A tradução é uma forma de reescrita; traduzir é reescrever um texto numa língua diferente. O objetivo é produzir um texto que possa substituir o original, para aqueles que desconhecem o idioma em que ele foi escrito. O tradutor é, pois, um tipo específico de autor.
Visto, porém, de outro ângulo, seu ofício é semelhante ao do ator: ele exige de seu público o que o poeta e crítico romântico inglês Samuel Taylor Coleridge chamava de “suspensão voluntária da descrença”.
Quando vou ao teatro – um teatro convencional –, sei que o ator que vejo à minha frente é um ator; voluntariamente, porém, ponho de lado esse conhecimento e, num outro nível da minha consciência, encaro-o como se ele fosse Hamlet, o príncipe da tragédia de William Shakespeare, suspendendo minha atitude de descrença em relação à existência real de Hamlet e à identificação entre ator e personagem.
Do mesmo modo, quando leio uma tradução de Liev Tolstói ponho entre parênteses, por assim dizer, meu conhecimento do fato de que estou lendo um texto em português produzido por um tradutor brasileiro, e faço de conta que o livro que tenho nas mãos foi escrito por um autor russo em seu próprio idioma.
Contar a história e imitar o estilo
O trabalho do tradutor exige que ele não apenas conte a mesma história contada por Tolstói, mas também que imite as peculiaridades de Tolstói como escritor, aquilo que encaramos como suas marcas de estilo: seu jeito de apresentar os personagens, de comentar toda a ação de um plano superior que lhe confere uma autoridade quase divina, sua maneira de utilizar a sintaxe etc.
O produto final da tarefa do tradutor tem que ser um romance em português, e mais: um romance em português que pareça, de algum modo, ter sido escrito por Tolstói.
Todas as exigências feitas à tradução de um texto em prosa ficcional se impõem ao tradutor de poesia. Quando me proponho a traduzir um poema de Emily Dickinson, meu objetivo é produzir um texto que seja um poema em língua portuguesa e que também seja, de algum modo, um poema de Dickinson.
É preciso ‘dizer a mesma coisa’ que Dickinson diz, e também dizê-lo do modo como ela o diz no inglês, um idioma muito diferente do português. Mas no caso da poesia, a exigência de escrever à maneira do autor original tem implicações drásticas. Na prosa de ficção ocidental parece possível, ao menos à primeira vista, estabelecer prioridades: há uma história a ser contada, que envolve determinados personagens num meio físico e social determinado; recriar isso seria o objetivo fundamental do trabalho do tradutor.
Criticamos negativamente uma tradução do romance Ana Kariênina que não reproduza com muita fidelidade alguns traços estilísticos do autor; mas se no texto que nos é apresentado como uma tradução de Ana Kariênina a personagem central é turca e não russa, e é uma esposa convencionalmente virtuosa e não uma adúltera, negamos o próprio status de tradução desse texto.
Quando se trata de traduzir um poema, porém, nem mesmo isso pode ser pressuposto. Tomemos como exemplo o poema 108 de Emily Dickinson:
Surgeons must be very careful
When they take the knife!
Underneath their fine incisions
Stirs the Culprit — Life!
A primeira questão que se coloca ao tradutor é esta: que elementos deste pequeno poema é fundamental recriar para que a tradução resultante possa ser considerada uma tradução desse poema, ainda que não necessariamente uma boa tradução?
Um leitor sem nenhuma sensibilidade para a poesia (e eles são muitos, infelizmente) poderia responder: o mais importante é recriar a estrutura de significados do original.
Nesse caso, poderíamos dizer que uma tradução possível do poema seria esta: “Os cirurgiões precisam ter muito cuidado quando pegam a faca. Sob suas incisões precisas mexe-se o culpado — a Vida!”
Qualquer leitor, porém, que seja minimamente capacitado para a leitura de poesia dirá: mas isso não é um poema! De fato, uma má tradução de Ana Kariênina, por mais que ignore as opções estilísticas de Tolstói, continua sendo um romance; mas a tradução de um poema que não leve em conta a divisão em versos e os elementos rítmicos que caracterizam o original não é sequer uma tradução do poema, e sim algo diverso: uma paráfrase do poema em outro idioma, um texto que visa auxiliar a leitura do poema e não substituí-la.
Paulo Henriques Britto
Departamento de Letras
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro