Em 2014, o maior prêmio internacional de matemática, a medalha Fields, foi para o brasileiro Artur Ávila, do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), instituição de pesquisa de ponta com sede no Rio de Janeiro (RJ). Em junho último, o Impa voltou ao foco da mídia pela obra de seu diretor-geral, o também brasileiro Marcelo Viana, que conquistou o Grande Prêmio Científico Louis D., outorgado pela Academia de Ciências da França.
É a primeira vez que a láurea é destinada à área de matemática. E Viana quer aproveitar os holofotes voltados em sua direção para mudar a imagem que a matemática tem por aqui. “É uma sociedade em que os pais dizem aos filhos que a matemática é difícil”, lamenta. Para transformar essa realidade, o diretor do Impa já arregaçou as mangas e projeta fazer de 2017 e 2018 o ‘Biênio da Matemática’. O ‘pretexto’ é a realização de dois eventos importantes no Rio: a Olimpíada Internacional de Matemática, em 2017, e o Congresso Internacional de Matemáticos, em 2018 – este último com o tema ‘Semeando o futuro’.
Crianças e jovens de todo o país serão convidados a participar de fanfarras, feiras e eventos para despertar a curiosidade e o interesse pela ‘ovelha negra’ do conhecimento. “Queremos fazer da matemática uma grande festa”, diz Viana.
O senhor ganhou recentemente o principal prêmio científico da França, por trabalhos realizados na área de sistemas dinâmicos. Como explicaria, para os leitores não familiarizados com o tema, o que aborda essa linha de pesquisa?
Sistema é qualquer fenômeno – natural ou artificial – no qual há diversas variáveis. Por exemplo, na previsão do tempo, há vários fatores envolvidos: temperatura, pressão, umidade, a ação humana, do Sol e da Lua. Todos esses ingredientes se relacionam. Outro exemplo é o sistema ecológico, em que diferentes espécies animais e vegetais interagem: o leão come a zebra, a zebra come a grama etc. Então, nessa linha de pesquisa, buscamos escrever equações que descrevem tal interação. Essas equações, em geral, são complicadas de resolver. É preciso entender o que elas dizem, quais as soluções possíveis, como elas se comportam, se é possível prever o que vai acontecer com esses fenômenos e, em muitos casos, saber também o que acontece se houver uma intervenção. Se há uma praga que está afetando sua produção agrícola e você decide usar agrotóxicos para controlá-la, essa medida será eficaz? Antes de jogar o agrotóxico na plantação, é preciso saber qual será seu efeito, porque pode ocorrer exatamente o contrário do que se espera: o de produzir uma espécie de praga resistente ao agrotóxico. Então, sistemas dinâmicos é uma área da matemática – e também da física – que busca descobrir quais são as equações que descrevem um dado fenômeno e tenta resolvê-las, ou, pelo menos, busca entender quais as possíveis soluções para poder fazer previsões e tentar controlar a evolução do sistema, além de estimar o impacto de uma dada intervenção.
Uma aplicação dessa linha de pesquisa é o planejamento urbano. É possível escrever equações de como flui o trânsito de uma cidade em função de sua topografia, da capacidade de escoamento das ruas etc., e, antes de fazer uma obra, pode-se prever qual será o efeito de fechar uma rua, ou de alargar outra via, porque, de novo, o efeito pode ser o contrário do esperado. Quais as vantagens disso? Fazer estudos antes de começar a gastar dinheiro com obras, de incomodar as pessoas e de causar estragos na natureza.
E como explicaria especificamente o seu trabalho dentro dessa área?
