Quando Manguinhos desmoronou

Herman Lent foi um notável entomologista brasileiro. Nasceu no Rio de janeiro em 1911 e morreu nessa mesma cidade em 2004, aos 93 anos. Destacou-se na sistematização dos insetos hematófagos transmissores da Doença de Chagas, denominados genericamente de “barbeiros”. Exerceu sua principal atividade como pesquisador no Instituto Oswaldo Cruz, onde ingressou como estagiário em 1933. Trabalhou também como professor em outras instituições de pesquisa no Brasil e no exterior e em várias instituições de ensino.

Em 1º de abril de 1970, pouco mais de um ano após a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), documento que aprofundou o caráter ditatorial do regime militar instituído em 1964, foi demitido do Instituto Oswaldo Cruz e teve cassados seus direitos políticos em companhia de outros nove colegas. Eram eles Augusto Perissé, Domingos Machado Filho, Fernando Ubatuba, Haity Moussatché, Hugo de Souza Lopes, Masao Goto, Moacyr Andrade, Sebastião Oliveira e Tito Cavalcanti. As acusações, nunca provadas, foram a de que faziam proselitismo político e eram “subversivos”, conforme o jargão da época.

Assim punidos, e proibidos de trabalhar em qualquer outro órgão público – esse era mais um componente da punição –, vários deles se auto exilaram, aceitando convites de instituições científicas nos Estados Unidos, na Europa e em países da América Latina. Herman trabalhou na Universidade Los Andes, na Venezuela; na Universidade de Assunção, no Paraguai (terra natal de sua mulher, Goya Lent);e no Museu Americano de História Natural, nos Estados Unidos.

O massacre de Manguinhos
Herman Lent
Rio de Janeiro, Fiocruz Edições Livres, Coleção Memória Viva, 2019, 112p.,e-book gratuito em: Arca Fiocruz

Após a sua volta ao país, Herman decidiu fornecer ao público em geral a sua versão dos fatos. Ela veio através de um texto amplamente documentado que foi a um só tempo uma denúncia, um libelo contra o autoritarismo e um desagravo pessoal estendido aos seus pares, companheiros na violência cometida. Esse texto, intitulado O massacre de Manguinhos foi publicado, em 1978, pela Avenir Editora, por iniciativa de Oscar Niemeyer. Este, além de promover a publicação, desenhou na capa do pequeno volume uma significativa imagem do Castelo de Manguinhos vindo abaixo.

A contar pela intensidade da punição contra o grupo, em muito resultante de ressentimentos oriundos de figuras rigorosamente medíocres, tanto na direção do Instituto quanto no Ministério da Saúde, o tom do texto de Herman estaria muito bem se contivesse mais adjetivos do que os que realmente contém. Mas não é o texto de um homem ressentido a procura de vinganças, muito menos de um político em busca de prestígio e poder. É um texto enxuto, argumentado e documentado. Sereno, preciso e substantivo. É um texto de cientista.

Dedicatória de Herman Lent a Reinaldo Guimarães na primeira edição de O massacre de Manguinhos , em 1978.

Desde a redemocratização,em 1985, a Fundação Oswaldo Cruz, que tem o Instituto Oswaldo Cruz como uma de suas unidades, vem apresentando um grande crescimento científico, tecnológico e produtivo. Cada vez mais afirma-se como a mais importante instituição no campo da pesquisa científica e tecnológica em saúde no país. Além disso, tem ampliado o seu escopo de atuação, incorporando áreas do conhecimento importantes, onde destacam-se as áreas das

ciências humanas e sociais. E foi em uma de suas unidades, o Instituto de Comunicação e Informação em Ciência e Tecnologia em Saúde (ICICT), que nasceu o projeto de inaugurar com O Massacre uma nova coleção – Memória Viva – destinada a republicar obras relevantes no panorama científico-tecnológico, bem como enriquecer seu patrimônio de história e memória no campo de saúde.

Nessa segunda edição de Omassacre de Manguinhos, o texto de Herman Lent é complementado por uma brevíssima biografia de Herman, uma introdução da historiadora Nísia Trindade Lima e dois posfácios, respectivamente da também historiadora Wanda Hamilton e do farmacologista (discípulo de HaityMoussatché) Renato Balão Cordeiro.

Um excelente lançamento.

Reinaldo Guimarães

Núcleo de Bioética e Ética Aplicada
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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