As doenças neurodegenerativas afetam o cérebro e causam a morte dos neurônios, promovendo sintomas, como dificuldades de equilíbrio e locomoção, demência, transtornos cognitivos e emocionais e, consequentemente, a morte. Elas não têm cura. As principais causas estão relacionadas a fatores genéticos e ambientais, incluindo aspectos relacionados ao estilo de vida e ao envelhecimento.
Estima-se que, ainda este ano, um quarto da população mundial terá algum tipo dessas doenças. Para um bom funcionamento e uma boa manutenção dos neurônios, moléculas essenciais presentes em nossas células são requisitadas. Entre essas moléculas, estão as proteínas, que têm diversas funções no nosso organismo, como a manutenção da arquitetura celular e a comunicação entre as células.
Várias dessas proteínas, incluindo a α-sinucleína, o peptídeo β-amiloide e a proteína príon, estão relacionadas a transtornos neurodegenerativos, como a doença de Parkinson, o mal de Alzheimer e doenças priônicas, respectivamente. Essas proteínas, naturalmente presentes no sistema nervoso central (SNC), sofrem mudanças na sua estrutura tridimensional (conformação), alterando suas características e formando aglomerados proteicos. Esses agregados de proteínas se depositam no cérebro, e são, possivelmente, os principais responsáveis pelos danos causados aos neurônios.
Uma das principais proteínas envolvidas direta ou indiretamente com essas doenças é o chamado príon, ou PrP (do inglês, proteinaceous infectious particle), presente em vários órgãos e tecidos do corpo humano; principalmente, no SNC. O príon é responsável pelas encefalopatias espongiformes, que afetam humanos e outras espécies de animais.
A primeira forma dessa doença foi descrita no século 18, quando se relatou o surgimento de uma estranha enfermidade em ovelhas, batizada então de scrapie. Quase 200 anos depois, comprovou-se que o agente causador dessa doença não continha material genético – razão pela qual não poderia ser vírus, fungo ou bactéria – e que se tratava apenas de uma proteína.
Para que a doença se manifeste, ocorre uma alteração na forma nativa da PrP, que não causa a doença. A forma alterada é conhecida como ‘proteína príon scrapie’, ou PrPSc. Esta proteína modificada se deposita no SNC, na forma de aglomerados proteicos, característicos de outras doenças neurodegenerativas, como as de Alzheimer e Parkinson, levando ao desenvolvimento das encefalopatias espongiformes.
Apesar de muito se conhecer sobre essa intrigante proteína – que atua como um agente infeccioso, mesmo sem ser um microrganismo –, ainda hoje não se sabe ao certo como a forma normal é convertida na forma alterada, nem quais fatores e componentes celulares auxiliam o surgimento desse grupo de doenças fatais.
Recentemente, nosso grupo de pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro identificou um fenômeno físico que abre a possibilidade de desenvolver tratamentos que ataquem especificamente a formação dos aglomerados de proteínas relacionados às doenças causadas por príons. O trabalho, publicado em um importante periódico científico, o FASEB Journal, busca contribuir para o entendimento da origem de tais doenças.
Nossa equipe verificou que a proteína príon (PrP) sofre um processo chamado separação de fases, que é um processo físico semelhante à mistura de água e óleo. Quando esses elementos são misturados, é possível ver a formação de gotículas de óleo dispersas na água, ou seja, de um líquido disperso em outro líquido, sem que ocorra mistura entre eles. Da mesma forma, em sistemas biológicos, a separação de fases leva à conversão de uma solução homogênea (uma só fase) em uma mistura contendo uma fase densa, rica em proteínas e outros substratos, formando gotículas, e uma fase diluída. Um exemplo dessa separação de fases nas células é a presença do nucléolo, organela celular que não é delimitada por uma membrana lipídica.
Esse fenômeno vem sendo observado em proteínas envolvidas em doenças neurodegenerativas, como as descritas acima. Tais proteínas têm em comum a capacidade de interagir com moléculas de ácido nucleico (DNA ou RNA), presentes no núcleo das células e no citosol (no caso do RNA). Em nosso trabalho, verificamos, por meio de técnicas de microscopia, que a proteína príon também forma as gotas líquidas (sofre separação de fase) e que este processo é regulado/ajustado por pequenas sequências de DNA, chamadas aptâmeros, que se ligam fortemente à PrP e que foram selecionadas para essa ligação a partir de milhares de diferentes sequências de ácido nucleico.
Já era sabido que ácidos nucleicos, tanto RNA quanto DNA, conseguem transformar a conformação da proteína príon nativa em estruturas similares à forma infecciosa, PrPSc. Neste trabalho recente, observamos que, dependendo da organização espacial (forma) dos aptâmeros, a interação com a proteína vai formar estruturas com características diferentes. Enquanto um aptâmero que não tinha estrutura definida (forma estendida, como um cordão) fez com que as gotículas em solução contendo PrP se transformassem em gel, ou mesmo em estruturas sólidas, o DNA com estrutura definida (em grampo, do tipo hairpin) gerava gotículas mais fluidas.
Esse processo de gelificação e solidificação das gotículas de proteínas pode explicar o surgimento de aglomerados da forma anormal da PrP, conhecidos como agregados amiloides – ou fibrosos. Tais estruturas são tóxicas para o cérebro e estão relacionadas ao aparecimento de várias doenças causadas por príons, como a doença de Creutzfeldt-Jakob e a encefalopatia espongiforme bovina (BSE), popularmente conhecida como mal da vaca louca. A expressão ‘espongiforme’ se refere ao fato de o cérebro dos pacientes infectados por essas proteínas apresentarem uma aparência esponjosa. Até hoje, não se sabe o que leva à formação dos agregados amiloides, e nosso estudo pode contribuir para explicar a questão.
Os resultados da pesquisa mostram que o príon apresenta a mesma capacidade já identificada em outras proteínas ligadas a doenças neurodegenerativas de se ligar fortemente a determinadas sequências de ácidos nucleicos e de formar as tais gotas líquidas. Também mostram que a relação entre a quantidade de proteína e DNA (estequiometria) é fundamental para a indução da separação de fase.
Ainda não sabemos se os DNAs estudados existem nas células de organismos vivos, apesar de a probabilidade ser alta. Este trabalho abre a possibilidade de atingir a doença com o uso de sequências específicas de DNA, capazes de controlar ou evitar que as moléculas celulares se transformem em géis e sólidos não funcionais.
Yraima Cordeiro e Yulli Passos
Faculdade de Farmácia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carolina Matos e Anderson Pinheiro
Instituto de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj)
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