Eu busco utilizar ferramentas da teoria das probabilidades – o estudo do aleatório – para entender como evoluem fenômenos que são, em princípio, determinísticos (previsíveis). Esse tipo de estudo começou no século 19 para compreender o comportamento dos gases: um monte de bolinhas (moléculas) que se chocam umas com as outras. O que os pioneiros perceberam é que, embora seja possível tentar entender esse sistema propondo um modelo do tipo sinuca (em que as bolas batem umas nas outras), no caso de um gás, o número de bolinhas seria de 1 seguido de 23 zeros; não dá para escrever esse número de equações no quadro. Então, é preciso fazer uma abordagem probabilística. O [físico austríaco Ludwig] Boltzmann [1844-1906] inventou a palavra ‘ergódico’ para descrever esse tipo de estudo. Existe hoje uma área chamada teoria ergódica, que nasceu desse estudo dos gases e depois se expandiu. Na virada do século 19 para o 20, o grande matemático francês [Jules Henri] Poincaré [1854-1912] começou a vender a ideia de que não deveríamos tentar resolver essas equações, já que muitas vezes isso não é possível. Ele propôs uma abordagem qualitativa. A minha pesquisa é nessa área: métodos probabilísticos, que chamamos estocásticos, para descrever e entender a evolução dos sistemas dinâmicos.
O prêmio foi dado por um trabalho específico ou pelo conjunto da obra?
Foi concedido pelo conjunto da obra e também com base em um projeto que submeti dentro dessa linha e tendo como pano de fundo a cooperação entre o Brasil e a França em matemática, que é historicamente muito importante.
Quanto tempo tem essa cooperação?
Depende de como se calcula. Matemáticos franceses de primeiríssimo nível vieram visitar o Brasil nos anos 1950. André Weil [1906-1998] passou dois anos na USP [Universidade de São Paulo], Laurent Schwartz [1915-2002], que ganhou a medalha Fields, passou um ano na USP e também participou de vários eventos no Impa. Havia um programa da USP desenhado para atrair matemáticos europeus e americanos para cá de modo a alavancar o desenvolvimento da universidade. Mas havia contatos pessoais também, sobretudo do Leopoldo Nachbin [1922-1993] e do Maurício Peixoto, com matemáticos franceses, nos primórdios do Impa. Mas foram ações isoladas e de pouco efeito. A colaboração com a França realmente deslanchou no final dos anos 1970, tomando um rumo diferente. Na época, a França permitia que os jovens substituíssem o serviço militar por missões de cooperação com outros países. Foi quando começaram a vir franceses para cá. Um deles é o Jean-Christophe Yoccoz, que acabou ganhando a medalha Fields. Esses matemáticos jovens acabaram criando laços muito intensos com o Impa. Quando esse sistema de fazer o serviço militar obrigatório acabou na França, no início dos anos 1990, ficamos bastante preocupados e buscamos formas de tentar preservar a cooperção. Criou-se então um acordo com a agência de pesquisa da França, o CNRS, pelo qual o Impa foi classificado como uma unidade de pesquisa do CNRS e, portanto, é considerado ‘território francês’. A designação técnica é ‘unidade mista internacional’, e, em todas as áreas, o Impa é a única no Brasil.
Como vê o fato de o prêmio ter contemplado a matemática pela primeira vez?
Fico muito orgulhoso. Devo ser o máximo! [risos]. Vejo o prêmio como um reconhecimento no meio científico francês de que o Brasil hoje não é o mesmo dos anos 1950, quando os matemáticos franceses vinham para cá e não tinham praticamente com quem falar. É o reconhecimento do Impa e da matemática brasileira.
A área de sistemas dinâmicos é o carro-chefe do Impa. É, inclusive, a área em que seus pesquisadores têm obtido prêmios. Por que há essa ênfase nessa linha de pesquisa?
Eu costumo responder com outra pergunta: quem veio primeiro? O Pelé ou o Santos? Foi o Pelé que se beneficiou de estar num time que foi campeão do mundo, ou foi ele que fez o Santos ser campeão do mundo? Não tenho a menor dúvida de que o Pelé fez o Santos ser campeão do mundo, como o Messi fez o Barcelona ter sucesso e o Maradona fez a Argentina ganhar. Acredito que são os indivíduos que fazem a diferença. Então, no Impa, devemos creditar essa ênfase em sistemas dinâmicos a personalidades como Maurício Peixoto, Jacob Palis, Wellington de Melo (orientador do Artur Ávila), Ricardo Mañé [1948-1995]…. Quando se tem um grupo que desponta, que tem brilho, ele atrai os alunos mais ambiciosos intelectualmente. Mas, embora a área de sistemas dinâmicos tenha sido o carro-chefe do Impa há 30 anos, isso não é mais verdade. Temos 11 áreas de pesquisa e algumas delas com destaque internacional acentuado, como a de probabilidade e a de geometria.
