Superpoderes elétricos no mundo real

Muito usada por personagens da ficção, a eletricidade é essencial para o funcionamento do corpo de todos os animais e, em alguns casos, pode até ser uma poderosa arma para capturar presas e se proteger de predadores

Picachu – CRÉDITO: FOTO DIVULGAÇÃO

A eletricidade é um fenômeno conhecido pela humanidade há pelo menos dois milênios, embora a compreensão mais profunda sobre seu funcionamento tenha ocorrido apenas nos últimos séculos. Grande impulsionadora da segunda revolução industrial, a eletricidade sempre foi bastante explorada pelas histórias das revistas em quadrinhos, do cinema e dos jogos.

Pikachu (da franquia Pokémon), Thor (herói da Marvel), Super-choque (herói da Milestone Comics) e Raiden (do jogo Mortal Kombat) são alguns exemplos de personagens que conseguem extrair eletricidade do próprio corpo e disparar contra inimigos a distância. Já Blanka, o personagem brasileiro da série de jogos Street Fighter, só consegue dar choque em quem encosta nele.

Mas será que esse superpoder existe na realidade? Há algum impedimento físico para que isso aconteça? E se existisse um supervilão com poderes elétricos no mundo real, como poderíamos derrotá-lo?

 

A eletricidade nos animais

Uma parte considerável do nosso corpo é formada por água e sais minerais. Essa mistura (que chamamos de solução salina) tem grande capacidade de condução de eletricidade e, por isso, é a grande responsável por todos os processos elétricos que ocorrem em nosso organismo.

Cada função dos nossos órgãos, tecidos e músculos é controlada por inúmeros impulsos elétricos vindos do cérebro. Podemos dizer que, sem a eletricidade (e esse meio líquido para conduzi-la), nós não conseguiríamos sequer mover um dedo mindinho.

Nos demais animais, a eletricidade também atua na comunicação do cérebro com cada célula do organismo. Os chamados animais eletrorreceptivos ainda são capazes de usar a eletricidade para se comunicarem ou mesmo para localizarem objetos ao seu redor. Mas o emprego da eletricidade pelos animais não para por aí.

Vejamos, por exemplo, o poraquê. Como esse peixe simpático consegue sobreviver no rio Amazonas, dividindo espaço com jacarés, tubarões, anacondas, piranhas?

Poraquê – CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK

Por incrível que pareça, o poraquê é, junto com os animais mencionados acima, um dos mais temidos de águas fluviais. O grande segredo desse peixe é que, ao encostar uma das extremidades do seu corpo em outro animal, ele dá um choque que pode ir de 300 a 1.500 volts!

O que permite que esse peixe armazene tanta eletricidade e dê um choque com tantos volts é o seu órgão elétrico. As células que compõem esse órgão, chamadas de eletrócitos, produzem pequenas descargas elétricas (da ordem de 0,15 volt) por meio da movimentação de íons (de sódio e potássio). Quando milhares de eletrócitos são ligados em série (em fila), a tensão (voltagem) gerada se soma – assim como quando se colocam pilhas enfileiradas para alimentar uma lanterna, por exemplo – e a descarga elétrica gerada passa facilmente de 500 volts.

O poder do poraquê de gerar uma descarga elétrica tão grande tem relação com o seu comprimento. Dispor os eletrócitos enfileirados ocupa tanto espaço que um poraquê pode chegar aos 2,5 metros de comprimento e pesar 20 kg.

Diferentemente dos peixes de água doce, como o poraquê, os de água salgada, como as arraias, não geram choques com tanta tensão assim. Isso se deve ao fato de a água salgada ser um meio que conduz eletricidade com mais facilidade, dispensando a necessidade de descargas elétricas tão potentes assim.

Mas e fora da água? Você já viu algum animal terrestre ou voador que consiga liberar descargas elétricas nas suas presas (ou predadores)?

 

Poderes elétricos no ar

Como o meio aquático (seja fluvial ou marítimo) conduz eletricidade com facilidade, ele é mais propício para que alguns animais tenham e utilizem poderes elétricos de forma ofensiva e defensiva. O ar, por sua vez, é um isolante elétrico e oferece muita resistência à passagem de descargas elétricas.

Para um raio sair de uma nuvem e chegar ao solo, pode ser necessária uma tensão entre o solo e as nuvens de até 1 bilhão de volts.

