A chegada do navegador italiano Cristóvão Colombo (1451-1506) à ilha que seria batizada de San Salvador, no Caribe, iniciou, em 1492, o que muitos chamaram de “encontro entre dois mundos”. É difícil estimar a demografia do continente americano àquela época. Estudos oscilam entre números relativamente baixos – o geógrafo norte-americano William Denevan (1931-) calculou pouco mais de 57 milhões de pessoas – e cifras muito mais altas, chegando a 100 milhões, como propôs o historiador norte-americano Woodrow Borah (1912-1999). Igualmente difícil é quantificar a parcela dessa população que foi dizimada pelo contato com os europeus. O filólogo venezuelano Angel Rosenblat (1902-1984) defendeu que 75% das pessoas que viviam no continente americano foram eliminadas até 1650, enquanto o historiador espanhol Nicolás Sánchez-Albornoz (1926-) chegou a conceber 95%, mesmo número especulado por antropólogos como o brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (1951-) e o norte-americano Henry Dobyns (1925-2009) – este último tendo classificado esse processo como um “cataclismo biológico”.
Os responsáveis pelo extermínio daqueles que viriam a ser chamados de ‘índios’ são nossos conhecidos: os violentos ataques que marcaram a invasão, os processos de escravização e, sobretudo, as doenças que foram trazidas pelos europeus – e cujos surtos geralmente vinham seguidos de fome e de desagregação da produção de subsistência. Tais doenças eram mais letais para os indígenas, segundo o biólogo norte-americano Jared Diamond (1937-), porque, em sua maioria, eram decorrentes do contato com animais domesticados – o que era comum no velho mundo, mas praticamente não existia na América, reduzindo o estímulo imunológico. Foi o caso de diferentes tipos de gripe e da varíola.
Esta última foi a doença que mais destruição trouxe aos habitantes originários do continente. No Brasil, vários surtos ocorreram, desde as primeiras décadas de presença portuguesa. Um deles, ocorrido entre 1563 e 1564 em Itaparica e Ilhéus, na Bahia, teve 30 mil mortos estimados em três meses. A seu respeito, o testemunho do padre jesuíta português Leonardo do Valle (1538-1591) foi revelador não apenas do desconhecimento da doença, mas também de sua interpretação pela ótica da moralidade cristã. Referindo-se aos indígenas, ele afirmou, em 1563, que “seu pecado foi castigado por uma peste tão estranha que por ventura nunca nestas partes houve outra semelhante. […] Finalmente chegou a coisa a tanto que já não havia quem fizesse as covas […] e com tudo isso diziam os índios que não era nada em comparação da mortalidade que ia pelo sertão adentro”.
A fala do padre Leonardo do Valle é testemunho, também, da interiorização das doenças trazidas pelos europeus. Fugindo delas, os indígenas acabavam transportando-as por imensas extensões, atingindo até mesmo o coração da Amazônia. Isso nos ajuda a explicar algo de cuja dimensão apenas nos demos conta há pouco tempo: as sociedades amazônicas eram muito mais diversas do que se pensava desde o período colonial. Como revela hoje a arqueologia, muitas sociedades de grande porte, inclusive com aldeias fortificadas, existiam às margens dos grandes rios, como o Amazonas. Seu desaparecimento (ou a alteração de sua organização) muito antes de qualquer contato com os europeus deveu-se, muito provavelmente, à disseminação das moléstias, que acabou com esses centros de maior concentração demográfica.
Frente a esse cenário, é razoável recuperar a declaração do importante líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro Ailton Krenak (1954-): não se trata de um mero “encontro de mundos”. O que se estabeleceu foi uma guerra de mundos! Muitas vezes, nessa guerra, a percepção das formas de contágio e da maior letalidade entre os indígenas levou a que se buscasse conscientemente a contaminação como arma. A médica e pesquisadora brasileira Cristina Gurgel menciona, em seu livro Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos (Editora Contexto, 2010), um ofício em que Balthazar da Silva Lisboa (1761-1840), ouvidor de Ilhéus, de 1799, descrevia doações de vestimentas infectadas aos indígenas. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) descreve, no livro Os índios e a civilização (Global Editora, publicado originalmente em 1970), um caso no sul do Maranhão, em 1816, em que estratégia semelhante foi utilizada contra o povo indígena Timbira, para que contraíssem varíola e liberassem áreas para a criação de gado.
Ao longo do século 20, continuou sendo recorrente que agentes de Estado e civis infectassem indígenas. Um famoso documento, hoje chamado de ‘Relatório Figueiredo’, de 1967, denuncia que os Pataxó-Hãhãhãe, de Itabuna (Bahia), foram contaminados propositalmente com o vírus da varíola, entre os anos 1950 e 1960, “para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo”. Segundo o relatório, “a falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato”. Foi justamente isso o que aconteceu com tantos povos ao longo das décadas de 1970 e 1980, afetados pelos planos e projetos de desenvolvimento da ditadura militar para a Amazônia. A construção de rodovias – como a Transamazônica, a BR-163 e a BR-174 – e de hidrelétricas, bem como a expansão da agropecuária e da mineração, quase fizeram desaparecer diversos povos, assolados pela violência e por doenças. Waimiri-Atroari, Yanomami, Nambiquara, Krenakore, entre outros, foram alguns dos povos que pagaram o preço da associação entre a negligência histórica do Estado brasileiro e os interesses econômicos do empresariado.
Ainda que, na maioria das vezes, a contaminação dos indígenas não tenha ocorrido por um esforço deliberado, isso não anula o fato de que as doenças foram parte integrante de um esforço de guerra de conquista, e isso por quatro motivos principais: 1) fizeram parte do cotidiano do contato forçado que europeus e seus descendentes estabeleceram com povos indígenas; 2) expandiram-se graças à omissão do Estado colonial (posteriormente Estado nacional); 3) foram, muitas vezes, usadas propositalmente como arma, como vimos; 4) as informações relativas ao contágio foram constantemente dissimuladas e escondidas.
Hoje, em 2020, os elementos dessa guerra de conquista não parecem ter terminado. No dia 1º de abril, foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 entre indígenas, no Brasil: uma mulher do povo Kokama, moradora de Santo Antônio do Içá (Amazonas) e agente de saúde indígena. Em 02 de julho, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), já havia 7.198 casos confirmados e 166 óbitos. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), entretanto, contesta esses números, registrando para o mesmo dia 10.373 casos e 412 indígenas mortos, a maior parte deles na região amazônica. As diferenças entre os dados se deve, em parte, ao fato de a SESAI apenas contabilizar os casos em terras indígenas homologadas, não incluindo indígenas vivendo em situação urbana e não lhes oferecendo, tampouco, assistência.
Em coletiva de imprensa no dia 09 de junho, o chefe da secretaria, Robson Santos da Silva, afirmou que os números à época (85 mortos, segundo a SESAI) eram baixos, e que procedimentos precoces foram adotados pelo Ministério da Saúde. Informou uma taxa de letalidade entre os casos confirmados de 3,9%, que contrasta com os 9,6% indicados pela APIB para o mesmo período. No mesmo dia, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, declarou que seu ministério se antecipou à crise, inclusive entregando 520 mil cestas básicas a comunidades indígenas – algo que a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) contesta.
Não são apenas as organizações indígenas, entretanto, que rebatem as conclusões otimistas dos órgãos oficiais. Pesquisas apontam que os povos indígenas são mais vulneráveis diante da expansão da Covid-19. Dessa vez, não por razões biológicas, já que indígenas e não indígenas estão suscetíveis ao contágio, mas por condições socioeconômicas, pelo deficiente atendimento à saúde, pela alta mortalidade infantil e, especialmente, pelos altos índices de doenças respiratórias, um dos principais fatores de morbidade e mortalidade indígena. Além disso, o padrão de vida comunitária das aldeias aumenta a possibilidade de contágio. Mesmo as práticas de cura tradicionais, como lembra a antropóloga brasileira Aparecida Vilaça em seu artigo ‘A dupla ameaça aos povos indígenas’, publicado na Revista Serrote, envolvem um cuidado físico através do toque, tendo uma dimensão social que favorece a contaminação.
