Ciência Hoje chega à 400ª edição como modelo de difusão da produção científica brasileira. Para celebrar a data, seus editores relembram alguns dos mais relevantes artigos publicados ao longo de mais de 40 anos de revista
Ciência Hoje chega à 400ª edição como modelo de difusão da produção científica brasileira. Para celebrar a data, seus editores relembram alguns dos mais relevantes artigos publicados ao longo de mais de 40 anos de revista
Quando a Ciência Hoje foi lançada, em julho de 1982, não existia no país um veículo de circulação ampla que se preocupasse com a difusão da produção científica brasileira. Tampouco havia tradição entre os cientistas do país de divulgar os resultados de sua produção em linguagem acessível para a sociedade, nem de esclarecer questões técnicas e científicas de interesse geral. O desafio, portanto, de criar um meio de comunicação com essas características era imenso, mas, sobretudo, estimulante.
O número 1 foi lançado ainda durante a ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. A comunidade científica não estava alheia aos problemas causados pelo regime, e se organizava – por meio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – para exigir soluções eficazes e restaurar a democracia no país. A revista traduzia essas inquietações já em seu primeiro editorial: “O cientista de hoje é um cidadão participante, comprometido com o ambiente em que vive. Ciência Hoje tem compromisso com a democratização da cultura e, em particular, da ciência.”.
Esse compromisso estava patente em sua primeira edição, que trazia – entre outros – artigos alertando sobre as consequências da poluição em Cubatão (SP), o risco de uma guerra nuclear, questões políticas abafadas pela iminente Copa do Mundo do futebol e a premente e necessária reforma universitária. O objetivo era disponibilizar dados confiáveis – em linguagem acessível e acompanhada de ilustrações igualmente inteligíveis – para que o público pudesse aumentar seu poder de análise crítica e assim construir uma sociedade mais bem informada, igualitária e justa.
Ciência Hoje chega a sua 400a edição celebrando o cumprimento de várias de suas metas iniciais; principalmente a de incentivar o interesse do público pela ciência e pela cultura produzidas no país. E, para comemorar esse feito, reunimos aqui comentários dos editores científicos atualizando temas de importantes artigos publicados ao longo destes mais de 40 anos de revista.
E que venham mais 400, 500, mil edições!
*Edição e texto de abertura, por
A divulgação do Censo Demográfico de 2022 nos faz refletir não só sobre o Brasil de hoje, mas sobre todo o histórico de crescimento que nos trouxe até o presente. Lendo o artigo ‘O potencial de crescimento da população brasileira’, de Nelson do Valle Silva, publicado na primeira edição da Ciência Hoje, em 1982, é possível refletir sobre as projeções elaboradas há pouco mais de 40 anos, considerando o Censo de 1980, dada a realidade, mais do que observada, medida nos dias de hoje.
No artigo de 1982, discutiam-se as razões que motivavam o crescimento populacional do país, apontando que o Censo de 1980 já apresentava uma diminuição da fecundidade da população brasileira: se, em 1960, tínhamos uma média de 6,3 filhos por mulher; em 1980, esse índice caiu 30%, para 4,2 filhos por mulher. Ainda se fazia a projeção de que, em 70 anos (aproximadamente 2050), alcançaríamos o padrão de 2 filhos por mulher, o que significa que estaríamos reproduzindo gerações do mesmo tamanho que a anterior – traduzindo: uma fecundidade de reposição ou de crescimento zero. A projeção também colocava que só em 70 anos estaríamos atingindo um total populacional de 185 milhões.
Que contrapontos é possível fazer considerando tudo o que alcançamos nestes 40 anos e que estão sendo consolidados a partir do Censo de 2022? Os dados preliminares desse censo mostram que chegamos a uma população de aproximadamente 203 milhões de habitantes, com uma taxa de crescimento de 6,5% em comparação com a pesquisa realizada em 2010. Isso se traduz em um crescimento anual de 0,52%, o menor em 150 anos. Ressaltando que a média atual de filhos por mulher já se encontra em 2,8. Assim, crescemos mais rápido que o esperado e estamos, igualmente, reduzindo a taxa de crescimento de forma acelerada.
