Quem assiste aos alegres e frequentemente tolos comerciais de cerveja não imagina que a bebida mais popular – e talvez a mais antiga – do planeta e a ciência sofisticada caminham lado a lado. Nos últimos tempos, a mais refinada biotecnologia tem sido o alicerce da produção das boas cervejas. Estima-se que a produção de bebidas alcoólicas tenha começado no período neolítico (cerca de 10 mil anos a.C.). Provavelmente, a cerveja e o vinho tiveram suas origens mais ou menos ao mesmo tempo no Oriente Médio.
O fato é que hoje são consumidos no mundo milhões e milhões de litros de cerveja, o que torna esse mercado muito importante do ponto de vista financeiro. E muito interessante do ponto de vista científico. Por isso, a cerveja foi o foco do artigo de Ewen Callaway, publicado recentemente na Nature (v. 535, n. 7613). Ele descreve a rotina do pesquisador Kevin Vestrepen, da Universidade de Leuven, na Bélgica, que se dedica inteiramente à busca da levedura perfeita.
Embora as leveduras sejam componentes essenciais para as bebidas alcoólicas fermentadas, não são os únicos ingredientes da cerveja. Antes que as leveduras façam sua mágica, é preciso obter a matéria-prima que gerará a mistura tão apreciada pela humanidade.
O processo começa com cereais, em geral, a cevada. Esta deve ser umidificada, o que leva à sua germinação. Depois, a cevada é seca e tostada, dando origem ao malte, assim chamado por causa da maltose, o açúcar que será oportunamente fermentado. O malte contribui também para o sabor do produto final.
Em seguida, os grãos de malte são moídos e cozinhados em água. A essa mistura, acrescenta-se o lúpulo, que, entre outras propriedades, confere à cerveja seu amargor característico. Ao final, os ingredientes são resfriados, e só então as leveduras são acrescentadas para desencadear a síntese do álcool e do gás dióxido de carbono, que forma as bolhas que compõem o conhecido colarinho da cerveja.
Resumidamente, a produção da cerveja parece simples. O problema é que cada um dos ingredientes pode variar muito em sua composição e introduzir alterações que afetam bastante a qualidade da cerveja. O trabalho de Vestrepen é compreender de modo preciso a bioquímica da levedura e aplicar esse conhecimento para controlar a produção da cerveja em suas várias nuances.
Antes de se radicar na Bélgica, Vestrepen já havia trabalhado na Universidade Harvard (EUA), onde pesquisava sequências repetitivas do DNA de cepas de leveduras e sua correlação com as propriedades organolépticas (sabor, aroma, cor etc.). O conjunto dessa obra e suas ramificações acabaram reunindo no estudo da cerveja várias especialidades da biologia, como bioquímica, genética, evolução e neurociência.
Inicialmente, foi a genética clássica que norteou a produção das melhores cepas de leveduras. Como as leveduras podem ter reprodução sexuada ou assexuada, os estudos pioneiros lançavam mão da reprodução sexuada controlada para selecionar as cepas mais adequadas para a produção de cerveja. Hoje, as técnicas de biologia molecular, com manipulação direta do DNA, substituem com vantagem a produção de leveduras por cruzamentos. No entanto, manipular o DNA significa produzir os chamados organismos geneticamente modificados (OGM), o que ainda carrega em seu bojo um estigma difícil de abandonar, além de ser contraproducente.
Essa paranoia com relação aos OGMs não parece afetar a todos. Callaway narra em seu artigo que a cervejaria belga Orval, fábrica de pequeno porte administrada por monges trapistas progressistas, já se rendeu à biotecnologia e solicitou a Vestrepen o sequenciamento do DNA de suas cepas de leveduras.
O Brasil está entre os grandes produtores (e consumidores) de cerveja do mundo. Só esse exemplo deveria ser suficiente para convencer o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações a investir mais em ciência e unir o útil ao agradável.
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro