Voldemort: um vilão fictício?

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

O mais poderoso antagonista da saga de Harry Potter defendia a superioridade dos bruxos de sangue puro e desejava promover uma limpeza étnica no mundo mágico, um discurso supremacista que já apareceu várias vezes ao longo da história da humanidade

O cruel e poderoso bruxo Lord Voldemort lidera uma perseguição a bruxos que não têm sangue puro na série de livros e filmes Harry Potter

CRÉDITO: IMAGEM DIVULGAÇÃO

Imagine um personagem que a simples menção nos provoque um arrepio na espinha, nos cause ódio, medo, repulsa; um personagem que nos faça questionar os limites da maldade e refletir: será que existe alguém assim no mundo real? Imagine um personagem que seja apresentado de forma superficial, sem que possamos conhecer sua história e suas motivações; que seja apresentado como alguém puramente mau e que pareça existir apenas para causar destruição e terror. Esse personagem é um vilão. 

Muitos vilões da ficção são tão caricatos, têm características tão exageradas e estão tão distantes daquilo que consideramos ‘humano’ que visivelmente não possuem qualquer relação com pessoas do mundo real. Mas há aqueles vilões que fazem você pensar: será que isso está tão distante da realidade assim?

Lord Voldemort é um poderoso bruxo da série de livros e filmes Harry Potter. O vilão, que é o principal antagonista na narrativa, realiza tantos atos de crueldade e destruição que torna impossível enxergarmos nele qualquer traço de humanidade.

Mas será que essa figura tão sinistra não tem qualquer similaridade com alguém no mundo real?

O conflito entre bruxos e ‘trouxas’ 

Entre os séculos 15 e 17, a Europa viveu um período de violentas perseguições a pessoas acusadas de praticar bruxaria. Durante a ‘caça às bruxas’, essas pessoas (especialmente mulheres) eram perseguidas, levadas a julgamentos injustos e, em muitos casos, torturadas e condenadas à morte. Obviamente, as bruxas do mundo real não tinham nada de sobrenatural, eram mulheres comuns que apenas contrariavam normas da Igreja e algumas expectativas sociais. 

No universo de Harry Potter, esse período histórico também aconteceu, com a diferença de que a perseguição era feita a bruxos de verdade, o que levou a comunidade mágica a se esconder do resto do mundo.

Nessa época, alguns bruxos desenvolveram um ódio tão grande dos ‘trouxas’ (como são chamados os não bruxos na série) que passaram a desprezar e se afastar de qualquer um que interagisse com eles, ou mesmo que demonstrasse alguma simpatia. 

Com o passar do tempo, esse ódio aos trouxas foi se estendendo aos bruxos que não eram de ‘sangue puro’, ou seja, cujo pai ou mãe (ou ambos) fosse trouxa. Em Harry Potter e a câmara secreta, por exemplo, vemos Hermione Granger ser chamada de ‘sangue-ruim imunda’ por Draco Malfoy. A personagem, que desde jovem já era uma das bruxas mais inteligentes e talentosas da escola, é filha de pai e mãe trouxas.

No universo de Harry Potter, bruxos que não têm sangue puro, como Hermione Granger, sofrem preconceito e ofensas daqueles que acreditam pertencer a uma raça superior

CRÉDITO: IMAGEM DIVULGAÇÃO

Essa crença na superioridade dos puros de sangue foi se disseminando e reunindo bruxos dispostos a defendê-la a todo custo. Até chegar ao ponto dessa ideia se materializar em ações de discriminação sistemática e perseguições, culminando no surgimento de um líder extremamente poderoso e influente, um dos maiores defensores desse pensamento, Lord Voldemort.

Dividir seres humanos em raças e acreditar que uma delas é superior e as demais sequer deveriam existir é algo tão absurdo que parece coisa de ficção. Mas não é bem assim…

O nascimento do racismo científico

Nos séculos 18 e 19, a crença de que a espécie humana era composta por diferentes raças levou pensadores e cientistas europeus a tentar estabelecer uma hierarquia entre elas.

Estudos em diversas áreas do conhecimento buscavam demonstrar que negros, africanos, indígenas, mongóis, eslavos eram raças inferiores, menos inteligentes, com crânios menos desenvolvidos. Na época, essas ideias foram bastante influentes e se tornaram a base do que chamamos de ‘racismo científico’. Hoje, sabemos que essas pesquisas eram completamente enviesadas, baseadas em preconceitos e sem embasamento científico real.

Nessa mesma linha de pensamento, o diplomata e filósofo francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), considerado um dos grandes teóricos do racismo, chegou a afirmar que os brasileiros, por culpa da miscigenação, eram esteticamente repugnantes, avessos ao trabalho, pouco férteis e fisicamente fracos, o que os levaria à inevitável extinção em menos de 200 anos.

No universo de Harry Potter, Voldemort não apenas era adepto a essa ideia da existência de uma raça superior, como liderava os Comensais da Morte, um grupo seleto de seguidores que estavam dispostos a matar e morrer para defender seu líder e garantir a supremacia dos bruxos de sangue puro. 

O melhoramento da espécie humana

Você já deve ter ouvido falar no naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882). Em 1859, ele publicou seu trabalho mais influente, que revolucionou a nossa compreensão da vida na Terra. Em sua obra Sobre a origem das espécies, Darwin demonstrou que as espécies evoluem ao longo do tempo por meio de um processo de seleção natural.

Geralmente, associamos a palavra ‘evolução’ a melhoramento, aperfeiçoamento, progresso. Mas, na teoria de Darwin, evolução é simplesmente uma transformação, uma mudança de características. 