Imagine agora o Pikachu lutando contra um inimigo que está a 5 metros de distância dele. Para atingi-lo, o Pokémon elétrico deveria ser capaz de criar uma tensão de 15 milhões de volts. Nem o Fantasma de 10.000 volts, do desenho Scooby-Doo, seria capaz de gerar esse choque. O que o Pikachu precisaria para conseguir esse feito?

Assim como o poder do poraquê está relacionado com o seu tamanho, para que o Pikachu (ou o pika, mamífero que inspirou esse Pokémon) fosse capaz de criar uma tensão alta o suficiente para dar uma descarga elétrica a distância em um inimigo terrestre, ele precisaria ter, no mínimo, alguns quilômetros de comprimento, podendo chegar a toneladas de massa, dada a quantidade de eletrócitos enfileirados que seriam necessários.

 

Soluções práticas

Uma maneira mais viável de um superpoder elétrico funcionar no meio terrestre seria por meio do contato. O já citado Blanka tem esse tipo de poder. Na verdade, nós também temos.

Blanka; – CRÉDITO: FOTO DIVULGAÇÃO

Quando esfregamos nosso corpo em determinados materiais (como roupas de lã, flanelas, tapetes), nossa pele perde elétrons e acumula a chamada eletricidade estática. Se andamos descalços ou tocamos em materiais metálicos, os elétrons perdidos retornam e nosso corpo volta a ficar neutro. Mas, quando usamos um calçado feito de material que seja um bom isolante elétrico, a eletricidade estática vai se acumulando no nosso corpo.

Quando o nosso corpo está muito eletrizado e encostamos em um objeto metálico, sentimos um choque, que nada mais é do que uma pequena descarga elétrica, fruto da movimentação dos elétrons entre nossos dedos e o objeto. Esse choque é completamente inofensivo para qualquer pessoa, mas pode ser letal para componentes eletrônicos.

Não é à toa que profissionais que lidam com computadores, por exemplo, costumam usar uma pulseira com um fio ligado a alguma superfície metálica, para que qualquer carga elétrica acumulada em seu corpo vá embora e não danifique nenhum componente do computador.

O que podemos concluir é que, se um ser terrestre fosse capaz de armazenar carga suficiente em seu corpo, eletrocutar um inimigo por meio do contato seria totalmente viável, não exigiria uma tensão de milhões de volts para transferir essa carga para outra pessoa.

Uma segunda possibilidade de viabilizar o choque do trovão do Pikachu é combinar esse poder com o de outro Pokémon: o Squirtle!

Se o Squirtle lançar um jato de água em um inimigo e, na sequência, o Pikachu aproveitar a água para desferir sua descarga elétrica, o choque conseguiria chegar ao alvo sem a necessidade de uma voltagem tão imensa.

Inclusive, essa ideia já foi testada e aprovada pelo programa da Discovery Channel Os caçadores de mitos. Os especialistas em efeitos especiais Adam Savage e Jamie Hyneman colocaram um boneco em uma gaiola no topo de uma torre, esguicharam água em sua direção e usaram um gerador para criar a tensão elétrica necessária. E, de fato, a eletricidade se propagou junto com o esguicho.

 

Arma contra supervilões elétricos

Mas por que os peixes elétricos não morrem eletrocutados pelas próprias correntes elétricas que lançam na água?

Esses animais são revestidos por uma camada de pele que funciona como isolante de suas próprias descargas elétricas. Não há comunicação direta entre a descarga elétrica e os órgãos internos dos peixes.

Então, se existisse um supervilão com essas características dos peixes elétricos, ele seria invencível? Seria possível desenvolver uma arma capaz de derrotar qualquer criatura que produza eletricidade e tenha uma pele que a isole dos seus órgãos internos? Essa arma, na verdade, já existe. É a pistola de pregos!

Um único disparo, que perfure a pele isolante do supervilão, é suficiente para fazer com que a corrente elétrica – que ele está gerando e atirando nas pessoas – atinja seus órgãos internos e, provavelmente, o mate em poucos segundos.

Por ser muito mais fácil derrotar uma criatura com superpoderes elétricos do que ela conseguir utilizá-los em você, talvez esse seja um superpoder que não vale tanto a pena.

Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência
Universidade Federal de Juiz de Fora

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