‘Duna’ e seus paralelos com o mundo real

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Saga que se passa em um planeta fictício desértico e hostil exibe elementos também observados na Terra, como o clima de algumas regiões, as características de certos animais e a exploração de um recurso natural valioso, alvo de muitas disputas

CRÉDITO: IMAGENS DIVULGAÇÃO

Duna é um planeta fictício desértico e hostil à vida humana. Ele esconde sob suas areias vermes gigantescos e assustadores que produzem uma valiosa especiaria, considerada o recurso mais importante daquele universo

Conflitos intergalácticos, criaturas exóticas e amedrontadoras, tecnologias futuristas, intrigas políticas, conspirações e profecias são alguns dos ingredientes que não podem faltar em um bom filme de ficção científica.

A série de filmes Duna, do diretor Denis Villeneuve, se tornou um enorme sucesso não apenas por reunir todos esses ingredientes, mas também por se basear em uma obra-prima da literatura, a saga homônima do escritor Frank Herbert (1920-1986). 

Ao longo dos seis principais livros da série, somos apresentados a um universo complexo e detalhado, com planetas habitados por povos de diferentes culturas, religiões e formas de organização política. Embora ficcional, esse universo diz muito sobre o mundo em que vivemos.

No início da história, acompanhamos a vida do jovem Paul Atreides, membro de uma família nobre do Império Galáctico, no momento em que esta é designada pelo Imperador para governar Arrakis. Esse planeta desértico, também conhecido como Duna, é extremamente hostil à vida humana, mas guarda uma relevância enorme: é o único lugar do universo onde se encontra a especiaria melange, uma substância cuja ingestão causa efeitos como prolongamento da vida, ampliação de percepções sensoriais e habilidades de conhecimento do futuro, o que a torna especialmente importante para prever caminhos seguros em viagens espaciais de altíssimas velocidades. 

A chegada da família Atreides ao planeta desértico desencadeia uma série de intrigas políticas e conflitos. E é nas areias hostis e inóspitas de Arrakis que o herdeiro Paul Atreides, ao lado dos Fremen (povo nativo do deserto), desenvolve suas habilidades e inicia sua jornada pessoal, que afetará o destino de toda a galáxia.

Os Fremen, povo nativo do planeta Duna, são os mais prejudicados pela exploração estrangeira de seu território e pelas disputas pelo controle de seus recursos

Como uma boa ficção científica, Duna se ancora em conceitos científicos e em explicações racionais para desenvolver sua trama, mas se permite também extrapolar e nos apresentar tecnologias, seres vivos e fenômenos que nos fazem perguntar: será que isso poderia existir mesmo no mundo real?

A vida em um planeta desértico

Para descobrir se o planeta Arrakis poderia existir fora da ficção e se a espécie humana sobreviveria nele, um grupo de pesquisadores especializados em modelagem climática simulou o clima do planeta fictício. Os cientistas utilizaram como base um modelo climático terrestre, frequentemente usado para prever o tempo e o clima no nosso planeta.

Essa simulação leva em conta inúmeros fatores, como o formato das montanhas, a composição da atmosfera, a intensidade e a distribuição da radiação solar que atinge a Terra, a distribuição de massas terrestres e oceânicas, os fluxos de calor entre atmosfera, oceano e superfície terrestre, entre outros.

Para construir um modelo climático para Arrakis, os pesquisadores coletaram todas as informações contidas nos livros que pudessem afetar o clima do planeta. Com todos os dados inseridos, a simulação foi executada. O supercomputador usado na pesquisa levou mais de três semanas para conseguir realizar as centenas de milhares de cálculos necessários e, finalmente, chegar a um resultado.

Assim como na Terra, as regiões equatoriais e tropicais de Arrakis (ou seja, as que ficam mais próximas daquilo que chamamos na Terra de linha do Equador) não teriam grandes variações de temperatura, ficando entre 15ºC e 45ºC. Em latitudes maiores (mais distantes da linha do Equador), em especial nos polos, a amplitude térmica se intensifica, podendo ter verões com temperaturas de até 70ºC e invernos de até -75ºC.

É estranho imaginar que as regiões polares poderiam registrar temperaturas bem maiores do que as regiões equatoriais. Mas os pesquisadores explicam que isso pode acontecer devido a uma maior umidade da atmosfera e uma grande cobertura de nuvens (que também podem funcionar como um gás de efeito estufa, impedindo o calor de se dissipar para o espaço).

Uma incoerência importante em Arrakis é a presença de calotas polares, principalmente no hemisfério norte, como afirmam os livros. De acordo com as características do planeta, isso seria impossível, considerando as altas temperaturas do verão. Algo que também não faz sentido é a afirmação de que não chove em Arrakis. Segundo o modelo climático, ocorreriam chuvas em pequenas quantidades em latitudes mais elevadas.

No fim, a conclusão da pesquisa é que, apesar de quente e desértico, Arrakis seria um planeta habitável, ao menos nas regiões tropicais e equatoriais. 

Os vermes da areia

Um dos seres mais icônicos da saga é, sem dúvidas, o verme da areia. Podendo ultrapassar 400 metros de comprimento na idade adulta, essas criaturas têm um papel central na história: são as responsáveis pela produção de melange, considerado o recurso mais importante e valioso do universo de Duna.

Evidentemente, nenhum animal jamais chegou ao tamanho de uma criatura ficcional dessas. A baleia-azul, que é o animal mais comprido do mundo e provavelmente o maior que já existiu, pode chegar a 30 metros de comprimento. 

