Presente com maior frequência em alimentos de origem animal, como laticínios, ovos e carnes – principalmente as vermelhas –, a metionina é um aminoácido essencial, ou seja, não produzido pelo organismo humano, mas fundamental para seu bom funcionamento. Ela está envolvida em atividades como a síntese de proteínas e de DNA, necessária para o crescimento e funciona- mento normal do organismo. Por outro lado, seu metabolismo sintetiza um segundo aminoácido, chamado homocisteína, de efeito tóxico. Aproveitar os benefícios do consumo de metionina sem ser prejudicado pelos malefícios da homocisteína é uma equação delicada para o organismo – equilibrada graças à participação de vitaminas (ácido fólico, B12 e B6) capazes de reduzir os níveis do aminoácido tóxico nas células e, consequentemente, evitar os danos que eles poderiam causar.
Com esse mecanismo, indivíduos normais mantêm seus níveis plasmáticos de homocisteína entre 5 e 15 micromols por litro (µM/L). Mas algumas pessoas apresentam, por fatores genéticos ou ambientais – como, por exemplo, dietas hiperproteicas –, níveis mais elevados do aminoácido, uma condição conhecida pelos profissionais da área médica como hiper-homocisteinemia – de intensidade severa (> 100 µM/L), moderada (31-100 µM/L) ou leve (16-30 µM/L).
Casos graves
Uma das causas da hiper-homocisteinemia severa ou grave é a homocistinúria clássica, doença genética caracterizada por uma mutação no gene que codifica a enzima cistationina betassintase, causando a deficiência da mesma. Essa enzima, auxiliada pela vitamina B6, degrada a homocisteína em produtos não tóxicos, como a cistationina que lhe dá nome. A cistationina, por sua vez, forma a cisteína, aminoácido importante para a síntese de glutationa – substância com efeito antioxidante.
A homocistinúria clássica é uma doença autossômica recessiva, ou seja, apresentada apenas por indivíduos que herdam o gene defeituoso tanto do pai quanto da mãe. A condição afeta 1 em 200 mil a 335 mil indivíduos em diferentes partes do mundo e se manifesta logo após o nascimento, quando os pacientes apresentam níveis aumentados de homocis- teína no sangue e demais tecidos.
Entre as manifestações clínicas, as principais ocorrem nos olhos (lente ectópica e/ou miopia grave), no tecido ósseo (redução da resistência dos ossos, com aumento no risco de osteoporose e fraturas) ou nos sistemas nervoso central (atraso no desenvolvimento) e vascular (tromboembolismo – bloqueio do fluxo sanguíneo por coágulos). O diagnóstico é feito pela combinação entre esses sinais clínicos e a análise dos níveis dos aminoácidos homocisteína e metionina no plasma sanguíneo.
Geralmente, o tratamento envolve dieta com restrição de metionina, podendo incluir a suplementação das vitaminas B6, B9 (também conhecida como ácido fólico ou folato) e B12. Outros suplementos podem ajudar como a betaína, capaz de fazer com que a homocisteína seja revertida à metionina.
Leve, mas preocupante
Embora os casos de hiper-homocisteinemia severa sejam raros, suas apresentações moderada e leve ocorrem com frequência na população. Elas podem ser causadas por polimorfismos nos genes de enzimas envolvidas no metabolismo do ácido fólico, deficiência de ácido fólico e de vitaminas B12 e B6, insuficiência renal crônica, consumo de álcool, sedentarismo, fumo, ingestão aumentada de metionina pela dieta rica em carnes, principalmente de gado, bem como dietas pobres em vegetais, cereais e peixes (ver ‘A resposta na dieta’).
A deficiência de ácido fólico e vitamina B12 é considerada um problema de saúde pública em todo o mundo. No caso da vitamina B12, a deficiência não está necessariamente relacionada a uma dieta pobre nesse nutriente: na maior parte dos casos, o que fica prejudicado é a absorção da vitamina pelo organismo. Por outro lado, uma das principais causas da deficiência de ácido fólico é a ingestão alimentar inadequada – seguida de fumo, alcoolismo e uso de certos medicamentos, como anticonvulsivantes.
Para fortalecer a ingestão de ácido fólico por meio da dieta, vários países adotaram a fortificação obrigatória da farinha branca com a vitamina, o que se provou uma intervenção de saúde pública bem sucedida. No Brasil, essa estratégia foi instituída pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O objetivo primordial era reduzir a ocorrência de malformações do tubo neural durante a gravidez – um problema que pode trazer sérias consequências ao nascimento e ao longo da vida do paciente. Mas, paralelamente, essa medida também favorece a ingestão adequada de folato por crianças e idosos e, possivelmente, ajuda a controlar os casos de hiper-homocisteinemia leve na população.
Alguns estudos clínicos e em modelos animais têm sido desenvolvidos para avaliar o efeito da administração de ácido fólico sobre a toxicidade da homocisteína. Nossos trabalhos, por exemplo, demonstraram que o folato preveniu o prejuízo comportamental (déficit de memória) e as alterações no estado oxidativo e energético no coração e cérebro de animais submetidos à hiper-homocisteinemia.
É bom lembrar, no entanto, que outros estudos sugerem que a suplementação com altas concentrações de ácido fólico pode trazer consequências danosas para as células.