Imagine, por exemplo, que um filhote de peixe herde de seus pais algumas características que atrapalham a sua sobrevivência, seu crescimento, sua busca por alimentos, sua reprodução, sua capacidade de se defender ou se esconder de predadores. Naturalmente, as suas chances de chegar à fase adulta, ter filhotes e transmitir essas características ficam menores. Isso faz com que, ao longo de milhares de anos, as características que tornam uma espécie menos adaptada a determinado ambiente tendam a não se perpetuarem pelas gerações seguintes.

Dessa forma, a seleção natural de Darwin é um processo espontâneo, por meio do qual os animais com características mais propícias à adaptação em um ambiente têm mais chances de sobreviver e se reproduzir, fazendo com que essas características sejam perpetuadas.

Muitas pessoas não compreenderam (e até hoje não compreendem) a teoria da evolução e a interpretaram como ‘a sobrevivência do mais forte’. Essa incompreensão sobre a evolução e a empolgação proporcionada por essa teoria revolucionária levaram alguns cientistas a extrapolar as descobertas de Darwin para tentar explicar fenômenos sociais e características humanas. 

O matemático e estatístico inglês Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin, buscou demonstrar, por meio de suas pesquisas, que não apenas os atributos físicos eram herdados dos pais, como também as habilidades mentais, os talentos, o intelecto. 

O cientista passou a defender que era possível (e necessário) promovermos uma seleção artificial para estimular a perpetuação dos talentos entre os seres humanos. Em outras palavras, desejava-se formar uma elite genética, composta por seres humanos melhorados, aperfeiçoados, por meio do incentivo aos casamentos entre pessoas com características desejáveis e do desencorajamento da procriação entre pessoas ‘inferiores’ (menos aptas). Com esse raciocínio, Galton criava o conceito de eugenia

Ideias que se tornam ações

Com o tempo, sociedades, organizações e comitês em prol da eugenia foram surgindo no mundo. Leis que estimulavam casamento entre os ‘melhores membros da sociedade’ e promoviam segregação racial, esterilização de pessoas com doenças e deficiências e restrições à imigração começaram a ser votadas e aprovadas. Mas foi na Alemanha que o mundo viveu o capítulo mais trágico da história da eugenia.

Em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler, graças à popularidade conquistada pelo Partido Nazista, do qual fazia parte. Com um discurso de que a raça ariana era superior e a única capaz de fazer a Alemanha prosperar, Hitler defendeu e praticou aquilo que considerava uma ‘higienização racial’, que teve início com leis de esterilização e terminou em uma terrível ditadura, com o extermínio de milhões de pessoas ‘indesejáveis’, em sua maioria judeus, mas também pessoas pretas, ciganas, homossexuais e deficientes intelectuais.

Nos primeiros anos sob o comando de Hitler, foram centenas de decretos instituídos para eliminar por completo os direitos dos judeus, incluindo o direito das crianças de irem à escola e dos adultos de trabalharem.

O Nazismo foi o capítulo mais trágico da história da eugenia: milhões de pessoas ‘indesejáveis’, em sua maioria judeus, mas também pessoas pretas, ciganas, homossexuais e deficientes intelectuais, foram exterminadas

CRÉDITO: HOLOCAUST MUSEUM/ NATIONAL ARCHIVES AND RECORDS ADMINISTRATION, COLLEGE PARK, MD

Em Harry Potter e as relíquias da morte, último livro da saga, vemos Voldemort e os Comensais da Morte assumindo o controle político e social do mundo mágico. Uma das ações do Ministério da Magia foi realizar um censo dos ‘nascidos trouxas’ para investigar a origem de suas habilidades mágicas. Alegando que a magia só poderia ser transmitida por bruxos biologicamente relacionados e que um nascido trouxa provavelmente teria obtido sua magia de formas ilícitas e violentas, esses indivíduos passaram a ser perseguidos e interrogados, tiveram suas varinhas recolhidas e foram impedidos de estudar na Escola de Magia de Hogwarts. E muitos foram presos, desapareceram ou passaram a viver na clandestinidade, se escondendo do Ministério. 

São vários os paralelos que pesquisadores traçam entre a mentalidade e as ações de Hitler e Voldemort. A xenofobia, o etnocentrismo, a endogamia, a crença em uma raça superior, o desejo de promover uma ‘limpeza étnica’ e o uso de um símbolo para representar sua autoridade (a suástica de Hitler e a marca negra de Voldemort) são apenas alguns exemplos. Mas existem outras situações que mostram o racismo no universo de Harry Potter, desde o desprezo e a marginalização sofrida por outras espécies (como os elfos domésticos, os gigantes e os centauros) e a tentativa de censurar livros de Hogwarts que admitiam a miscigenação, até as frequentes e graves ofensas proferidas a personagens que não têm sangue puro.

Você deve ter percebido que, frequentemente, o racismo não termina em si mesmo, ele é um meio de se alcançar outro objetivo. E esse objetivo muitas vezes é o poder, a hierarquização e subjugação de grupos sociais.

O racismo está presente na dominação de uma nação sobre outra, na prática da escravidão, na marginalização e opressão de grupos étnicos, raciais e religiosos, nas barreiras invisíveis que dificultam a ascensão social e financeira, na exploração do trabalhador.

Com essas reflexões, fica claro também que o pensamento de Voldemort infelizmente não é coisa de ficção (e nem coisa do passado). É uma ideia que assombra a humanidade desde muito tempo atrás e que ainda não fomos capazes de eliminar por completo.

Por isso, precisamos ficar atentos a discursos eugenistas, racistas, xenofóbicos e ultranacionalistas, porque, em pouco tempo, eles podem ganhar força e se tornar ações, como já vimos acontecer várias vezes na história.

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