Mas será que podemos encontrar na Terra seres com características similares às dos vermes de areia? 

Como conta o paleobiólogo Luke Parry, da Universidade de Oxford (Reino Unido), em entrevista para a revista científica Nature, existem alguns vermes anelídeos que chegam a vários metros de comprimento, possuem mandíbulas grandes e são ótimos em emboscadas. O bobbit (Eunice aphroditois), por exemplo, é um verme assustador que se esconde embaixo do solo marinho à espera de uma presa. Quando um peixe desavisado passa por perto, o verme sai da terra com rapidez, prende o animal com sua poderosa mandíbula e o arrasta para sua toca.

Assim como o verme da areia do planeta fictício Duna, o bobbit, que vive embaixo do nosso solo marinho, é um verme assustador que prende a presa com sua poderosa mandíbula

CRÉDITO: ADOBESTOCK

Outra característica marcante dos vermes de Duna é a presença de dentes ao redor da sua boca circular. O professor Parry explica que os priapulídeos, por exemplo, são vermes que têm dentes (ou espinhos) em uma espécie de tromba. Algumas sanguessugas e outros vermes também possuem dentes, embora não sejam tão grandes e assustadores.

Os vermes que vivem sob o solo do deserto de Arrakis têm a capacidade de perceber vibrações rítmicas sobre a areia. Movimentos de animais ou passos de uma pessoa atraem esses predadores implacáveis. Por isso, os Fremen aprenderam uma forma de caminhar com passos mais imprevisíveis, ‘sem ritmo’. 

Pesquisas científicas mostram que algumas minhocas, mesmo sem ouvidos, conseguem perceber vibrações sonoras através da pele. Quem sabe muito bem disso são as gaivotas, que batem no chão para atrair e capturar minhocas, e alguns especialistas em colheitas de minhocas, que cravam uma estaca de madeira no solo e raspam-na com determinado ritmo, de modo a atrair os vermes para a superfície.

Melange é uma metáfora para petróleo?

Não é segredo para ninguém que, até pouco tempo atrás, o petróleo era o recurso mais valioso do mundo – assim como melange no universo fictício de Duna. E ainda hoje ele mantém sua posição de destaque no nosso planeta.

O petróleo é uma substância conhecida e usada desde muito tempo atrás. Mas foi no século 19 que as técnicas de extração de petróleo e nosso conhecimento sobre ele permitiram que esse recurso se tornasse um produto comercialmente viável. 

Em pouco tempo, havia centenas de companhias dedicadas a explorar o chamado ‘ouro negro’. Mas apenas algumas empresas pioneiras no ramo é que conseguiram se destacar e passaram a monopolizar o mercado do mundo inteiro. Essas empresas, que ficaram conhecidas como ‘7 irmãs’, só tiveram seu poder abalado quando foi criada a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). 

Um dos objetivos da criação da OPEP, que tem como membros países como Irã, Iraque, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes, era unificar as políticas de exportação de petróleo, de modo a garantir preços justos e estáveis. Assim, a organização passou a ter um peso importante no mercado internacional. 

Quando o governo norte-americano decidiu apoiar Israel na Guerra do Yom Kippur (1973), contra Egito e Síria, os países árabes da OPEP impuseram um embargo petrolífero aos Estados Unidos e seus aliados, o que fez o preço do petróleo subir drasticamente e abalar a economia desses países. Depois desse marco, intensificaram-se as tensões entre os países produtores e consumidores de petróleo, principalmente entre os Estados Unidos e o Oriente Médio.

Na busca por influência e pelo controle sobre os recursos energéticos, muitas guerras foram travadas e houve intervenções estrangeiras em países de interesse petrolífero. Um dos exemplos mais marcantes foi a desastrosa guerra no Iraque. 

Sob a alegação de que o país armazenava armas de destruição em massa (que posteriormente não se confirmou), os Estados Unidos declararam guerra ao Iraque, derrubaram o governo de Saddam Hussein e o condenaram à pena de morte. 

Especialistas afirmam que a guerra não encontrou nenhuma base no direito internacional, tendo havido denúncias de torturas e de mortes de civis iraquianos. As centenas de milhares de mortes ocorridas nos oito anos de conflitos acirraram ainda mais as tensões entre países do Oriente Médio e da Europa e América do Norte, além de provocarem o surgimento de grupos terroristas, como o autointitulado Estado Islâmico.

Olhando novamente para Duna, não te causa nenhum estranhamento saber que os Fremen, povo nativo de um planeta com o recurso mais valioso do universo, tenham uma vida sofrida e precisem lutar por sua sobrevivência no deserto? 

Se os Fremen são os mais prejudicados pela exploração estrangeira de seu território e pelas disputas pelo controle da especiaria melange, isso também aconteceu com os iraquianos. A riqueza e os recursos naturais de um país nem sempre se traduzem em qualidade de vida para seus habitantes. Na verdade,  os recursos de países colonizados e ocupados frequentemente são alvo de intensas explorações e esgotamento.

Algo que nos surpreende quando percebemos a dimensão política da escrita de Frank Herbert é o fato de o primeiro livro da saga ter sido lançado em 1965, antes dessa corrida desenfreada por petróleo que temos visto nas últimas décadas, antes dos embargos petrolíferos, antes dos inúmeros conflitos que tiveram o petróleo como protagonista. 

Isso evidencia a habilidade de muitos escritores desse gênero de não apenas criar mundos fantásticos com ares científicos, mas também perceber o caminho para onde as tecnologias, a ciência e algumas decisões políticas podem estar nos levando, seja ele bom ou ruim.

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