Rio de Janeiro

A revelação de Edward Snowden no jornal britânico The Guardian sobre o monitoramento de comunicações e informações feito pelo Prism – programa de vigilância eletrônica altamente secreto mantido pela agência de segurança nacional (NSA) dos Estados Unidos desde 2007 – despertou novos questionamentos sobre os serviços de inteligência. Qual o limite para essas atividades? Elas são compatíveis com regimes democráticos? Para combater o terrorismo, é legítimo usar espionagem eletrônica e invadir a vida privada de cidadãos?

O cientista político Marco Aurélio Cepik, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi convidado pela Ciência Hoje a responder essas perguntas. Pesquisador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint) do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (Cegov-UFRGS), Cepik diz que é ilusão pensar que as atividades de espionagem cessarão, mas considera o momento oportuno para o Brasil extrair lições sobre a necessidade de reduzir vulnerabilidades, melhorar a proteção de conhecimentos sensíveis e infraestruturas críticas.

Marco Aurélio CepikCiência Hoje: O papel das agências de inteligência voltou à pauta de discussões com o caso [Edward] Snowden em junho passado. Mas, segundo alguns analistas, os serviços secretos sempre existiram e é ilusão pensar que as atividades de espionagem cessarão. Caberia então a cada país desenvolver meios mais eficientes para se defender da espionagem externa?
Cepik: De fato, é ilusão pensar que as atividades de espionagem cessarão. A inteligência é uma das atividades fundamentais de qualquer Estado, e tem reflexos diretos sobre o bem-estar de todos os cidadãos. É a partir de dados de inteligência que o Estado planeja e executa políticas públicas de defesa nacional, segurança pública e relações exteriores. Parte das atividades de inteligência diz respeito à proteção das informações que são sensíveis para a própria realização dessas políticas. Ou seja, a ideia de que cada país deve desenvolver meios efetivos de inteligência e de contrainteligência é uma faceta permanente das relações internacionais.

Em 7 de julho, reportagem do jornal O Globo revelou que a espionagem eletrônica norte-americana também atinge o Brasil e, em 1° de setembro, o Fantástico divulgou que os Estados Unidos espionaram inclusive a presidente Dilma. De acordo com a Constituição brasileira, é crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática sem autorização judicial. Os Estados Unidos, além de desrespeitarem nossa Constituição, também estão violando normas do direito internacional, não? Quais as medidas legais que o Brasil pode tomar para se defender desse crime contra direitos fundamentais?
A Constituição brasileira não tem validade em outros países. Ela se aplica apenas nos limites da jurisdição nacional. Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição são também abarcados pela legislação penal, que proíbe e pune a interceptação de comunicações (postais, telegráficas, informáticas etc.) sem autorização judicial. Apenas pessoas físicas e jurídicas, públicas ou privadas, submetidas à jurisdição brasileira podem ser punidas por esses crimes. O que O Globo revelou foi um esquema bastante complexo de articulação entre empresas de telecomunicações dos Estados Unidos e empresas de telecomunicações que atuam e têm sede no Brasil no sentido de cooperar para dar acesso a metadados relativos às comunicações telefônicas que circulam por meio das respectivas infraestruturas. Isso faz com que, em caso de apuração de quebra da legislação brasileira por empresas que operam no Brasil, o Estado possa lançar mão de uma série de medidas para sua responsabilização. No plano internacional, contudo, a situação é um pouco mais complicada, porque se lida, de um lado, com agentes privados (empresas) sediados em outros países e, de outro lado, com ações oficiais de agentes e órgãos estatais.

Há regimes internacionais que lidam tanto com a proteção e a preservação da soberania dos Estados quanto com a promoção e proteção de direitos humanos fundamentais

No primeiro caso, o questionamento da legalidade das medidas de espionagem deve ser processado por meio da jurisdição de cada país. Já no segundo caso, há regimes internacionais envolvidos que lidam tanto com a proteção e a preservação da soberania dos Estados quanto com a promoção e proteção de direitos humanos fundamentais. A apuração da responsabilidade de um país por ilegalidade no plano internacional pode-se resolver tanto pela via diplomática, quanto pela via judicial (especialmente no âmbito da Corte Internacional de Justiça). Entretanto, o governo brasileiro sinalizou que pretendia buscar vias multilaterais para apurar e tratar a questão: participou de reuniões técnicas de trabalho com equipes dos dois países para esclarecer as revelações de Snowden e, de outro lado, a presidente Dilma e o ministro das Relações Exteriores disseram que a questão deve ser levada para fóruns em que se discuta governança de telecomunicações e da internet.

Qual é o limite para as atividades de inteligência? Até onde se pode justificar a invasão da vida privada? Um país poderia investigar a vida alheia de cidadãos de outros países?
No plano internacional, no contexto anárquico das relações entre os países, não há limites estabelecidos. Os limites são geralmente dados pela capacidade que cada Estado tem de conduzir suas atividades de inteligência e de contrainteligência, ou seja, pela necessidade de neutralizar as operações de inteligência dos demais países. Esses limites são, inclusive, difíceis de precisar, uma vez que grande parte dessas atividades ocorre em segredo. Cada país, entretanto, nos termos de sua organização constitucional, tem diferentes mecanismos administrativos, institucionais, jurídicos e políticos que organizam, regulam e limitam a ação dos órgãos de inteligência.

No caso brasileiro, temos a Constituição federal no topo dessa pirâmide regulatória. Temos a Lei de Acesso à Informação, determinando os diferentes níveis de acesso a dados produzidos e capturados por órgãos do Estado. Temos decretos que detalham esse arcabouço. No caso dos Estados Unidos, por outro lado, a Constituição e a legislação federal (a Lei de Controle do Crime e de Proteção das Ruas, de 1968, e a Lei de Monitoramento de Inteligência Estrangeira, de 1978) funcionam como baliza. O país é bastante claro: não há limites para ação do Estado norte-americano no que diz respeito ao monitoramento de estrangeiros fora do país. Isso se intensificou ainda mais depois do 11 de setembro, com o Patriot Act [Ato patriótico] que ampliou os poderes de prevenção e combate ao terrorismo internacional.

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