Considerados um povo de recente contato, e especialmente vulnerável à pandemia, os Yanomami sofrem com a investida de garimpeiros – atualmente cerca de 20 mil em suas terras, sendo eles o principal vetor de doenças. Com cinco mortes e 188 casos confirmados em seu território, segundo dados da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana relativos ao dia 02 de julho, os Yanomami têm sido um dos povos mais afetados pela Covid-19. Eles preocupam pelo alto índice de doenças respiratórias e pela insuficiência de UTIs em Roraima – 0,72 UTIs para cada 10 mil habitantes, segundo relatório do Instituto Socioambiental (ISA) e da Universidade Federal de Minas Gerais. Outro estudo destas instituições, revisado pela Fiocruz, estima que até 40% dos Yanomami que moram perto de minas ilegais podem ser infectados pela doença, anunciando um eminente risco de “genocídio com a cumplicidade do Estado brasileiro”.
Apesar do que se pode imaginar, povos em situação de isolamento também se encontram em situação de grande fragilidade. É o que acontece na Terra Indígena Vale do Javari (Amazonas), que possui a maior quantidade de povos em situação de isolamento no mundo. Um dos principais riscos aos povos desse território são missionários evangélicos que frequentemente investem em tentativas de contato. Mas, em relação à Covid-19, as denúncias são de que a transmissão da doença ocorreu por meio dos próprios agentes de saúde. Diante dos perigos do avanço da doença, 20 das 23 famílias do povo Matsés (Mayoruna) que vivem em Nova Esperança, dentro do território indígena, foram se isolar na floresta, de acordo com o site De olho nos ruralistas – algo que, como já vimos, pode aumentar radicalmente o alcance da transmissão.
Em nota de 10 de junho, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) nos lembra que nenhum plano de enfrentamento ao novo coronavírus é efetivo sem a retirada dos invasores das terras indígenas e a sua efetiva proteção. A nota reitera que a postura do governo tem sido de negacionismo em relação aos grandes incêndios de 2019, afrouxamento da legislação ambiental, tentativas de autorizar mineração e arrendamento de terras indígenas e obstrução de processos de identificação e delimitação de terras indígenas já aprovados. Lembra ainda uma instrução normativa da Fundação Nacional do Índio (Funai), de 16 de abril, reconhecendo registros de imóveis privados em terras indígenas, e a gradual desestruturação da SESAI.
Vale recordar que, em março de 2019, era evidente a intenção de desmonte dessa secretaria, com o anúncio feito pelo ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, de que a saúde indígena seria municipalizada – o que acabou não ocorrendo frente à intensa mobilização indígena. No dia 07 de julho de 2020, o Projeto de Lei (PL) 1142, que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, já aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, recebeu uma série de vetos do Presidente da República, entre eles, o veto à obrigação do governo de fornecimento de água potável, materiais de higiene e leitos hospitalares aos indígenas.
Essa postura do governo parecia já anunciada quando a primeira medida provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, no dia de sua posse, 1º de janeiro de 2019, pretendia transferir da Funai para o Ministério da Agricultura a prerrogativa de demarcar terras indígenas – medida barrada pelo Congresso e, finalmente, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Diante disso, não é possível conceber o rápido avanço da Covid-19 em terras indígenas como uma mera fatalidade. Intrusão nas terras, omissão do poder público e divulgação de dados questionáveis permanecem como características históricas de um processo de invasão que nunca terminou.
Nesse contexto, o movimento indígena e as comunidades se organizam, pressionando a opinião pública e divulgando o que acontece em suas terras, fazendo petições, circulando informativos nas próprias línguas indígenas, propondo campanhas de arrecadação e, muitas vezes, fechando por conta própria os seus territórios à presença externa. No dia 29 junho, a APIB lançou o plano Emergência Indígena, para o enfrentamento à Covid-19, com diretrizes sanitárias, judiciais, políticas e de comunicação. No dia 1º de julho, a mesma instituição acionou o STF com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, buscando, entre outras coisas, instalação de barreiras sanitárias e retirada de grupos invasores de terras indígenas. O antropólogo brasileiro Carlos Fausto (1963-), em matéria publicada no Nexo Jornal em 11 de junho, afirmou que os Kuikuro do Alto Xingu anunciaram que “vão fazer lockdown na aldeia”. Uma palavra nova atualizando uma prática que os povos indígenas conhecem há cinco séculos: resistir às consequências trágicas da guerra de conquista.
João Gabriel da Silva Ascenso
Colégio de Aplicação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rayane Barreto de Araújo
Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
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