Núcleo de Estudos de História da Alimentação e
Biblioteca Virtual em Saúde de História da Fome, Pobreza e Saúde,
Casa de Oswaldo Cruz,
Fundação Oswaldo Cruz

Livro aborda, de forma didática, a importância das mobilizações sociais e das políticas de combate à insegurança alimentar no Brasil a partir da trajetória da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida, organização não governamental criada pelo sociólogo Betinho

Cidadania: a fome das fomes

Ana Redig e Plínio Fraga

Mórula Editorial, 2023, 248 p.

Em 2014, o Brasil alcançou um marco na história da sua política de combate à fome. Pela primeira vez, o país aparecia fora do mapa da fome, uma metodologia adotada pela Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) para identificar os países com populações em situação de insegurança alimentar. Mais que uma excepcionalidade, isso foi fruto de medidas pontuais, como a valorização do salário mínimo e programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Mas também resulta da culminância de quase um século de mobilizações políticas e sociais na República brasileira.

Essa é uma história que pode ser contada por várias perspectivas. Uma delas seria a atuação do Estado, que, desde pelo menos os anos 1930, tem inserido a alimentação e a fome como pontos relevantes da agenda política. Entre idas e vindas, entre governos mais intervencionistas ou mais liberais, o combate à fome sempre fez parte dos planos e projetos de ministérios e de departamentos de saúde pública no Brasil republicano. Outra perspectiva é a dos movimentos sociais, que, por meio de forte mobilização da população, chamavam a atenção para a fome como um aspecto que impedia a cidadania plena no país.

Movimentos sociais, por meio de forte mobilização da população, chamavam a atenção para a fome como um aspecto que impedia a cidadania plena no país

Nessa trajetória histórica, movimentos como a Marcha da Fome, organizada pela Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil em 1931, foram fundamentais para pautar a carestia, a pobreza e a desnutrição como elementos deformadores da identidade nacional.

Durante o período da redemocratização, uma série de mobilizações expuseram o estado de pobreza de boa parte da população: o ‘Movimento do Custo de Vida’ e as ‘Marchas da Panela Vazia’, criados no final da década de 1970 em razão da crise do milagre econômico. Além disso, saques feitos pela população resultaram em mobilizações populares que reivindicavam, ao mesmo tempo, democracia e combate à fome.

Nesse contexto, foi instaurada, em 1981, uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as causas do avanço da fome entre a população brasileira e, no mesmo ano, foi criado o Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais (Ibase) pelo então anistiado sociólogo brasileiro Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, e seus companheiros de exílio Carlos Afonso e Marcos Arruda. Foram consequência disso as Campanhas da Fraternidade de 1984 e 1985, organizadas pela Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), com os temas ‘Para que todos tenham vida’ e ‘Pão para quem tem fome’, além dos debates sobre o tema na Assembleia Nacional Constituinte.

Essa história complexa, com a mobilização de relevantes atores sociais e instituições, tem continuidade nos anos 1990, depois do impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto popular após a ditadura militar, Fernando Collor de Mello. Durante esse processo, diversos setores da sociedade se mobilizaram para exigir ética na política e segurança alimentar para os desassistidos.

No governo de seu sucessor, Itamar Franco, por meio de grupos de trabalho e reuniões ministeriais, foram tomadas medidas importantes no campo social, entre elas: a divulgação do mapa da fome do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), liderada pela socióloga Anna Maria Peliano; a formação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), liderado pelo bispo Dom Mauro Morelli; e, por fim, a criação da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida, por Herbert de Souza.

Uma luta institucional e pessoal

Registrar a trajetória da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida, a partir do entrecruzamento com a trajetória pessoal de seu fundador, foi o desafio de Plínio Fraga e Ana Redig no livro Cidadania: a fome das fomes, lançado pela Mórula Editorial por ocasião da comemoração dos 30 anos dessa organização não governamental.

No início do livro, os autores escrevem que “a fome da cidadania é a fome das fomes”, o que denota as intenções e ações da instituição desde sua criação, em 24 de abril de 1993: não bastava apenas alimentar os homens e mulheres, mas também lhes dar meios para adquirir autonomia, cultura e orgulho. Hoje, sob a liderança de Kiko Afonso e Daniel Souza, filhos dos fundadores do Ibase – e também, por que não, filhos do exílio –, a Ação da Cidadania busca refletir sobre o próprio passado em busca de apontamentos para a conjuntura que se aproxima nos próximos anos.

Dividido em duas partes, o livro privilegia inicialmente a brilhante trajetória de Herbert de Souza, e destaca os fatos ocorridos entre 2018 e 2023, em um contexto de profundas transformações na vida política brasileira, quando, nos governos de Michel Temer (2018-2018) e Jair Bolsonaro (2018-2022), houve um profundo desmonte das estruturas oficiais de combate à fome. 

A segunda parte é mais interessante para quem busca um olhar retrospectivo sobre a Ação da Cidadania, privilegiando a história institucional, as campanhas e o desenvolvimento das instalações e programas liderados pela ONG, além das atividades culturais e sociais coordenadas pelos comitês locais. Nessa seção, textos elaborados por ocasião da celebração dos 20 e dos 25 anos da entidade foram reescritos com o objetivo de reforçar a importância e o protagonismo de medidas como o ‘Natal sem fome’, que tiveram ampla adesão da sociedade civil, de cantores e atores, com um forte apoio da imprensa.

Com um riquíssimo material iconográfico, o livro também traz os cartazes e propagandas das campanhas mobilizadas pela ONG desde 1993. Na formulação dessas peças publicitárias, alimentação e cidadania constituíram elementos inseparáveis.

O lançamento de Cidadania: a fome das fomes evidencia não apenas a importância dos 30 anos da Ação da Cidadania, mas também ajuda a ressaltar dois fatos marcantes: em 2023, completaram-se 50 anos da morte de Josué de Castro, médico nutrólogo que serviu de inspiração para Herbert de Souza e para todos que se dedicam à luta contra a fome. Segundo ele, a fome é um assunto incômodo, e suas resoluções, como a reforma agrária, também são incômodas para grande parte do poder vigente. Nesse sentido, a piora nos índices de insegurança alimentar iniciada em 2016 e intensificada com a pandemia de Covid-19 nos lembra que a fome é, no limite, uma escolha política. Por fim, 2023 também foi o ano em que faleceu outro protagonista da história do combate à fome no Brasil: o já citado bispo Dom Mauro Morelli. 

Se os fatos recentes demonstram que a história não ensina lições, pois genocídios, guerras e negacionismos continuam acontecendo exaustivamente mundo afora, eles também reforçam a ideia da história como uma disciplina incômoda, que expõe as contradições e fraturas dos sistemas políticos e econômicos. Por meio de seu estudo, é possível, quem sabe, tentar compreender como, em um mundo cada vez mais mecanizado e que bate recordes de produção agrícola ano a ano, pessoas ainda morram de fome.

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