Muitas razões vêm sendo apontadas pelo fato de os dados divulgados serem diferentes das previsões recentemente efetuadas, como é o caso da pandemia e da inexistência do ‘meio censo’ por falta de verba, além de vários impasses no levantamento atual.
Sabemos que o desafio de um levantamento que cubra todos os domicílios de um país com 8,5 milhões km2 é enorme; principalmente, considerando as inúmeras dificuldades de acesso. Mas é fato que esses dados funcionam como um norte para o planejamento em diversos setores no contexto nacional. Assim, é preciso repensar estrategicamente como manter a magnitude dessa pesquisa protegida de decisões que possam fragilizá-la.
SILVA, N.V. O potencial de crescimento da população brasileira. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 1, p. 58-68, jul/ago, 1982.
A edição número 3, publicada em novembro/dezembro de 1982, trazia dois textos já muito importantes naquele momento e que voltaram à tona nos últimos anos: um especial sobre vacinas escrito pelo médico e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Nélson Moraes, e um artigo sobre imunização e saúde pública de autoria de José Fernando de Souza Verani e Eduardo Ponce Maranhão, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
No primeiro texto, a história da descoberta e do desenvolvimento das vacinas é resumida com muita clareza e precisão. O autor também apresenta as vacinas disponíveis à época e como elas são preparadas – muitas delas tão eficazes que continuam sendo usadas da mesma maneira até hoje, como a BCG e a vacina da febre amarela.
Outras foram atualizadas em relação aos microrganismos que oferecem proteção, como a vacina pneumocócica, que atualmente pode proteger contra 23 variantes da bactéria Streptococcus pneumoniae; ou em relação a sua formulação, como a vacina tríplice viral, que teve a substância preservativa timerosal removida de sua formulação por esta causar reações alérgicas em algumas pessoas no local de sua aplicação (principalmente, inchaço e vermelhidão na área).
Para ilustrar sua eficácia, o autor usou o exemplo da vacina contra a varíola, que foi administrada no Brasil a partir de 1904 e foi recebida com muito ceticismo pela população, levando inclusive a uma revolta armada, mas que promoveu a erradicação total da doença no Brasil em 1971, salvando centenas de milhares de vidas.
O texto complementar, ‘Imunização e saúde pública’, que se encontra como um box do artigo principal, destaca a eficácia das campanhas de vacinação e seu imenso poder de salvar vidas. A força benéfica das vacinas se sobressai em relação a crianças e bebês, assim como seu impacto no controle da mortalidade infantil. Doenças como sarampo, poliomielite, tuberculose e difteria, que antes eram verdadeiras pragas e causavam terror nos pais, hoje mal são conhecidas, graças ao advento das vacinas.
É muito importante também destacar e observar a evolução do quadro do esquema de vacinação oferecido pelo Programa Nacional de Imunização (PNI), que, naquela época, contava com cinco vacinas e era voltado principalmente para crianças, e hoje é constituído por 20 vacinas e alcança também o público adulto.
Em suma, o artigo é um belíssimo tour de force sobre as diferentes preparações vacinais e seu impacto na saúde da população. Além de um documento histórico, traz informações relevantes até os dias de hoje. Se você ainda tem dúvidas sobre a eficácia das vacinas, não deixe de conferir esse texto!
SILVA, N.V. O potencial de crescimento da população brasileira. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 1, p. 58-68, jul/ago, 1982.
Sempre que penso na ‘infância’ da Ciência Hoje – na verdade, infância minha e dela, porque a CH nasceu 400 números atrás, quando eu era um adolescente, curioso por matemática e física –, lembro, inevitavelmente, do artigo ‘A matemática das películas de sabão’, escrito pelo nosso grande geômetra Manfredo Perdigão do Carmo e publicado na edição 11, de março de 1984. Nesse artigo, são apresentadas ideias de física e matemática andando de mãos dadas, de uma forma acessível e estimulante.
