Há cerca de 3,6 bilhões de anos, os primeiros seres vivos se espalharam e se diversificaram pelo planeta. Assim como as bactérias atuais, esses seres eram unicelulares e extremamente resistentes e adaptáveis. Capazes de lidar com condições ambientais extremas, eles são conhecidos como extremófilos. Hoje podemos encontrá-los do frio dos polos às fontes termais ferventes. A ciência agora avança para a compreensão da vida em outra direção: para o alto!
Há décadas, os cientistas demonstram a presença de micro-organismos vivos na alta atmosfera em suas pesquisas, mas apenas mais recentemente os esforços têm se direcionado para entender como eles são capazes de sobreviver ou mesmo ter ciclos completos de vida nessas condições. Muitos deles são bactérias capazes de formar esporos, formas especializadas de resistência que lhes permitem tolerar vários fatores inóspitos. Paralelamente, as pesquisas com micro-organismos extremófilos revelaram uma variedade de seres resistentes às mais diversas condições. Um exemplo disso é a bactéria Deinococcus radiodurans, excepcionalmente tolerante à dessecação – ex- posição a raios ultravioleta (UV) e até à radiação ionizante (como apresente em reatores nucleares).
Lugar inóspito
A atmosfera, em comparação com a espessura crosta terrestre, é uma camada finíssima de gás. Sem ela, a superfície seria completamente seca, variando entre muito quente e fria (abaixo de -20°C) e incapaz de reter calor (como durante a noite) ou água líquida. Além da sua composição, sua dinâmica interna também é importante. Próximo ao solo, o ar é aquecido pela superfície exposta ao Sol, ficando menos denso e ascendendo na atmosfera. Com a altitude, a pressão cai, o que leva à expansão desse ar. Essa expansão consome o calor do ar, que resfria e fica relativamente mais denso, tendendo a voltar ao solo.
Esse processo, chamado convecção, mantém a parte mais baixa da atmosfera em constante mistura, com uma grande diferença de temperatura entre a parte baixa e quente e a parte alta e fria. Essa camada é chamada de troposfera, onde ocorrem praticamente todos os fenômenos climáticos a que estamos acostumados, como os ventos, nuvens e precipitação de chuva, neve ou gelo. Seu topo atinge temperaturas muito baixas (até -60°C) a uma altitude entre 10 e 15 km (no limite onde voam os aviões comerciais).
Sonda enviada à estratosfera carregando leveduras extremófilas
e biomoléculas desses micro-organismos. (foto: Grupo Zenith/ EESC/ USP; arte: André Arashiro Pulschen/ IQ/ USP)
Acima dela, está outra camada, a estratosfera, que fica praticamente isolada de todos os processos turbulentos que ocorrem abaixo. Nela, a temperatura volta a subir de forma gradual até 50 km, mas ainda fica abaixo de 0°C. Um ambiente rarefeito, extremamente seco, frio e com alto índice de radiação UV, muito semelhante às condições hoje presentes em Marte (cuja atmosfera é cerca de 100 vezes mais tênue do que a do nosso planeta). Seria esta a barreira superior para a vida na Terra?
Além do limite
A busca pela vida em ambientes extremos leva os pesquisadores aos pontos mais remotos do globo, como ao continente antártico e a desertos escaldantes. Exemplos de região inóspita são os vulcões de grande altitude presentes na região do Atacama (Chile), o deserto mais seco do mundo. No gelado solo do vulcão Sairecabur, a quase 6 km de altitude, nosso grupo de pesquisa descobriu leveduras (fungos microscópicos) excepcionalmente resistentes a fatores como o frio e a luz UV. Isso foi inesperado, uma vez que, normalmente, organismos vivendo em ambientes tão extremos como esse são bactérias, como a Deinococcus ou as que formam esporos.
Gotas de 10 µl dos micro-organismos testados. As
leveduras C. friedmannii e Exophiala sp. sobreviveram
à exposição completa ao ambiente estratosférico.
