Simbiose: do cinema ao corpo humano

Assim como o personagem Venom, resultado da associação de um organismo alienígena com um humano, diversos seres vivos, desde o passado remoto da Terra, estabelecem relações entre si para se adaptar ao ambiente e sobreviver

Venom é um dos mais populares vilões do universo fantástico da Marvel. A rivalidade contra o queridinho Homem-Aranha eternizou o personagem e lhe rendeu seu próprio universo cinematográfico. Na tela grande, o capítulo mais recente é a sequência Venom: tempo de carnificina, do diretor inglês Andy Serkis, em cartaz nos cinemas.

Entre lutas e piadas de humor ácido que caracterizam o personagem, há também conceitos biológicos importantes em sua construção. São conceitos relacionados ao principal avanço evolutivo que já ocorreu em toda a história da vida na Terra! Trata-se da endossimbiose!

Na biologia, o termo simbiose se refere a organismos de espécies distintas que vivem juntos, em diferentes tipos de associações, obrigatórias ou não. Por exemplo, quando um dos organismos é beneficiado nessa relação, causando prejuízo ao outro, a simbiose é do tipo parasitismo (como acontece com pulgas e carrapatos que se alimentam do sangue de outros animais). Ou, quando ambos os organismos se beneficiam, a simbiose é chamada de mutualismo (o que ocorre entre seres humanos e algumas bactérias intestinais produtoras de vitamina K). Na ficção, Venom é o resultado da associação de um organismo alienígena (chamado de simbionte) com um ser humano, o jornalista Eddie Brock, interpretado nos cinemas pelo ator britânico Tom Hardy. Dessa combinação, surgem superpoderes e muita insanidade!

 

Relação antiga e duradoura

Na vida real, a simbiose não é uma novidade. Existem associações que se formaram há mais de 1,5 bilhão de anos e, desde então, não se desfizeram! Um grande exemplo desses relacionamentos estáveis pode ser encontrado no corpo humano: as nossas células e as mitocôndrias!

Mitocôndrias são organelas (pequenos órgãos) existentes dentro das células. As organelas celulares realizam funções vitais, como digestão, respiração, locomoção, produção de proteínas, entre outras. As mitocôndrias, de maneira especializada, são responsáveis pelo processo de respiração celular. Elas utilizam açúcar e oxigênio para produzir a energia química que mantém as células funcionando.

Acontece que as mitocôndrias nem sempre estiveram dentro das células! De acordo com a teoria da endossimbiose, publicada em 1967 pela bióloga estadunidense Lynn Margulis (1938-2011), as mitocôndrias teriam sido bactérias especializadas em utilizar oxigênio para produzir energia. Por alguma razão ecológica (parasitismo ou mutualismo, provavelmente), as mitocôndrias passaram a viver dentro de outras bactérias, e nunca mais saíram! Daí o nome ‘endossimbiose’ (endo é um prefixo de origem grega que significa ‘do lado de dentro’).

Uma das evidências da teoria da endossimbiose é que as mitocôndrias apresentam DNA próprio, semelhante ao DNA encontrado em bactérias. O mesmo acontece com os cloroplastos, organelas presentes nas células vegetais responsáveis pela realização da fotossíntese e que também surgiram pelo processo de simbiose.

 

Das mitocôndrias aos animais

Na Terra primitiva, apenas 1% da atmosfera era composto de oxigênio. Nesse cenário, bactérias menores que utilizavam esse gás para produzir energia passaram a viver dentro de bactérias maiores, onde se protegiam de predadores e respiravam o oxigênio disponível no meio intracelular (A). Quando a concentração de oxigênio na atmosfera aumentou, as bactérias que suportavam esse gás, que era tóxico para a maioria dos seres vivos, sobreviveram e contribuíram para que seus organismos hospedeiros também tivessem mais chances de prosperar

(B)Créditos: Vítor Ribeiro Halfeld 

O sucesso dessa parceria com as mitocôndrias se deve a uma drástica mudança que aconteceu no passado do nosso planeta. Na Terra primitiva, a atmosfera era bem diferente da existente nos dias atuais, com o predomínio de gás carbônico, vapor de água, nitrogênio e hidrogênio – o oxigênio era um gás raro, compondo a fração mínima de 1%. 

