De herói a vilão, a história do fentanil

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

No centro de uma crise de saúde pública nos Estados Unidos, a substância analgésica foi desenvolvida para ser importante aliada no combate à dor. Seu criador, o jovem médico belga Paul Janssen, hoje é conhecido como o maior inventor de drogas farmacêuticas de todos os tempos

CRÉDITO: FOTOS JOHNSON $ JOHNSON DIVULGAÇÃO

Uma apreensão de fentanil, um opioide muito potente, feita pela Polícia Federal no estado do Espírito Santo, chamou a atenção no noticiário. Não foi a primeira apreensão dessa substância em território nacional, mas foi a primeira vez que ficou comprovada a sua produção clandestina no Brasil. O fentanil é um narcótico poderoso e tem sido um dos maiores culpados pelo aumento do número de mortes associadas ao uso de drogas recreativas nos Estados Unidos. Traficantes “batizam” drogas ilegais, como a heroína, com fentanil e, devido à enorme potência e eficácia dessa droga, o risco de overdose é enorme. Mas apesar da fama, o fentanil não foi concebido como uma droga para causar danos às pessoas, mas, sim, como um analgésico, que, ao longo das últimas décadas, teve um importante papel no avanço do tratamento da dor. 

Sua história teve início na década de 1950, em um laboratório um tanto precário e mal equipado, instalado no terceiro piso de uma antiga fábrica na cidade de Turnhout, na Bélgica. O laboratório em questão era ocupado por um pequeno grupo de trabalhadores, alguns sem formação universitária, sob a liderança de um pesquisador recém-formado, de apenas 27 anos, que tinha como objetivo desenvolver uma droga anestésica muito potente. Parece um roteiro de uma série no melhor estilo de ficção policial, mas, na verdade, foi a centelha que estimulou grandes avanços na pesquisa em neurociências.  

O jovem líder do grupo era um médico chamado Paul Janssen (1926-2003), filho de Margriet Fleeracker e do também médico Constant Janssen. O pai de Paul tinha uma carreira estável e lucrativa como médico de família na sua cidade natal, mas, nos anos 1930, ele conseguiu os direitos exclusivos para a distribuição, na Bélgica, na Holanda e no Congo Belga (atual República do Congo), de produtos da empresa farmacêutica húngara Gedeon Richter. O negócio fez tanto sucesso que ele decidiu abandonar a medicina.

Paixão por criar novos medicamentos

A essa altura, a semente já havia sido plantada: desde muito jovem, Paul já havia decidido seguir os passos do pai. Ele estudou física, química e biologia na faculdade de Notre Dame de la Paix e, mais tarde, se formou em medicina pela Universidade Católica de Leuven, ambas na Bélgica. A combinação de seus conhecimentos de química básica com medicina foi determinante na carreira do jovem pesquisador, que acreditava firmemente que as duas ciências deveriam andar juntas para produzir mais e melhores compostos que poderiam ser utilizados na prática médica.

A combinação de seus conhecimentos de química básica com medicina foi determinante na carreira do jovem pesquisador, que acreditava firmemente que as duas ciências deveriam andar juntas

Paul praticou a medicina por alguns anos e se tornou professor de farmacologia na Universidade de Ghent, Bélgica. Mas sua verdadeira paixão estava na indústria e no desenvolvimento de drogas. No início da década de 1950 ele recebeu um empréstimo de seu pai e abriu um laboratório no terceiro andar da antiga fábrica que abrigava a empresa de sua família. 

A estratégia do jovem médico no desenvolvimento de novas drogas era baseada na modificação gradual de moléculas já existentes. Para desenvolver o fentanil, Paul se baseou na molécula de um outro opioide, a meperidina. Sua abordagem consistia em fazer pequenas alterações na molécula da meperidina, que foi escolhida como ponto de partida por ser mais simples estruturalmente do que um outro opioide conhecido na época, a morfina. Ambas as moléculas tinham algo em comum, a presença de uma amina heterocíclica chamada de piperidina, um grupamento químico composto por cinco átomos de carbono e um nitrogênio, todos ligados formando um anel. A piperidina é encontrada em muitos compostos naturais. Paul e sua equipe desconfiavam que a presença da piperidina na morfina e na meperidina não era uma coincidência, pois ali estava o componente essencial da atividade analgésica. 

 A morfina e a meperidina, que eram os opioides disponíveis para a medicina, não conseguiam penetrar no sistema nervoso central com muita eficiência, justamente onde o alvo dessas drogas estava localizado. Isso acontece porque essas drogas têm pouca solubilidade em lipídios (gorduras), e essa característica dificulta a sua difusão pelos nossos tecidos, especialmente a barreira hematoencefálica, um tipo especial de tecido que funciona como um impermeabilizante, isolando seletivamente nosso sistema nervoso de outros tecidos do corpo. Assim, os pesquisadores começaram a modificar a meperidina de acordo e, passo a passo, iam adicionando ou retirando átomos ou grupamentos químicos e testando sua atividade, até encontrar novas substâncias mais lipossolúveis, com capacidade para penetrar na barreira. 

Além disso, Paul e seu grupo tentaram melhorar a atividade intrínseca dessas drogas. Hoje nós sabemos que os opioides atuam em receptores no nosso sistema nervoso (os receptores opiodes, como o receptor μ, o receptor δ e o receptor κ). Esses receptores são proteínas encontradas nas superfícies das células do sistema nervoso central e, quando se encontram com um opioide, iniciam uma complexa cascata de sinalização que leva a inibição da dor. A equipe também adicionou outras entidades químicas que eles acreditavam que aumentariam a afinidade de ligação com os receptores da dor. Em poucos anos, eles descobriram dúzias de moléculas com melhor atividade do que a morfina e a meperidina e, finalmente, em 1960 o fentanil foi descoberto. O fentanil é cerca de 100 vezes mais potente do que a morfina quando testado em animais de laboratório.

O fentanil é cerca de 100 vezes mais potente do que a morfina quando testado em animais de laboratório

Medicamentos em série

Apenas nos três primeiros anos de existência, a equipe de Paul Janssen testou mais de 800 novos compostos químicos com atividade farmacológica, sendo que oito deles entraram no mercado. Nas décadas seguintes, sua empresa criou 79 novos medicamentos, dentre os quais antipsicóticos, antifúngicos, antiparasitários e analgésicos. O sucesso de sua companhia, chamada de Janssen Pharmaceutica,  rendeu a Paul Janssen o título de maior inventor de drogas farmacêuticas de todos os tempos. O abuso do fentanil segue como um dos maiores problemas de saúde pública relacionados ao uso de drogas recreativas no mundo. Apesar disso, novos métodos não-invasivos (como adesivos transdérmicos ou sublingual) de administração de medicamentos têm sido desenvolvidos e tornaram o fentanil um medicamento essencial no tratamento da dor.

Apenas nos três primeiros anos de existência, a equipe de Paul Janssen testou mais de 800 novos compostos químicos com atividade farmacológica, sendo que oito deles entraram no mercado

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