O Impa é uma instituição reconhecida internacionalmente e uma ilha de excelência em pesquisa matemática. Existe algum projeto no instituto de descentralizar, ou melhor, de multiplicar essa produção científica e formar pessoal altamente qualifi- cado no resto do país?
Periodicamente, alguém levanta a ideia de criar filiais do Impa nas diversas regiões do país. Já se falou em fazer um Impa em São Paulo, outro no Nordeste. De nossa parte, adoraríamos. Mas tem que se pensar muito como isso seria feito. Não podemos criar no Nordeste uma instituição do jeito que o Impa é hoje, porque ele não foi criado assim. O Impa começou pequenininho, com dois pesquisadores que nem salário tinham, em duas salas emprestadas do CBPF [Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas]. O processo de começar tem que ser inteligente, não pode ser abrupto. Mas a ideia de descentralizar fisicamente o Impa, de ter outras unidades, é bem-vinda, desde que seja aproveitada a experiência histórica. Somos favoráveis a plantar um germe disso aqui e vê-lo crescer lentamente, com muito rigor e exigência na contratação. O Impa demorou 60 anos para ter 46 pesquisadores, e atraímos como visitantes mais 60 pessoas de dentro e de fora do país.
Essas pessoas que se formam no Impa retornam ao seu lugar de origem? Se sim, elas poderiam criar outros centros de excelência em suas cidades, não?
Retornam. Praticamente todos os programas de pós-graduação em matemática que existem no Brasil hoje – com exceção da USP e da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] – foram construídos por ex-alunos do Impa. Essa irradiação certamente aconteceu ao longo do tempo. Então, tem a descentralização física, mas tem também outra descentralização, que já vem acontecendo, em que o Impa se envolve em iniciativas que vão além da própria pesquisa. O Impa faz todo ano as Olimpíadas de Matemática em escolas públicas; mantém o programa de aperfeiçoamento de profes- sores do ensino médio, criado em 1990; apoia cada vez mais a Olimpíada Brasileira de Matemática e ainda organiza, desde 1957, o Colóquio Brasileiro de Matemática, que se realiza a cada dois anos e que reúne toda a comunidade brasileira de matemáticos. Então, a descentralização de atividades já vem acontecendo e talvez seja tão importante quanto a descentralização física.
Em 2018, o Rio de Janeiro vai sediar pela primeira vez o Congresso Internacional de Matemáticos, e o senhor é responsável pela organização e direção do encontro. Qual a importância de realizar eventos como esse no país?
Enorme. O congresso foi pensado no final do século 19 como maneira de juntar os matemáticos para trocarem ideias. Embora o mundo tenha mudado muito, o encontro se mantém com esse objetivo. E, curiosamente, nunca aconteceu no hemisfério Sul. O Brasil aderiu à União Matemática Internacional em 1954. Entramos no grupo 1, que é o mais baixo de cinco. Subir nos grupos significa que a matemática é melhor, o país tem mais votos na assembleia e paga mais pela anuidade. Já passamos para o grupo 2 e o 3 nos anos 1970 e para o grupo 4 em 2005. Eu tenho o sonho de que passaremos para o grupo 5, num horizonte não muito distante. Então, termos conseguido ganhar a disputa para sediar o congresso é o reconhecimento internacional de nossa matemática e de nossa capacidade de organização. É um evento caro, inventando seus próximos problemas por pelo menos mais 100 anos complexo, difícil. Mas o mais importante é que, quando propusemos nossa candidatura, imaginamos que esse congresso precisava ter lucro para o país. E o que seria? Usarmos o encontro para popularizarmos a matemática. Escolhemos como tema ‘Semeando o futuro’. Então, nosso grande desafio é aproveitar essa oportunidade para mudar a imagem que a matemática tem na sociedade.
