanto, essa é mais uma narrativa que precisa ser desdobrada em outros pontos relevantes. Nos aproximamos do ponto em que não teremos mais tempo para pesquisar como garantir a viabilidade financeira de um programa de restauração florestal sustentável, simplesmente porque estamos diante de uma emergência das mudanças climáticas, com necessidade de agir agora, sugerem Jane Lubchenco e John F. Kerry em artigo da Science de 2021.


Nos aproximamos do ponto em que não teremos mais tempo para pesquisar como garantir a viabilidade financeira de um programa de restauração florestal sustentável, simplesmente porque estamos diante de uma emergência das mudanças climáticas, com necessidade de agir agora

O quinto e o sexto relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas) destacam o drástico aumento na temperatura da Terra em comparação com seu aquecimento natural. Ressaltam ainda a necessidade de atingirmos a neutralidade de emissões até 2050 e o prognóstico catastrófico de aumento de mais de 2 metros do nível dos oceanos e a perda significativa de parte da biodiversidade em um cenário com aumento de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, somente 0,4°C acima do que já havia aumentado em 2020.

As mudanças climáticas e a perda de biodiversidade representam as ameaças mais significativas para a subsistência humana, segurança alimentar e saúde pública. Estima-se que 77% do globo terrestre e 87% da área do oceano (excluindo a Antártica) foram modificados pelos efeitos diretos das atividades humanas. Essas mudanças estão associadas com a perda de 83% biomassa de mamíferos e 50% da de plantas. O gado e os humanos agora representam quase 96% de toda a biomassa de mamíferos na Terra, e mais espécies estão ameaçadas de extinção, mais do que nunca na história da humanidade. Nós, seres humanos, lidamos com a necessidade de reverter esses cenários de emergência para a vida, alguns deles possivelmente irreversíveis em escalas de tempo humanas.

 

Potencial do Brasil na economia global

Dentre os movimentos adaptativos que o homem busca para atender seu bem-estar e garantir um futuro para as próximas gerações, está o desenvolvimento de cadeias biotecnológicas, as quais têm ganhado popularidade na busca do equilíbrio entre mercados de serviços ecossistêmicos e mercados de bens e produtos. Uma vez identificado o potencial de uso sustentável de espécies nativas em modelos de negócios, a restauração pode promover a resiliência socioeconômica em paisagens rurais com altos níveis de degradação de recursos naturais e o consequente êxodo rural devido à essa degradação (figura 4).

Figura 4. Área restaurada com espécies de árvores nativas no estado de São Paulo CRÉDITO: PEDRO H. S. BRANCALION (LASTROP/USP)

As propriedades biotecnológicas das espécies nativas são relatadas em milhares de artigos na área de medicina, farmácia, cosméticos, alimentos e outros. Os artigos, geralmente, apresentam informações como “As plantas são uma fonte valiosa de novos produtos naturais” ou “Apenas uma pequena proporção das várias centenas de milhares de espécies de plantas ao redor do globo foram investigadas”, ou “Extratos vegetais são uma boa fonte de bioinseticidas”, ou ainda “A biodiversidade pode estimular um novo ciclo de industrialização”.

Claramente, devido ao número de registros conseguidos e à repetibilidade de resultados após uma busca sistemática de artigos científicos, existe uma confiabilidade no potencial de muitas dessas espécies. No entanto, uma reflexão sobre a integração dos aspectos supracitados nos leva ao questionamento do porquê de esse conhecimento não estar sendo utilizado para a construção de uma economia baseada na floresta, respondendo assim às necessidades imediatas resultantes das mudanças climáticas e da geração de empregos e renda, especialmente nos países em desenvolvimento.


Uma reflexão sobre a integração dos aspectos supracitados nos leva ao questionamento do porquê de esse conhecimento não estar sendo utilizado para a construção de uma economia baseada na floresta, respondendo assim às necessidades imediatas resultantes das mudanças climáticas e da geração de empregos e renda, especialmente nos países em desenvolvimento

Na ótica do fluxo existente entre a floresta e o mercado, o que vem antes e depois do potencial identificado? Antes de responder essa questão diretamente, é necessário enfatizar a importância das abordagens interdisciplinares. Cientistas especializados em bioeconomia comumente lamentam a falta de conhecimento de como cultivar espécies potenciais. Outros, em uma perspectiva mais próxima do consumidor, lamentam o espaço vazio que deveria ou poderia estar ocupado por estudos sobre como produzir e comercializar esses incríveis potenciais.

Ao contrário da agricultura convencional, que se baseia no uso de poucas espécies domesticadas por um longo período ou que passaram por programas modernos de melhoramento genético visando ao aprimoramento do cultivo e uso, as espécies arbóreas nativas, presentes nas florestas em regeneração natural, ainda são selvagens, o que demanda uma série de estudos sobre seu uso e manejo em diferentes cadeias produtivas. Em síntese, poderíamos destacar ações interdisciplinares necessárias em torno das ciências agrárias e dos estudos de viabilidade tecnológica, além de todos os custos de produção associados, incluindo os custos para o meio ambiente.

Hoje, esses temas não acompanham o ritmo dos estudos químicos/farmacêuticos, e um avanço prático só é visto quando empresas buscam a inovação. Esta, por sua vez permanece atrelada à falta de base técnico-científica para tomadas de decisão específicas, como as condições ideais do solo para uma dada espécie; sua dinâmica de crescimento; as melhores formas de manejo; métodos de processamento; existência de recursos humanos; equipamentos, manutenção e tecnologia necessários; amortização do investimento, entre outras informações que reduziriam o risco de mercado e atrairiam mais investimento.

Esses campos do saber integram uma gama de incertezas que explicam o desuso desses potenciais e nos levam à preocupação sobre a aplicabilidade da ciência produzida e a necessidade de criar um ciclo de ações de pesquisa virtuoso, onde novos conhecimentos sejam criados e utilizados de forma eficiente.

Dadas as inúmeras oportunidades que a restauração florestal pode oferecer ao biomercado nos trópicos, há potencial para colocar a região em posição de destaque na economia global, sendo protagonista de seu próprio desenvolvimento. A expectativa é que a necessidade da criação de um pacote técnico-científico-econômico e político de base florestal intensifique os investimentos em pesquisas com espécies nativas da flora tropical e desenvolva mecanismos de cooperação com a integração entre os setores público e privado comprometidos com o processo de gerar produtos bioeconômicos – óleo de pau-rosa e de tucumã, andiroba, castanha, murumuru, babaçu, açaí, manteiga de cupuaçu e de cacau,  entre outros – como ingredientes naturais para a indústria cosmética e farmacêutica, ou mesmo medicamentos naturais em sua versão final de uso, os quais poderiam abastecer os sistemas públicos de saúde, por exemplo.

O grande desafio na busca de um arranjo bioeconômico de restauração florestal para o desenvolvimento sustentável ainda é, sem dúvida, a transformação de um imenso patrimônio genético natural em riqueza, gerando empregos qualificados e criando indústrias com base tecnológica amigável ao meio ambiente.

Nesse contexto, a ciência brasileira colabora de maneira eficiente e com muita qualidade. Recentemente, a contribuição de cientistas foi decisiva para o desenvolvimento de métodos preventivos e para a criação de uma vacina para enfrentar os multifacetados impactos da covid-19. Sem dúvida, podemos desenvolver com sucesso um programa para avançar na bioeconomia com base na restauração florestal biodiversa, usando tecnologia e gerando produtos de alto valor agregado, com qualidade genuinamente tropical.

Pedro Medrado Krainovic
Departamento de Ciências Florestais
Universidade de São Paulo

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