Desde a reunificação pela qual passou em 1990, a Alemanha enfrenta os desafios de integrar realidades muito distintas num mesmo sistema: de um lado, a porção oriental, ex-socialista; de outro, a ocidental, que já funcionava de acordo com os princípios da economia de mercado. Uni-las em um país coeso exige políticas e estratégias muito específicas, o que inclui, é claro, o setor de ciência e tecnologia, responsável por produzir o conhecimento do qual as empresas do país precisam para inovar.

Em entrevista à CH, o economista Michael Fritsch, professor de dinâmica de negócios, inovação e mudança econômica da Universidade Friedrich-Schiller, em Jena (Alemanha), conta como foi a incorporação da ex-República Democrática Alemã à lógica da economia de mercado e enumera dificuldades e estratégias de sucesso no desenvolvimento de políticas públicas para fomentar a pesquisa e a inovação nessa parte do país.


Michael Michael Fritsch, economista e professor
de dinâmica de negócios, inovação e mudança
econômica da Universidade Friedrich-Schiller,
em Jena, Alemanha. (foto cedida pelo entrevistado)

No final da República Democrática Alemã (GDR), em 1989, a economia da Alemanha Oriental era muito ineficiente se comparada à porção ocidental do país. Então, imagino que houvesse muito a fazer em termos de reduzir as disparidades entre as duas partes da Alemanha. Como o governo alemão decidiu por onde começar? Quais foram as primeiras metas traçadas? Uma das principais razões para a ineficiência da Alemanha Oriental era, obviamente, o sistema do tipo socialista. Isso foi radicalmente mudado quase de um dia para o outro no curso da unificação do país, quando foi introduzido um sistema de economia de mercado. Com a unificação da Alemanha, a parte Oriental virou membro da União Europeia e, assim, tornou-se automaticamente elegível para políticas regionais de apoio. Um instrumento fundamental da política de desenvolvimento regional da época eram subsídios generosos que permitiram às empresas da Alemanha Oriental substituir sua maquinaria desatualizada por equipamentos modernos.

No entanto, as razões da baixa produtividade econômica da Alemanha Oriental eram complexas, e os equipamentos modernos não eram suficientes para alcançar o nível de produtividade da Alemanha Ocidental. As empresas da porção oriental tiveram não apenas que mudar radicalmente seus processos pro­dutivos, mas também introduzir novos produtos e encontrar consumidores para eles. Isso requereu novas qualificações e novos métodos administrativos. A qualificação básica da força de trabalho dessa parte do país não foi um gargalo importante para esse crescimento, embora carecessem de experiência no trabalho com equipamentos modernos. Mais importante do que isso foi a falta de administradores com experiência num sistema econômico de mercado.

Quais foram os maiores desafios já superados pela Alemanha Oriental nas últimas décadas? Administrar as inovações radicais que foram necessárias e o modo de agir para conseguir sucesso em um mercado econômico do tipo ocidental foram os maiores desafios. O que fez isso particularmente difícil foi o alto nível de turbulência durante os primeiros anos do processo de transformação da Alemanha Oriental. Muitas empresas governamentais e parceiros nos antigos países socialistas desapareceram do cenário e o sistema público de pesquisa mudou completamente. Assim, as empresas tiveram que estabelecer novas reações não apenas com clientes e fornecedores, mas também com todos os outros tipos de atores relevantes. Além disso, o sistema de administração pública foi completamente reorganizado e todo mundo teve que aprender as novas regras do jogo Felizmente, a base de conhecimento na Alemanha Oriental era boa, ainda que fossem necessárias muitas atualizações para alcançar os novos padrões.

