Uma discussão matemática sobre grandezas, medidas, unidades e números

Inspiração na Grécia Antiga pode trazer uma abordagem pouco convencional para conteúdo da disciplina no ensino básico.

“O professor diz o tempo todo que matemática é uma ciência exata. Mas há coisas que não parecem ter lógica. Por exemplo: 1 metro é igual a 100 centímetros, mas como explicar que 1 metro x 1 metro = 1 metro e 100 centímetros x 100 centímetros = 10.000 centímetros, sendo que 10.000 centímetros são 100 metros? Se a matemática fosse exata mesmo, a conta teria que dar sempre o mesmo resultado”, diz um aluno. E o professor responde: “Metro vezes metro não pode dar metro”.

Esse diálogo fictício ilustra uma dúvida real e muito comum envolvendo operações e unidades de medida. Afinal, como abordar esse tema em sala de aula? Que questões matemáticas podem ser suscitadas? O que está por trás da afirmação “metro vezes metro não pode dar metro”?

 

Nos currículos da educação básica

Essa discussão matemática envolve ideias elementares para o currículo de matemática da educação básica, sobretudo no que diz respeito a grandezas, medidas, unidades, e até mesmo o próprio conceito de número. Quando o ensino de grandezas geométricas (comprimento, área, volume) se limita a fórmulas prontas, os significados geométricos associados são pouco explorados.


A associação prematura de comprimentos, áreas e volumes a medidas expressas numericamente e a fórmulas desconsidera a importância de explorar essas grandezas em contextos inerentemente geométricos

De forma semelhante, quando o ensino de medidas e unidades se restringe a sistemas padronizados e a procedimentos rotineiros de conversão (como “acrescentar ou retirar zeros” ou “andar com a vírgula”), o significado do conceito medida é desconsiderado. No ensino, a associação prematura de comprimentos, áreas e volumes a medidas expressas numericamente e a fórmulas desconsidera a importância da exploração dessas grandezas em contextos inerentemente geométricos.

Inspiração na Grécia antiga

Esses contextos geométricos são observados em práticas matemáticas da Grécia Antiga – registradas, por exemplo, na obra Os Elementos, de Euclides –, que podem inspirar um ensino com mais voltado foco na construção de significados para essas grandezas, no conceito matemático de medida e, até mesmo, na compreensão das operações elementares com números.

Na matemática contemporânea, quando pensamos, por exemplo, em perímetro ou área, associamos, quase involuntariamente, essas grandezas geométricas a valores numéricos ou a fórmulas algébricas – tais como A = ab (para a área A de um retângulo de dimensões a e b) ou p = 2πr (para o comprimento p de uma circunferência de raio r). Na Grécia antiga, entretanto, problemas de perímetro e de área correspondiam a construções geométricas, cuja generalidade era demonstrada. Tais construções eram realizadas (em geral, apenas por meio de operações geométricas possíveis com régua não graduada e compasso) sem qualquer associação a medidas expressas numericamente.

Assim, na Grécia Antiga, determinar o perímetro de uma figura significava retificá-la, isto é, construir um segmento de reta de mesmo comprimento que o perímetro da figura, utilizando régua não graduada e compasso.


Não propomos que o ensino de grandezas geométricas na escola básica deva reproduzir práticas matemáticas da Grécia antiga, mas, sim, se inspirar para propor abordagens diferentes das convencionais

De forma análoga e com os mesmos instrumentos, determinar a área de uma figura correspondia a uma construção de quadratura, isto é, a construir um quadrado de mesma área que a figura.

Não propomos aqui que o ensino de grandezas geométricas na escola básica deva reproduzir práticas matemáticas da Grécia Antiga, mas, sim, se inspirar nessas práticas para propor abordagens diferentes das convencionais. Por exemplo: antes da introdução de medidas numéricas e de fórmulas, o trabalho com áreas pode ser feito com materiais concretos (como papel, cartolina ou Tangram), que permitam corte e sobreposição.

O que é medir?

Na matemática escolar brasileira, estamos acostumados a lidar com grandezas geométricas a partir de suas medidas numéricas. Porém, nem sempre a própria ideia de ‘o que significa medir’ é suficientemente explorada. Medir é, essencialmente, comparar algo com uma referência – o que chamamos unidade de medida. Em termos um pouco mais precisos, medir uma grandeza geométrica (por exemplo, um comprimento) significa verificar quantas vezes uma unidade, isto é, uma grandeza de mesma espécie (no caso, também um comprimento) tomada como referência, cabe dentro desta. Então, o valor numérico da medida (por exemplo, uma medida de comprimento) corresponde a essa quantidade de vezes que a unidade cabe na grandeza a ser medida. Entendemos aqui o termo ‘quantas vezes’ num sentido amplo, uma vez que pode se referir a uma quantidade não inteira.


Experiências com grandezas geométricas em contextos inerentemente geométricos, anteriores à introdução de medidas numéricas ou de fórmulas que expressam essas grandezas, podem ajudar os aprendizes a construir significados para diversas ideias importantes da matemática escolar

Podemos afirmar, portanto, que as fórmulas envolvendo grandezas geométricas são introduzidas prematuramente. Isso não quer dizer que estas devam ser banidas no ensino de geometria. Ao contrário, experiências com grandezas geométricas em contextos inerentemente geométricos, anteriores à introdução de medidas numéricas ou de fórmulas que expressam essas grandezas, podem ajudar os aprendizes a construir significados para diversas ideias importantes da matemática escolar: a própria noção de medida, o papel das fórmulas na linguagem simbólica da matemática contemporânea, as operações elementares com números, bem como as relações entre unidades para grandezas de diferentes espécies.

De volta ao diálogo que inicia este texto, é sempre bom lembrar: não existe multiplicação de metro por metro que resulte em metro. Ou se multiplica metro por um fator multiplicativo, resultando em metro; ou se multiplica metro por metro, resultando em metro quadrado.

Victor Giraldo e Thiago Hartz

Instituto de Matemática
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Leticia Rangel

Colégio de Aplicação
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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