Acha possível fazer divulgação de matemática atraente para o grande público?
Se eu não achasse, não estaria investindo nisso. Pouco depois de ganharmos o congresso, ganhamos também a organização da Olimpíada Internacional de Matemática, que será um ano antes. Então, tive a ideia de declarar o período entre os dois eventos como o Ano da Matemática no Brasil. Um dos nossos conselheiros sugeriu que fizesse o governo declarar oficialmente. Melhor que isso: o Congresso. Entrei em contato com um pequeno grupo de deputados, que gostaram da ideia, mas, segundo eles, o ‘ano’ deveria começar no dia 1° de janeiro. Então, fizeram uma contraproposta: por que não declarar o ‘biênio da matemática’ para o período 2017-2018? Conclusão: tem um projeto de lei tramitando no Congresso – já foi aprovado na Câmara e pela Comissão de Educação do Senado e espera aprovação final do Senado. E o que seria o biênio? É um instrumento fundamental, porque nos dá legitimidade para escrever para as secretarias de educação e sugerir que as escolas participem de atividades, orientem seus currículos e atividades extracurriculares na direção da matemática. Esse é o meu grande desafio: fazer o biênio acontecer. O primeiro passo foi dado. Agora temos que começar a dialogar, a popularizar a matemática. Precisamos mudar a imagem que a matemática tem na sociedade. É uma sociedade em que os pais dizem aos filhos que a matemática é difícil. É um grande trabalho, mas é possível. E começaremos com fanfarras. No fim de abril, vamos promover o Festival da Matemática, uma feira com atividades para a população em vários locais do Rio de Janeiro e talvez em todo o país. Estou propondo também que a matemática seja o tema da Semana de Ciência e Tecnologia de 2017.
Em encontros como o Congresso Internacional de Matemáticos, costumam ser lançados desafios para as próximas décadas. Poderia citar quais são os problemas centrais que os matemáticos ainda não conseguiram resolver?
O congresso é um encontro para conversar sobre os últimos progressos da área. No evento de 1900, [o matemático alemão David] Hilbert [1862-1943] fez uma lista de problemas para o século 20 que acabou se tornando muito importante. Dos 23 problemas que formulou, um ainda resiste sem solução e outros foram resolvidos, ou se revelaram errados. Foram feitas várias listas para o século 21, não tão bem-sucedidas. O mundo e a matemática estão muito mais complexos hoje. Há problemas famosos e eu, particularmente, gosto de dois deles. Um é a hipótese de Riemann, que talvez seja o mais importante em aberto: é uma afirmação técnica que o matemático alemão Bernhard Riemann [1826-1866] fez, supondo que “se este ponto for verdadeiro, então eu consigo provar várias coisas”. De 1859 para cá, muita gente tem seguido a mesma hipótese e foi proposto um monte de resultados, mas nenhum definitivo. Outro problema de que eu gosto muito é P = NP. Ele coloca a seguinte pergunta: todos os problemas para os quais existe uma maneira de verificar se a solução está certa em tempo rápido têm também uma maneira de encontrar a solução rapidamente? Esse problema tem muitas ramificações práticas e teóricas – e até implicações filosóficas, como o que significa o pensamento humano esses são problemas famosos, que dão direito a 1 milhão de dólares. Embora a matemática seja motivada por esse tipo de desafio, ela também é um bichinho que cresce por vontade própria. Nesse sentido, gosto de citar algo que eu mesmo escrevi: “Eu acho que foi Voltaire que disse que nem o profeta mais talentoso consegue estar sempre errado”. Tem outra versão sobre isso que diz que “é muito difícil fazer profecias, especialmente sobre o futuro”. [risos] Frequentemente, tem colegas que se questionam se é o fim da matemática, se se acabaram os problemas etc. Mas, a verdade é que temos novos desafios constantemente. Então, vou fazer uma profecia: a matemática vai continuar cheia de energia e vitalidade, inventando seus próximos problemas por pelo menos mais 100 anos.
Alicia Ivanissevich
Ciência Hoje/ RJ
Marco Moriconi
Instituto de Física
Universidade Federal Fluminense