Poderia falar um pouco sobre a ideia de estabelecer um sistema regional de inovação e como ele funciona? Os processos de inovação nas empresas são caracterizados pela divisão de trabalho com fornecedores, consumidores, concorrentes e instituições públicas de pesqui­sa. Esses processos, que envolvem transferência de conhecimento e aprendizagem coletiva, são parte de sua conjuntura regional. Então, as regiões podem ser consideradas sistemas de inovação caracterizados por um conhecimento de base específico moldado por tradições e experiências, e isso se manifesta nos produ­tos das empresas locais e na qualificação da força de trabalho correspondente. As principais vias de promo­ção do desenvolvimento de sistemas de inovação regionais são melhorar a qualificação da força de traba­lho e estimular relações de cooperação entre as em­presas. Universidades e outras instituições públicas de pesquisa podem assumir um papel fundamental nesse processo.

A política de inovação na Alemanha Oriental conseguiu estimular processos de inovação regional em pelo menos dois aspectos. Primeiro, construíram uma rica infraestrutura de instituições de pesquisa públicas. Depois, houve muitas iniciativas que tentaram estimular a cooperação e a transferência de tecnologia entre as empresas, assim como entre empresas privadas e a pesquisa pública.­

A pesquisa reali­zada por instituições públicas no sistema socialista da Alemanha oriental seguia uma abordagem burocrática e ineficiente

Depois de 1989, todo o cenário da pesquisa pública na Alemanha Oriental mudou. Isso incluiu o fim de algumas instituições de pesquisa e a criação de outras, sobretudo institutos extrauniversidades, como o Max Planck, o Fraunhofer e o Leibniz. Por que isso foi importante e qual é hoje o papel dessas instituições de pesquisa? A pesquisa reali­zada por instituições públicas no sistema socialista da Alemanha oriental seguia uma abordagem burocrática e ineficiente. A maior parte da pesquisa básica era realizada nos grandes institutos das academias de ciência, que forneciam seus resultados a empresas governamentais, mas interagiam muito pouco com elas. No momento da reunificação do país, parte considerável das pesquisas das academias de ciência não era atualizada de acordo com padrões internacionais. Houve uma decisão política de integrar as partes mais promissoras dessas academias ao sistema já bem estabelecido da Alemanha Ocidental, que contava com organizações de pesquisa fora das universidades (institutos das sociedades Max Planck, Fraunhofer e Leibniz), e fechar o resto. Hoje, a Alemanha Oriental é bem equipada com institutos públicos de pesquisa que constituem um elemento importante de seu sistema de inovação. Os institutos das universidades foram avaliados e reorganizados de acordo com o modelo da Alemanha Ocidental. Nas ciências naturais e engenharias, boa parte do pessoal permaneceu em suas posições. Já os institutos universitários de ciências sociais e econômicas foram, em sua maioria, fechados, porque suas atividades eram fortemente moldadas pelas ideologias comunistas. Muitos desses institutos foram depois recriados e equipados com novos profissionais do Ocidente.

Parte da transformação no setor de pesquisa e desenvolvimento foi a privatização de empresas socialistas pela agência Treuhand. Por que essa estratégia falhou? A mis­são da agência Treuhand era privatizar empresas governamentais socialistas. Isso significava vendê-las a investidores privados ou – no caso de empresas que haviam sido expropriadas pelo regime socialista – transferi-las de volta aos seus donos originais. Em parte, foi preciso dividir grandes conglomerados em unidades menores e fechar as partes que não pareciam viáveis economicamente e, por isso, não conseguiram investidores privados.

Dada a enorme pressão sobre a Treuhand, podemos dizer que ela fez um trabalho bom, no fim das contas. Claro que houve erros e a agência tornou-se impopular entre os alemães da região, que a culpavam pelo grande número de demissões no curso da privatização – após alguns anos, o número de vagas nas empresas privatizadas pela Treuhand representava apenas uma pequena parte do total que existia anteriormente. Mas, em termos da dinâmica econômica e de empregos, foram mais relevantes os inúmeros novos negócios que se estabeleceram depois do colapso do estado socialista e do estabelecimento de um contexto mais favorável ao empreendedorismo.

