O filósofo francês Edgar Morin, em artigo publicado em 21/04/20 pelo Instituto Humanitas Unisinos on-line, previa “catástrofes em cadeia provocadas pelo desdobramento incontrolável da mundialização tecnoeconômica, inclusive aquelas que resultam da degradação da biosfera e das sociedades”, embora não tenha imaginado a calamidade provocada pela covid-19. A pandemia emerge num contexto em que o pensamento disjuntor e redutor cartesiano-newtoniano ainda resiste na nossa civilização, nos vários âmbitos da sociedade ocidental.
Morin nos lembra que “esta é a ocasião para compreender que a ciência, diferentemente da religião, não tem um repertório de verdades absolutas e que suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas”. Assim, a pandemia expõe a desordem, a incerteza e a perplexidade, e as relações entre a sociedade e a natureza ainda são entendidas por muitos como polos excludentes, concebendo a primeira como fonte ilimitada de recursos à disposição dos seres humanos.
A partir dessa concepção, foram se desenvolvendo políticas nas quais a acumulação passou a se realizar por meio de intensa exploração dos recursos naturais e do trabalho, com efeitos perversos para a natureza e os humanos. A busca desenfreada pelo lucro foi gerando catástrofes como as que agora nos atingem, além de vários tipos de carências que afetam grande parte da população.
Nesse contexto, o jornalista Herton Escobar chama a atenção para a escalada do desmatamento: em reportagem de 10/06/20 (Instituto Humanitas Unisinos on-line) alerta para o crescimento das taxas de desflorestamento no Brasil – em torno de 1.218.708 hectares (ha) em 2019, dos quais 770.148 ha (63,2%) só na Amazônia Legal, que envolve nove estados, e 408.646 ha (33,5%) no cerrado. Escobar destaca que o desmatamento acumulado entre agosto de 2019 e maio de 2020 na Amazônia Legal já é 72% maior do que o registrado no mesmo período anterior, apontando para uma tendência de alta.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2020, o desmatamento na Amazônia Legal corresponde a 10.129 km² e inclui parte de unidades de conservação, terras indígenas, áreas de proteção permanente (APPs) e áreas agrícolas de comunidades tradicionais. Esse quadro mostra que estão dadas as condições para o avanço da fronteira agrícola tecnificada.
Uma das críticas de Edgar Morin à razão fechada da lógica clássica é à ideia de ordem – ou seja, de que o universo é ordenado e obedece a um determinismo universal. Entretanto, o autor sustenta que essa concepção mecanizada da natureza mostra que “nosso conhecimento é ínfimo”. A desordem promovida pela expansão da pandemia vem escancarando as extremas desigualdades presentes no território, não apenas relacionadas à questão ambiental e ao trabalho, mas também vinculadas à disseminação da covid-19, alcançando com violência segmentos populacionais mais fragilizados.
A geografia serve, antes de mais nada, para revelar as desigualdades socioespaciais. A pandemia da covid-19 torna emergente a discussão sobre as mazelas da sociedade brasileira. As raízes históricas da constituição do Estado e da nação externalizam as situações expostas no momento presente, assim como as lutas nos/pelos territórios tornam-se cada vez mais evidentes.
Uma análise espacial das desigualdades mostra que não ‘estamos todos no mesmo barco’. A covid-19 revela os diferentes territórios existentes no Brasil. O vírus se alastrou por todo o país, revelando as estruturas precárias, vulneráveis e desiguais da nossa sociedade.
Ao analisar os direitos e privilégios da sociedade brasileira, o geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001) aponta que temos em nosso país, “cidadanias mutiladas”. Essas ‘mutilações’ são intensificadas no período atual: a má distribuição das riquezas geradas perpetua a intensidade da covid-19 em áreas com pouca infraestrutura básica de habitação; o acesso a água – fundamental para a prevenção do contágio – e um direito negado ainda hoje a grande parte da população, não apenas no campo, mas, sobretudo, nas periferias dos centros urbanos.
A paralisação das atividades produtivas e comerciais fez com que trabalhadores e trabalhadoras – principalmente os autônomos e/ou que têm trabalhos informais – fossem diretamente afetados com o fechamento brusco da economia, expondo a desassistência financeira das classes menos favorecidas. Parte dessas pessoas permanece trabalhando, mesmo com todas as recomendações sanitárias contrárias, muitas por não terem assistência alguma dos pacotes de auxílio financeiro e outras para manterem seus empregos, como é o caso de diversas empregadas domésticas. A vulnerabilidade dessa categoria exibe os processos históricos desiguais, mas também a perversidade da classe mais abastada.
Esse ofício não necessário, porém não dispensado durante a pandemia, tem um ponto em comum a quase todas essas mulheres: a cor da pele. O geógrafo Andrelino Campos (1949-2018) revela, em seu livro Do quilombo à favela, que os traços da desigualdade no país têm corpo e território. A pandemia não revela somente as desigualdades sociais, mas também o racismo estrutural e cotidiano da sociedade brasileira.
Aqueles que continuam trabalhando ou que tiveram sua renda diária interrompida nos centros urbanos – em grande parte residem em áreas precárias de habitação e infraestrutura de serviços básicos – são, em sua grande maioria, negras e negros, assim como os que estão em situação de rua. É necessário, portanto, racializar o debate a ser feito, pois os dados podem camuflar o racismo cotidiano. A geografia tem também o papel de demarcar no território a ausência dos direitos básicos e os processos desiguais.
A desigualdade de gênero também aparece como fato. A sobrecarga do trabalho doméstico recai com mais intensidade sobre as mulheres. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em momento anterior à pandemia, as mulheres se submetiam praticamente ao dobro de horas dedicadas ao trabalho em comparação aos homens. Com a covid-19 e o modelo atual de home office (trabalho em casa), a carga horária extra de trabalho aumentou.
A divisão do trabalho baseada no gênero ainda é uma forma de reproduzir opressões, desigualdades e hierarquizar a posição dominante do homem na sociedade. Além disso, a violência doméstica se torna evidente neste período. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quando comparado aos meses de março e abril de 2019, houve um aumento de 27% nas denúncias contra a mulher registradas na plataforma do Ligue 180 e de 22% no número total de feminicídios.
As análises territoriais também ganham força no campo e nas florestas. No atual contexto político da pandemia, os desafios das populações tradicionais são maiores. Além de tentarem combater a propagação do vírus, também lutam para garantir seus direitos básicos, seus modos de vida e, principalmente, seus direitos territoriais.
Os ataques às políticas e aos direitos desses povos ficam evidentes ao observar o discurso construído pelo presidente da República e pelo seu governo. As diversas investidas do garimpo em terras indígenas na Amazônia, as tentativas de missões evangélicas catequizadoras de adentrarem as terras de povos isolados e as ameaças de remoções, como as vividas pelos quilombolas de Alcântara, no Maranhão, são alguns exemplos dessa política governamental.
O médico, geógrafo e cientista social brasileiro Josué de Castro (1908-1973) defende, em Geografia da fome, que o abismo da fome e as mazelas desiguais do território precisam ser superados para atravessar quaisquer questões econômicas. No entanto, hoje vemos a complexa dificuldade do país em combater o vírus, seja pela sua desigualdade historicamente estabelecida, seja pelo retrógado pensamento anticientífico dos governantes atuais.
Dessa forma, é necessária a compreensão geográfica dos fenômenos que envolvem os novos tempos. Os dados não são apenas números, eles têm corpo e território. A geografia e as demais ciências humanas podem ser importantes instrumentos de tomadas de decisões na atualidade.
A proteção e a luta pela vida aparecem no centro de diversas ações de indígenas, camponeses, movimentos sociais e dos mais diversos sujeitos que aqui entendemos como vulneráveis e periféricos. À ameaça de doença, morte e aprofundamento da pobreza e miséria, diversos grupos populares respondem com ações de solidariedade, auto-organização e cuidado coletivo.
Embora a geografia tenha sido muito influenciada em sua história pelo ‘darwinismo social’ – tentativa de aplicar a teoria da evolução nas sociedades humans –, ela também nos ajuda a pensar que a luta pela vida não se dá apenas por meio da competição, mas também, e em grande parte, por relações de cooperação, coletividade e ajuda mútua.
Milton Santos, por exemplo, elaborou críticas à ênfase no imperativo da competitividade e à sua real importância na vida cotidiana de homens (e mulheres) “lentos”. Enquanto a fluidez, calcada na competitividade sem sentido ético, é um componente central na organização dos espaços da racionalidade dominante, nomeados por Santos como espaços “luminosos”, coexistem também os espaços das contrarracionalidades e os espaços opacos.
Nos espaços opacos, onde vivem os “homens lentos”, a fluidez e mobilidade acelerada encontram diversos empecilhos e obstáculos. A lentidão dos sujeitos, que pode parecer uma fraqueza no entendimento dos atores hegemônicos, é entendida pelo autor como sua força. Há cotidianamente uma política dos de baixo pautada na necessidade de continuar existindo e fortemente relacionada à solidariedade e cooperação. Esse aspecto do cotidiano é muito mais difícil de ser identificado à distância, muito calcado na espontaneidade e voltado para a manutenção da vida.
Na atual pandemia da covid-19, vemos emergir ambos aspectos, a competitividade e a cooperação, porém se apresentando em contextos bem distintos. No contexto internacional e do mercado mundial, por exemplo, identificamos disputas por equipamentos de proteção individual e respiradores. Querelas entre Estados e empresas pelo domínio de itens fundamentais para a manutenção da vida não parecem novidade. Assim como, entre os pobres urbanos, os “não-possuidores”, os homens lentos, o apoio mútuo em situações de extrema dificuldade também é parte da luta pela vida, que se reafirma no atual contexto.
Diversos são os exemplos de ações de solidariedade por meio de doações e compartilhamento de itens, bem como de organizações coletivas para a autoproteção e autocuidado. Optamos aqui por destacar, a título de exemplo, dois casos. O primeiro se refere a Paraisópolis, bairro da cidade de São Paulo em que lideranças da comunidade organizaram ‘presidentes de rua’ para monitorarem situações de saúde e necessidades emergenciais, assim como campanhas de apoio a diaristas e pessoas desempregadas. Outro exemplo são os diversos povos indígenas que, por conta própria, começaram a organizar formas de proteção e bloqueio de aldeias e terras indígenas, tanto no Brasil como em outros lugares da América Latina.
Buscamos, assim, valorizar essas ações, que podem parecer pequenas e espontâneas, no sentido de combater a banalização da violência e da competitividade como os elementos centrais na vida humana. Importante destacarmos como potentes essas ações coletivas e cooperativas, por serem fundamentais na luta pela vida.
Júlia Adão Bernardes
Programa de Pós-graduação em Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Roberta Carvalho Arruzzo
Programa de Pós-graduação em Geografia
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Daniel Macedo Lopes Vasques Monteiro
Programa de Pós-graduação em Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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