(imagem: André Arashiro Pulschen/ IQ/ USP
e Gabriel Guarany de Araujo/ Biotec/ USP)
Leveduras têm estrutura celular muito mais complexa que a das bactérias (mais parecida com a das células humanas, na verdade!): são seres eucariotos, ou seja, têm núcleo celular separado por uma membrana e apresentam organelas. Os mecanismos associados a sua resistência ainda não foram muito bem estudados. Um fator que contribui para sua sobrevivência em ambientes extremos é a presença de pigmentos que protegem dos danos causados pela luz UV; entre eles, carotenoides (como os que dão cor à cenoura) e a melanina (mais escura, que pigmenta nossa pele e nossos cabelos). Curiosamente, algumas dessas leveduras não apresentavam nenhuma pigmentação aparente, o que indica adaptações em nível molecular ainda desconhecidas.
Um experimento realizado recentemente envolveu o lançamento desses micro-organismos extremófilos, em uma sonda, até a estratosfera, partindo da cidade de São Carlos (SP). A parte científica da missão foi coordenada por pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas (SP), sonda enviada à estratosfera carregando leveduras extremófilas e biomoléculas desses micro-organismos gotas de 10 µl dos micro-organismos testados. As leveduras C. friedmannii e Exophiala sp. sobreviveram à exposição completa ao ambiente estratosférico integrantes do Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia da USP. A sonda, desenvolvida pelo grupo Zenith, da Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, foi carregada até grandes altitudes por um balão meteorológico preenchido com gás hélio.
Ao chegar à base da estratosfera, um sistema de acionamento automático abriu a comporta do recipiente em que os micro-organismos estavam guardados, mantendo-os expostos às condições severas pelo resto do voo. O balão subiu até cerca de 30 km de altitude, onde sua pressão interna finalmente o rompeu, liberando a sonda para voltar ao solo. Nesse para processo de subida, o balão foi também arrastado pelo vento, percorrendo uma distância de 200 km a partir do ponto de lançamento. Na queda, um paraquedas acoplado foi aberto para permitir a recuperação das amostras de micro-organismos intactas.
Um sistema de posicionamento inserido na sonda foi utilizado para guiar sua busca, e levou os pesquisadores até São Sebastião da Grama, próximo à divisa com Minas Gerais. Na volta, a corrida foi até a cidade de São Paulo, onde as amostras tiveram de ser rapidamente processadas para poder avaliar a sobrevivência das células.
Extremófilos em marte
Os resultados mostraram que os extremófilos testados foram capazes de sobreviver na alta atmosfera. Surpreendentemente, algumas leveduras do Atacama apresentaram resistência ao ambiente da estratosfera maior até do que a Deinococcus ou esporos de bactérias. Isso as coloca como fortes candidatas a sobreviver também em condições como as da superfície de Marte.
Além disso, foi testada, por técnicas espectroscópicas, a resistência de pigmentos biológicos presentes nos micro-organismos, como carotenoides e melaninas. Essas biomoléculas se mostraram praticamente indestrutíveis a essas condições extremas, o que indica que podem ser usadas como indícios a serem procurados durante futuras missões para busca de vida em Marte ou outros planetas.
Uma vez mais, aprendemos que os seres vivos são capazes de lidar com fatores de estresse muito grandes, o que aumenta nossa confiança sobre a possibilidade de vida em outros planetas do Sistema Solar ou mesmo fora dele. Aqui na Terra, aprendemos que os limites da vida vão muito mais alto do que imaginávamos.
Além de ampliar nosso conhecimento sobre a resistência da vida, experimentos na alta atmosfera, por meio de balões como o citado aqui, impulsionam o desenvolvimento da tecnologia espacial, ainda incipiente no Brasil. De baixo custo, a sonda desenvolvida para o experimento permite o acesso ao ambiente quase espacial, com possibilidade de aumentar nosso domínio sobre tecnologias de controle, monitoramento, comunicação e rastreio, que podem ser muito úteis para criar novas plataformas científicas e também para aplicações práticas, como sensoriamento remoto e meteorologia. No futuro, técnicas semelhantes poderão ser aplicadas a missões ainda mais ambiciosas, como equipamentos embarcados em nanossatélites, já planejados por nosso grupo de pesquisa.
Douglas Galante
Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia
Universidade de São Paulo
Laboratório Nacional de Luz Síncrotron
Fabio Rodrigues
Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia
Instituto de Química
Universidade de São Paulo