O problema tratado no artigo não podia ser mais simples e, de fato, algo que certamente fascinou a todos na infância: a forma das bolhas e películas de sabão. Afinal, por que uma bolha de sabão é uma esfera? O que determina a forma de uma película de sabão em uma estrutura de arame?
Algumas ideias simples de física, como considerações de energia e tensão superficial, bastam para estabelecer uma teoria matemática sobre essas formas, dando início a uma jornada fascinante pelo universo das superfícies mínimas e da geometria diferencial. Ao longo do caminho, somos apresentados a objetos matemáticos intrigantes, como a faixa de Moebius – uma superfície que tem um lado só –, noções de curvatura, topologia, uma quantidade enorme de ideias escritas de forma clara e convidativa para jovens estudantes.
Além de resultados consolidados, do Carmo apresenta problemas matemáticos importantes, teoremas que foram desenvolvidos no Brasil. Isso dava aos leitores uma ótima sensação de proximidade com os avanços da física e matemática da época, ao contrário de artigos que nos mostravam resultados obtidos em outras terras.
Isso tem um impacto muito grande nos leitores; ainda mais, naqueles em formação: a percepção de que o que há de mais novo no conhecimento está ao nosso alcance. Que a Ciência Hoje continue inspirando e instigando novas gerações de leitores e leitoras em suas próximas edições!
CARMO, M. P. A Matemática das Películas de Sabão, Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 11, p. 25-31, mar/abr, 1984.
Em 1991, na edição 73 da Ciência Hoje, foi publicado o artigo “A redescoberta dos museus”, escrito por Cleber J. L. Alho, no qual ele expõe o que considera uma “revolução” ocorrida nos museus de ciência na época. Segundo o autor, essa revolução resulta da popularidade e do sucesso dos centros de ciência interativos, que transformaram profundamente os museus desse tipo nas décadas seguintes à inauguração do Exploratorium, em São Francisco (EUA), e do Ontario Science Center (Canadá) em 1969.
No texto, o autor lamenta a ausência de museus brasileiros que incorporem essa nova tendência, fazendo apenas uma ressalva ao museu paulista Estação Ciência, criado em 1987, o qual acabou encerrando suas atividades em 2013.
Desde 1991, o cenário dos museus de ciência brasileiros mudou drasticamente. A maioria desses espaços em funcionamento hoje foi inaugurada após essa data, totalizando mais de 220 museus de ciência no Brasil, incluindo projetos itinerantes, sendo que a grande maioria deles adota propostas interativas.
Esse crescimento exponencial foi impulsionado pelo poder público, com maior aceleração entre 2003 e 2016, graças a uma política pública de popularização da ciência executada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Muitos desses museus são reconhecidos internacionalmente e destacam-se por suas abordagens inovadoras.
Pesquisas de percepção da ciência organizadas pelo MCTI têm revelado um crescente interesse do público por essas atividades, embora ainda estejamos abaixo de patamares observados em outras regiões do mundo, como nos Estados Unidos e na Europa. Entretanto, tanto no Brasil quanto no mundo, um grande desafio persiste: a diversidade do público atingido.
Em geral, o perfil dos frequentadores ainda é altamente excludente: branco, rico e com bom acesso à educação. Isso reflete a representação da ciência nesses locais, que costuma ser elitista e pouco relacionada à população pobre e historicamente excluída dos processos formais de educação e cultura. Grupos politicamente minorizados também são pouco representados nesses espaços, com frequência abaixo da média.
Ampliar esses públicos e tornar esses espaços mais inclusivos e democráticos continua sendo uma tarefa desafiadora que instituições em todo o mundo têm discutido. Nesse sentido, a América Latina tem apresentado um protagonismo, com destaque para a edição de 2023 do congresso da Rede de Popularização da Ciência e Tecnologia da América Latina e Caribe, realizado no Rio de Janeiro, no Museu da Vida, na Fiocruz, com o tema ‘Vozes diversas: diálogo entre saberes e o desafio da inclusão na popularização da ciência’.