A maior parte dos empregos e atividades de inovação está em empre­sas que foram fundadas durante o processo de transformação

O senhor mencionou que o empreendedorismo na Alema­nha Oriental possibilitou o surgimento de muitas start-ups. Qual é o papel dessas novas empresas no atual sistema de pesquisa e desenvolvimento? Hoje, as vagas de emprego nos resquícios de antigas empresas governamentais representam uma parcela muito pequena. A maior parte dos empregos e atividades de inovação está em empre­sas que foram fundadas durante o processo de transformação. Um exemplo positivo desse processo de reestruturação é a indústria óptica na região de Jena. Nos tempos da República Democrática Alemã, Jena era dominada pela companhia Carl-Zeiss, famosa mundialmente pela alta qualidade de seus equipamentos ópticos. Depois da unificação, as vagas nessa empre­sa foram reduzidas de cerca de 30 mil pessoas para menos de 5 mil, por causa das reorganizações e reorienta­ções necessárias. Muitos ex-funcionários da Carl-Zeiss fundaram negócios próprios. Hoje, Jena é um dos polos mundiais da indústria óptica, com mais de 100 empresas. E o mais importante para esse desfecho tão positi­vo foram o forte conhecimento de base regional e o espírito empreendedor desses profissionais!

O senhor publicou um artigo no qual afirmava que se passaram cerca de 15 anos até que os níveis de trabalho autônomo na Alemanha Oriental alcançassem os da Alemanha Ocidental. Apesar desse alcance, encontramos várias peculiaridades no cenário do trabalho autônomo da Alemanha Oriental que parecem ser um legado do período socialista. Poderia explicar melhor? Este é um dado realmente empolgante! Comparamos níveis regionais de formação de novos negócios e trabalho autônomo hoje com os ní­ veis regionais de trabalho autônomo em 1925 e encontramos uma correspondência significativa. Por exemplo, as regiões que tinham altos níveis de traba­lho autônomo em 1925 tenderam a apresentar relativamente mais start-ups depois da unificação alemã e conseguiram lidar com os desafios da transformação relativamente bem. Dadas as graves rupturas pelas quais a Alemanha Oriental passou entre 1925 e hoje – a devastadora Segunda Guerra Mundial, a ocupação pelo exército russo e 40 anos de um regime socialista que tentou extinguir as empresas privadas –, ficamos bem surpresos ao encontrar esse alto grau de persistência regional. Acreditamos que essa persistência indica a presença de uma tradição regional e de uma ‘cultura’ de empreendedorismo que pode ser considerada uma característica própria da população local.

Em nossa análise também pudemos mostrar que uma cultura regional de empreendedorismo tem um efeito positivo significativo sobre o crescimento dos empre­gos hoje, mais de 80 anos depois. De fato, as regiões da Alemanha Oriental com uma tradição histórica de empreendedorismo têm sido mais bem-sucedidas ao li­dar com os desafios da transformação do socialismo para a economia de mercado ocidental.

Atualmente, a Alemanha Oriental já tem estabelecida uma parceria de sucesso entre os setores público e privado para fomentar a pesquisa e o desenvolvimento (algo ainda muito incipiente no Brasil). Como essa parceria evoluiu e quais são os desafios da relação público-privado? Comparada a outros países, a cooperação entre pesquisa pública e empresas privadas na Alemanha pode parecer real­mente intensiva. Na Alemanha, acreditamos que os conhecimentos transferidos das instituições públicas de pesquisa para o setor privado podem ser ainda consideravelmente aperfeiçoados. O principal problema aqui é estabelecer contatos pessoais e relações confiá­veis entre os atores. A Alemanha Oriental pode ser con­siderada um laboratório para programas que tentam estimular a formação de redes de inovação regionais, que incluem institutos públicos de pesquisa.

Um aspecto interessante de muitos programas que tentam estimular essas redes de inovação é que eles incluem um elemento de competição. Atores são convidados a submeter ideias para a organização coletiva das atividades de inovação, e as ideias mais promisso­ras são então apoiadas. Esses programas tendem a ter grande impacto na motivação dos atores para desenvolver ideias, e melhorar sua relação com outros atores pode ser relevante para suas atividades de inovação.

Espera-se que esses polos [de inovação] se­jam um exemplo para outras regiões e, nesse sentido, estimulem as atividades de inovação em uma escala mais ampla no longo prazo

A Alemanha Oriental ainda é uma região muito heterogênea, com polos de excelência (como Berlim, Dresden e Jena) cercados por regiões menos desenvolvidas. Como esses polos podem promover o desenvolvimento da região como um todo? Esses polos de atividades de inovação podem ser encontrados em todos os países. Pense, por exemplo, nos Estados Unidos, com a concentração de atividades de inovação no vale do Silício, na região de Boston e no ‘Triângulo de Pesquisa’. Espera-se que esses polos se­jam um exemplo para outras regiões e, nesse sentido, estimulem as atividades de inovação em uma escala mais ampla no longo prazo.

Apesar das conquistas recentes, a economia e o setor de pesquisa e desenvolvimento na Alemanha Oriental ainda estão atrás do cenário da porção ocidental do país. Existe alguma atividade ou setor em que a parte oriental seja, na verdade, mais avançada que a ocidental? Quais seriam? A desvantagem da Alemanha Oriental com relação à Ocidental é verdadeira em termos de valores médios dos indicadores. Mas o cenário de inovação é heterogê­neo nas duas partes do país. Atividades de inovação nos já mencionados polos da Alemanha Oriental, como Berlim, Dresden e Jena, estão acima da média da Alemanha Ocidental. Na minha visão, as principais razões para essa excelência são um forte conhecimento de base e o espírito empreendedor da população. A presença de universidades e outros institutos públicos de pesquisa também ajuda, mas acredito que conhecimento e empreendedorismo são a chave.

Como a Alemanha Ocidental se beneficiou das mudanças ocorridas na porção oriental do país nas últimas décadas? Obviamente, houve transferências consideráveis de recursos da porção ocidental para a oriental, de modo a apoiar a transformação da economia na segunda. No longo prazo, porém, a Alemanha Ocidental vai obter os grandes benefícios das economias de grande porte, por exemplo, com a formação de maiores polos de conhecimento, ideias e talentos no país unificado.

O senhor costuma dizer que a Alemanha, de tão heterogênea, permite “uma comparação internacional dentro de um mesmo país”. Quando, a seu ver, a Alemanha será capaz de homogeneizar seu cenário de pesquisa e desenvolvimento? Processos de desenvolvimento regional, em particular mudanças em trajetórias de crescimento regional, exigem longos períodos de tempo. Não há soluções rápidas disponíveis! Pense no vale do Silício, que precisou de várias décadas para tornar-se a região inovadora que é hoje. Muito já foi alcançado na Alemanha Oriental nesses anos após a unificação do país (isso fica particularmente claro ao comparar a Alemanha Oriental com outros países antes socialistas da Europa central e oriental). As lacunas já foram reduzidas consideravelmente e, esperamos, muitas outras serão preenchidas. Mas isso levará tempo. Qualquer estimativa de prazo seria especulação.

O que outros países podem aprender com a Alemanha em termos da superação das diferenças regionais e da promoção da pesquisa? Uma vantagem da Alemanha sobre muitos outros países é a tradição de um sistema público federal que deu origem a estruturas espacialmente descentralizadas. Não existe apenas um centro, uma capi­tal onde todas as coisas importantes acontecem. Uma coisa que pode ser aprendida com o exemplo alemão é que as regiões e os sistemas de inovação regionais são importantes. Como consequência, parte considerável das políticas de inovação deve ser específica para as regiões. Outra coisa que pode ser aprendida são os programas que mencionamos acima, que incluem concur­sos de ideias de como organizar atividades de inovação em rede com vários atores.

 

Catarina Chagas *
Instituto Ciência Hoje | RJ

(*) A jornalista viajou para Jena a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD)

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