Uma variedade de pesquisas mostra que a hiper-homocisteinemia leve é um fator de risco para doenças cerebrais e cardíacas, como as neurodegenerativas (doenças de Alzheimer e Parkinson), acidente vascular cerebral e cardíaco, aterosclerose, doenças neuropsiquiátricas (esquizofrenia e depressão) e câncer. Estudos apontam que uma elevação de apenas 5 µM/L nos níveis plasmáticos de homocisteína aumenta em 20% a 30% os riscos para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e neurodegenerativas em relação aos indivíduos normais.
No Brasil, a deficiência de vitamina B12 é particularmente relevante, sobretudo em idosos, e é nessa faixa etária que ocorrem tanto a maior frequência de hiper-homocisteinemia quanto a de doenças que afetam o cérebro e outros tecidos.
Além dos fatores já mencionados para o aumento dos níveis de homocisteína no organismo, estudos mostram que mulheres na menopausa apresentam níveis mais elevados do aminoácido, quando comparadas a homens na mesma idade. Esses dados sugerem que a diminuição de estrógeno pode estar relacionada ao aumento nos níveis de homocisteína, e este último pode estar associado à predisposição das mulheres na menopausa a sintomas como perda de memória, depressão e outros.
Por trás da doença
Os mecanismos pelos quais a homocisteína exerce seus efeitos tóxicos não estão completamente elucidados. Entretanto, no cérebro, a homocisteína tem sido associada ao dano neuronal causado pela ativação de receptores de neurotransmissores, bem como à indução de estresse oxidativo, danificando células vasculares e neuronais.
Há mais de uma década, nosso grupo de pesquisa tenta montar as peças desse quebra-cabeça, buscando compreender os mecanismos de toxicidade da homocisteína. Nossos esforços iniciais se concentraram no desenvolvimento de um modelo animal de hiper-homocisteinemia grave, capaz de imitar a homocistinúria clássica.
Os resultados mostraram que a homocisteína aumenta a produção de radicais livres (moléculas instáveis que reagem facilmente com outras) e diminui as defesas antioxidantes, resultando em uma condição chamada de estresse oxidativo, que pode causar prejuízos ao organismo. Também observamos que o aumento nos níveis desse aminoácido provoca danos a proteínas, lipídeos e DNA, bem como prejudica a produção de ATP (moeda energética da célula) no cérebro e no coração de ratos. Outro dano observado foi um déficit de memória em várias tarefas testadas.
Em seguida, desenvolvemos um modelo experimental de hiper-homocistenemia leve, com o objetivo de mimetizar um fator de risco para doenças neurodegenerativas e cardíacas. Assim, mostramos que o aumento dos níveis de homocisteína provoca inflamação e alteração no sistema colinérgico cerebral.
Nos cérebros saudáveis, a acetilcolina, um neurotransmissor colinérgico, tem, além de funções importantes para o cérebro e para outros tecidos – incluindo mecanismos de memória e aprendizagem –, ação anti-inflamatória. Em pacientes com doença de Alzheimer, observa-se uma diminuição da acetilcolina, provavelmente devido ao aumento das enzimas que a degradam (acetilcolinesterases), e aumento de parâmetros inflamatórios. Nossos achados indicam que a homocisteína pode ser um fator de risco para essa e outras doenças, por aumentar as atividades de acetilcolinesterases, diminuindo os níveis de acetilcolina.
Modelos animais
Todos esses estudos têm contribuído na elucidação dos mecanismos tóxicos da ho- mocisteína, ampliando a compreensão da hiper-homocisteinemia como uma tentativa de abrir janelas terapêuticas. São promessas animadoras, mas, para chegar aos tratamentos que desejamos, é de suma importância a realização de estudos pré-clínicos em animais. Pesquisas em tecido cerebral de humanos, mesmo post mortem, encontram muito mais dificuldades, tanto pela quantidade de amostras necessárias quanto pela inviabilidade celular.
A utilização de modelos experimentais permite fazer avançar uma grande parte do conhecimento necessário para o desenvolvimento de novas terapias antes de iniciar ensaios em humanos. Essa estratégia é comprovadamente eficaz: a partir de nossos estudos, outros pesquisadores, em colaboração com o nosso grupo de pesquisa, têm avaliado parâmetros bioquímicos em sangue de pacientes com homocistinúria similares aos utilizados nos testes com animais. Os mesmos trabalhos mostraram que alguns pacientes responderam positivamente ao tratamento com antioxidantes testados previamente nos nossos modelos.
A transferência do conhecimento obtido das experiências de bancada para atuação clínica é o que se chama de medicina translacional. Trata-se de uma perspectiva bem aceita na comunidade científica, mas nem sempre compreendida pelas pessoas que não atuam nessa área. Vale reforçar, por isso, que as pesquisas de bancada, utilizando modelos experimentais (células vivas ou animais de laboratório), têm, neste e em outros casos, enorme contribuição para o entendimento de mecanismos da fisiopatologia das doenças, favorecendo o desenvolvimento de novas drogas e sua aplicação clínica.
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Angela T. S. Wyse
Departamento de Bioquímica
Instituto de Ciências Básicas da Saúde
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Vera Araujo
Prezada doutora Angela T. S. Wyse,
Minha mãe, 85 anos, tem apresentado nos últimos anos Homocisteína sérica em 17 umol/L que não baixa mesmo com uso diário de ácido fólico.
Há 6 meses ela tem apresentado considerada baixa de ferro que caiu de 119 ug/dL para atuais 29 ug/dL.
Poderia a homocisteína estar interferindo nesse quadro de anemia?
Atenciosamente,