ALHO, C. J. L. A redescoberta dos museus. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 73, p. 40-47, jun, 1991
“O Ministério da Saúde tem compromisso com a construção do Sistema Único de Saúde e da melhoria nas condições de vida da população brasileira”. Assim, em letras garrafais, um anúncio do ministério se destacava na contracapa da edição 89 da revista Ciência Hoje, que apresentava um dossiê sobre indústrias farmacêuticas e patentes. O ano era 1993, e o governo acabara de assinar o decreto 793 de 5 de abril daquele ano, que dava ênfase à prescrição de medicamentos genéricos. O pano de fundo era um mercado de medicamentos pouco regulado, com preços abusivos e aumentos acima da inflação.
O dossiê abria com a saga do presidente Itamar Franco (1930-2011), que, ao se deparar com o alto preço do Parenzyme, foi a público reclamar, jogando o país em meio a um debate que seria essencial para garantir medicamentos a preços acessíveis.
Organizado em seis artigos e duas entrevistas, cujos temas iam da história da indústria farmacêutica, passando pela nova realidade das patentes, até as plantas medicinais, o especial buscava “ampliar o debate sobre o preço dos medicamentos com um dossiê que perpassa as questões já levantadas pela imprensa diária para se concentrar, mais amplamente, nos aspectos industriais da produção farmacêutica”.
Na época, a legislação brasileira não reconhecia patentes de fármacos, o que era um entrave para o desenvolvimento tecnológico no país, visto que não haveria uma reserva de mercado para empresas que investissem em novos produtos. Uma nova legislação era discutida no Congresso, e casos como o da Itália e do Japão – que reconheciam patentes de fármacos após um período de carência, de maneira a assegurar para suas indústrias o domínio da produção desses insumos – eram apontados como exemplos.
De lá pra cá muito aconteceu. Em 1996 foi aprovada a nova Lei de Patentes, que incluía invenções químico-farmacêuticas em registros de propriedade intelectual. Em 1999, entrou em vigor a Lei 9.787, que estabelecia o registro e a produção de medicamentos genéricos, bem como a prescrição e aquisição do medicamento pelo nome genérico.
Em 2007 o país fez a licença compulsória do antirretroviral Efavirenz, tornando o SUS referência mundial no acesso ao tratamento da AIDS. Políticas públicas como as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo oxigenaram o desenvolvimento nesse setor.
Infelizmente, o Brasil ainda apresenta dependência de importações para abastecer o mercado nacional. Produzimos 1% dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) que consumimos. Assim, o debate sobre preços de medicamentos e inovação tecnológica continua atual.
Nesse contexto, o volume 89 da CH se tornou um documento histórico, descrevendo o cenário que culminou nas políticas públicas atuais do setor. Além disso, o dossiê mostra os anseios e as expectativas da comunidade científica na época, representada por diversos acadêmicos. Alguns deles já nos deixaram, como Sérgio Henrique Ferreira (1934-2016), e outros, como Eliezer Barreiro e Eloan Pinheiro, continuam atuantes, denunciando falhas e propondo alternativas junto às novas gerações.
JARDIM, J.B. (Ed) et al. MEDICAMENTOS. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 89, p. 18-59, abr.1993
Em dezembro de 1999, a Ciência Hoje publicava o artigo “As origens do vírus da Aids”, escrito por Marcelo A. Soares, hoje pesquisador do Instituto Nacional do Câncer e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Havia, na época, um grande debate sobre o aparecimento do vírus da imunodeficiência humana (HIV), que no início da década de 1980 se disseminou pelo mundo, causando uma doença que logo atingiu o status de pandemia. As discussões sobre o HIV lembram bastante as especulações sobre a origem do SARS-CoV-2 após sua identificação como agente causador da covid-19.
Em seu artigo, Soares conta como a hipótese de que o HIV teria sido criado em laboratório foi derrubada por estudos genéticos que mostraram, a partir da construção da árvore filogenética dos lentivírus – gênero ao qual o HIV pertence – que o vírus foi transmitido para os humanos a partir do contato com chimpanzés e macacos.
Os cientistas descobriram que havia duas linhagens de HIV circulando entre humanos, o HIV-1, mais disseminado em todo o mundo, e o HIV-2, endêmico na África ocidental. A comparação do genoma dos vírus de cada linhagem mostrou que enquanto o HIV-1 era muito próximo geneticamente de lentivírus de chimpanzés, o HIV-2 se assemelhava aos genomas dos lentivírus de macacos africanos e asiáticos. Assim, ficou claro que ocorreram eventos distintos de transmissão de vírus circulantes de primatas para humanos, o que sustenta a hipótese zoonótica.
No caso do SARS-CoV-2, especulações de que o vírus teria sido introduzido na população a partir de uma fonte de laboratório também foram disseminadas. Mas os estudos de epidemiologia molecular sustentam a origem zoonótica do SARS-CoV-2. A determinação dos genomas das amostras de vírus obtidas dos primeiros casos em Wuhan (China) mostrou a ocorrência de duas linhagens distintas de vírus, sugerindo que houve mais de um evento de transmissão para humanos, como no caso do HIV.
A suspeita é que o SARS-CoV-2 se originou a partir de civetas vendidas nos mercados de animais vivos em Guangdong. Esses animais possivelmente atuaram como hospedeiros intermediários, tendo sido infectados por morcegos, hospedeiros conhecidos de vários coronavírus. O fato de que anticorpos para coronavírus de morcego foram detectados em humanos fornecem mais evidências para a transmissão de coronavírus de morcegos para humanos, diretamente ou por meio de hospedeiros intermediários.
O contato humano com animais que abrigam patógenos está sendo cada vez mais favorecido pelo aumento da urbanização de áreas rurais ou por alterações na distribuição geográfica de animais silvestres em resposta a mudanças ambientais ou a destruição de seu hábitat. É de se esperar que o surgimento de novas epidemias seja mais frequente. Mas também é possível que a contaminação com amostras laboratoriais resulte em surtos ou epidemias de novas doenças. Daí a importância da constante vigilância epidemiológica e do rápido investimento de esforços para determinar a origem dos novos patógenos.
SOARES, M.A. As origens do vírus da Aids. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 156, p.28-33, ago. 1999.
Em 2004, na CH 204, Maria Eliana Navega-Gonçalves publicou o artigo ‘Anfisbênias: quem são essas desconhecidas?’. A autora apresentava uma síntese das anfisbênias, grupo de lagartos popularmente chamados de cobras-de-duas-cabeças, que possuem corpo alongado e sem patas – exceto por três espécies que têm os membros anteriores –, com hábitos subterrâneos e que usam a cabeça para escavar galerias no solo. Algumas espécies têm como comportamento defensivo a capacidade de amputar a própria cauda e, no ano passado, foi revelado que a automutilação é mais frequente em anfisbênias adultas e de regiões com clima mais quente (ver CH 393).
Nos últimos anos, ficou mais clara a relação de parentesco evolutivo entre as anfisbênias, os lagartos e as serpentes, que formam o grupo dos répteis escamados (Squamata). Análises genéticas e a descoberta de fósseis apontam que as anfisbênias são, assim como as serpentes, um grupo de ‘lagartos’ que, ao longo de milhões de anos, desenvolveu um corpo alongado e perdeu as patas. Contudo, dentro da ‘árvore genealógica’ dos escamados, as anfisbênias e as serpentes não são próximas; os lacertídeos, família de lagartos da África e Eurásia, são seus parentes vivos mais próximos.
O hábito subterrâneo é um desafio para o estudo das anfisbênias. Ainda assim, o conhecimento sobre esses animais avançou. Em 2004, eram conhecidas cerca de 160 espécies, habitando América do Sul, Caribe, México, Flórida, África, Península Ibérica, Anatólia e parte do Oriente Médio. Hoje, são reconhecidas cerca de 200; 81 delas no Brasil.
Nosso país é o mais rico em anfisbênias, e 79% dessa diversidade (64 espécies) é endêmica – não encontrada em outros países. Mais de 30 novas espécies foram descritas para o Brasil nas últimas duas décadas; mas, infelizmente, as descobertas têm ocorrido por destruição do seu hábitat.
Durante a supressão da vegetação para a instalação de empreendimentos, as camadas superiores do solo costumam ser removidas, e as anfisbênias são desenterradas, raramente com vida. Quando os animais são preservados e encaminhados para estudo, uma nova espécie pode ser reconhecida. Porém, a prática de alguns biólogos e outros analistas ambientais de não coletarem ‘espécimes testemunho’ durante atividades de impacto ambiental pode impedir o reconhecimento de novas espécies quando seu hábitat é afetado, muitas vezes de maneira irreversível.
Quando Navega-Gonçalves escreveu para a CH, nenhuma espécie de anfisbênia brasileira estava ameaçada de extinção. Porém, a Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção de 2022 classifica oito delas em risco, e esse número tende a aumentar.
A hipótese levantada pela autora de um possível papel das anfisbênias na aeração do solo, como fazem as minhocas, continua sem investigação. Aspectos relacionados à biologia reprodutiva e à dieta da maioria das espécies também seguem carentes de estudos. Mas há análises, por exemplo, sobre a locomoção de algumas espécies sob a terra, alterações no solo que afetam a saúde dos animais, e a identificação química de presas e parceiros sexuais. Se avançamos nas pesquisas nos últimos anos, ainda há muito a ser descoberto sobre esses fascinantes répteis do subsolo.
NAVEGA-GONÇALVES, M. E. C. Anfisbênias: Quem são essas desconhecidas? Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 204, p. 66-68, mai, 2004.
O artigo “As múltipas dimensões da memória”, de Kátia Lerner, publicado em 2016, na CH 369, ilumina questões referentes à memória do Holocausto, que foi silenciada logo após a Segunda Guerra Mundial, mas que sete décadas depois se fez muito mais visível, colocando-se como incontornável referência de um passado de violência e dor que envolvia não apenas os vitimados, mas a humanidade como um todo. A autora ressalta como as narrativas sobre o Holocausto sob as suas mais diferentes formas – seja na produção acadêmica, audiovisual, literária, seja pela criação de instituições museológicas e de memória – contribuíram para uma mudança de perspectiva e para promover uma reflexão sobre a presença desse passado próximo.
Um dos aspectos que tornam o artigo tão atual é justamente a discussão sobre a importância em se falar, pensar e expor – em diferentes espaços e por diferentes meios – as memórias e histórias de passados sensíveis. Nesse sentido, ao trazer o contexto de criação e a trajetória de instituições como a Fundação Shoa, a autora faz lembrar que a afirmação de ligação e pertencimento a esse passado por parte dos sobreviventes e seus descendentes foi um movimento que permitiu reconhecer o Holocausto (Shoa) como um evento de grande significado na história da humanidade.
A utilização de metodologias de registro de memória, como entrevistas gravadas em vídeos, em diferentes países, e com pessoas com diversos tipos de vivência do Holocausto, produziu um extenso arquivo para pesquisas futuras, bem como para divulgação dessas histórias em meios de grande alcance de público.
O que torna esse artigo da Ciência Hoje tão importante para ser lido e relido hoje, seis anos depois de sua publicação, para além da relevância do tema em si, que é inegável, são as reflexões que permitem que se façam sobre a necessidade em dar maior visibilidade às histórias e memórias difíceis, relativas a passados recentes, ou de longa duração, que permanecem vivas, mas insuficiente ou equivocadamente iluminadas.