Essa situação só começou a mudar com o surgimento da fotossíntese, realizada por algumas bactérias bem antes das primeiras plantas existirem. Ao fazerem fotossíntese, essas bactérias liberavam oxigênio. O problema foi que o oxigênio era tóxico para a maioria dos seres vivos daquela época. Então, o aumento da concentração de oxigênio na atmosfera exerceu uma forte pressão seletiva, que favoreceu apenas os poucos organismos que suportavam esse gás, como as mitocôndrias. Enquanto grande parte da biodiversidade primitiva se extinguia, os organismos que abrigavam mitocôndrias pegaram carona nessa aptidão das companheiras e prosperaram. 

O sucesso foi tão grande que essas células, chamadas de eucariontes (células que apresentam mitocôndrias, núcleo e outras organelas limitadas por membrana), se diversificaram muito e evoluíram, dando origem a diversos microrganismos, como protozoários, algas e fungos. E, quando as algas eucariontes surgiram, a quantidade de oxigênio na atmosfera aumentou ainda mais. Desses primeiros organismos eucariontes, surgiram os seres formados por muitas células, como as algas e os fungos multicelulares, as plantas e os animais.

 

Outras parcerias bem-sucedidas

A biodiversidade atual também tem incontáveis relações simbióticas. Os corais, formadores dos recifes, têm algas unicelulares dentro de seus corpos, por exemplo. Já os cupins só conseguem digerir madeira porque, em seus intestinos, há protozoários que realizam essa função. E, no corpo humano, existem mais microrganismos do que células do próprio corpo! Pesquisas recentes mostram que esses pequenos inquilinos são extremamente importantes para o desenvolvimento adequado do sistema imunológico.

Outros exemplos de associações entre seres vivos também estão retratados nas telas! Se você assistiu ao filme Procurando Nemo, da Disney, deve se lembrar que a casa do peixe-palhaço é uma anêmona. As anêmonas-do-mar são animais que não têm vértebras nem esqueleto ósseo, mas são dotados de grandes e numerosos tentáculos, usados para capturar alimentos. Por meio desses tentáculos, as anêmonas podem liberar substâncias tóxicas capazes de paralisar outros animais. No entanto, o peixe-palhaço possui resistência a essas substâncias e, assim, consegue viver dentro de uma anêmona e manter-se protegido de predadores. É por isso que Marlin, o pai de Nemo, insiste tanto para que seu filho evite sair da proteção da anêmona e se expor aos perigos do oceano. As anêmonas, por sua vez, se beneficiam dos restos de alimentos dos peixes-palhaço, estabelecendo uma relação mutualística.

A simbiose representa um atalho para a adaptação das espécies a um ambiente, de modo a aumentar suas chances de sobrevivência e perpetuação. Essa adaptação também pode ocorrer por meio da genética, a partir de mutações aleatórias no DNA, que dão origem a novas características vantajosas, transmitidas para gerações futuras. Mas esse processo é quase sempre muito lento, demorando várias gerações para acontecer. Com o estabelecimento de relações ecológicas harmônicas, as qualidades adaptativas das espécies envolvidas são compartilhadas, aumentando o sucesso evolutivo e as chances de sobrevivência para ambas as partes. Cada respiração nossa é um ótimo exemplo desse processo.

Vítor Ribeiro Halfeld
Mestre em Comportamento e Biologia Animal,
Universidade Federal de Juiz de Fora
Professor no Colégio Tiradentes da Polícia Militar de Minas Gerais – Unidade Juiz de Fora

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