“Bendito aquele que semeia livros e faz o povo pensar”*

Os absurdos contra o conhecimento, e consequentemente contra os livros, são inumeráveis. Uma população analfabeta ou semiletrada é mais fácil de ser dominada.

A condenação do filósofo Sócrates à morte, 399 anos antes da nossa era, parece ter começado a ser engendrada quando Querofonte, um de seus discípulos, vai até o oráculo de Delfos e pergunta quem era o homem mais sábio de Atenas, ao que o deus Apolo, pela boca da Pitonisa de Delfos, responde ser Sócrates o mais sábio de toda Grécia. Intrigado com a resposta, o filósofo, depois de muito refletir, chega à conclusão de que ele era o mais sábio porque tinha plena consciência de sua ignorância – argumento que utiliza em sua defesa diante dos juízes que o condenaram por corromper os jovens e por não acreditar nos deuses gregos.

Na verdade, Sócrates fora condenado por sua paixão pelo conhecimento, e por difundir essa paixão entre os que seguiam. Séculos depois, mais precisamente no ano de 415 da nossa era, Hipátia de Alexandria – reconhecida pelo seu amor aos livros, pela sua sabedoria científica e filosófica, e pela eloquência com que se dirigia a todos – foi brutalmente torturada e esquartejada por fanáticos cristãos, incitados por Cirilo, na época, um dos mais importantes doutores da igreja cristã.

Curioso é que o primeiro homem a contar a história de Hipátia foi Sócrates de Constantinopla (380-450), conhecido como Sócrates Escolástico – um historiador cristão, de mesmo nome do filósofo grego condenado à morte por motivos parecidos. Esse segundo Sócrates, quem sabe iluminado pelo espírito do seu homônimo, apesar de cristão, enfrentou os dogmas religiosos para dizer ao mundo que:

 

“Foi então que a inveja se irrompeu sobre essa mulher{…} seguiram, em certa ocasião o movimento da mulher que voltava para sua casa. Arrancaram-na da carruagem e arrastaram-na para o interior da igreja chamada Cesarion. Rasgaram-lhes as roupas e mataram-na com cacos de cerâmica. Quando acabaram de a esquartejar, dilacerando-a membro a membro, levaram o corpo para um lugar chamado Cinaron e aí o queimaram.”

 

Esses dois grandes exemplos nos ajudam a entender a importância do conhecimento e o medo que ele causa nos tiranos do mundo de todas as épocas, porque uma população analfabeta ou semiletrada é mais fácil de ser dominada, como foram os escravos, por exemplo. Há relatos de que escravos, no Sul dos Estados Unidos, que eram proibidos de aprender a ler e escrever sob pena de terem os dedos cortados ou de serem enforcados. Para os senhores de escravos, o conhecimento letrado poderia levar os negros a compreender os panfletos abolicionistas e a se revoltar contra a servidão.

Os absurdos contra o conhecimento, e consequentemente contra os livros, são inumeráveis e bizarros, como o da fundação da sociedade para a extinção do vício, criada em Nova York, em 1872, por Antony Comstok (1844-1915), um sujeito comum, cujo único objetivo era controlar o que podia ser lido. Na verdade, ele preferia que a leitura não existisse, pois alegava que “nosso pai Adão não lia no paraíso”.

No Brasil, durante a ditadura tivemos livros (e pessoas) confiscados e queimados. Hoje, vivenciamos perplexos o desmonte da cultura, da arte, da literatura. E mesmo que os livros não estejam sendo literalmente queimados, estão sendo banidos das escolas e ameaçados de terem seus conteúdos adulterados e ‘renovados’ para que nossa história seja apagada.

Precisamos ficar atentos.

*Castro Alves (1847-1871)

Georgina Martins

Programa de Mestrado Profissional em Letras (Profletras)
Curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escritora de livros para crianças e jovens

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