No caso do Brasil, podemos pensar, por exemplo, na ditadura militar, com todos seus episódios de violência e de comprometimento de indivíduos e instituições com um regime marcado pela violação dos direitos humanos. Ou, indo mais longe no tempo e na duração, na escravização de africanos e seus descendentes, com todo seu conteúdo de sofrimento e desumanização, prolongado e reiterado no presente pelo racismo.
Quando se trata de passados sensíveis e a importância de criar ações para trazer a público sua memória, sempre se volta a uma grande questão: como divulgar, expor e até musealizar histórias tão dolorosas sem reproduzir o sofrimento que provocaram e reiterar os lugares de opressão? Trata-se de um caminho de contornos delicados, em que uma escuta cuidadosa dos atingidos e a busca de meios igualmente sensíveis de expressão – como a arte, em suas diversas modalidades – se tornam percursos necessários. Isso porque, como o artigo relembra, “não se deve esquecer, nem permitir que a humanidade esqueça”.
LERNER, K. As múltiplas dimensões da memória. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 369, p. 30-35, ago, 2016.
Em ciência, às vezes as coisas mudam ou se aprofundam muito rápido. Essa afirmação diz respeito não apenas aos resultados científicos em si, mas também às formas e aos contextos nos quais esses resultados são produzidos e disseminados. Nesse aspecto, determinadas condições sociais e políticas podem tanto estabelecer cenários mais favoráveis como constituir sérios obstáculos para o desenvolvimento da ciência e para a popularização e democratização de seus conhecimentos e benefícios.
Este é o caso da propagação de fake news e do negacionismo científico – temas abordados no artigo “Notícias Falsas na Ciência”, de Yurij Castelfranchi, publicado na edição 350 da CH, em dezembro de 2018. Embora o texto seja relativamente recente, esses problemas, que já preocupavam muito a comunidade científica à época, se acirraram significativamente desde então.
No artigo, o autor propõe questões como: por que certas afirmações se espalham? Como não sermos enganados? Por que existem pessoas dispostas a criar suspeitas e ódio?
Como destaca Castelfranchi, a chamada ‘pós-verdade’ não pode ser caracterizada como um fenômeno exclusivo dos tempos atuais. Algumas versões da história foram construídas e se consolidaram com base em fatos ou interpretações falsos. Porém, no mundo contemporâneo, o negacionismo ganhou outros contornos; sobretudo, com seu uso político por grupos ideológicos ultraconservadores, que procuram isolar seus seguidores em “bolhas” blindadas de informações que poderiam questionar suas próprias versões dos fatos.
Quando o artigo foi publicado, tinha acabado de acontecer no Brasil uma eleição cujos resultados foram profundamente afetados pela propagação estratégica de notícias falsas. Mas não sabíamos, então, que essa estratégia se tornaria uma política de governo, trazendo consequências muito mais trágicas – notadamente, a perda desnecessária de vidas durante a pandemia de covid-19.
Diante desse cenário político, devemos questionar como cientistas, divulgadores e educadores de ciências podem atuar no combate ao negacionismo científico. Aprendemos com Castelfranchi e com outros autores que, ao contrário do que poderia sugerir o senso comum, o negacionismo não se deve simplesmente a ‘faltas de conhecimentos’, mas, sobretudo, a ideologia, religiosidade e valores morais. Ao contrário, pessoas com mais conhecimentos podem se tornar mais negacionistas, se deixam de ter uma postura questionadora em relação a esses conhecimentos.
Devemos, então, cultivar uma postura não negacionista em relação ao próprio fenômeno do negacionismo. Combatê-lo não se trata simplesmente de “explicar claramente os fatos às pessoas”, pressupondo sua ignorância, mas, sobretudo, entender que a ciência se caracteriza pela questionabilidade permanente sobre seus próprios resultados.
CASTELFRANCHI, Y. Notícias falsas na ciência. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n.350, p.17-22, dez, 2018.
Conceição Pereira
PARABÉNS A CIÊNCIA HOJE .