Compartilhar direitos

por Ana Sílvia Couto Abreu

Novos modos de construção e de circulação de bens culturais vêm trazendo consequências favoráveis às condições de acesso a esses bens. Temos, atualmente, maneiras de produzir e fazer circular uma obra que implicam uma diferente relação entre o autor e seu público; isso porque, com as novas possibilidades de convergência tecnológica – como o surgimento de redes sociais com compartilhamento de arquivos, escaneamento de obras, downloads e arquivamento no computador, entre outras –, esferas são eliminadas nessa relação, tradicionalmente mediada, no mundo impresso, pelos editores de obras.

Nesse momento em que se fortalece o discurso pela abertura – conteúdo aberto, software livre, código-fonte aberto, download grátis de músicas e vídeos, repositórios de bibliotecas disponibilizados na internet com possibilidade de cópias de obras de literatura –, os direitos autorais são postos em questão.

Sabemos que o surgimento do copyright não se deu sem disputas

Não que a relação autor e direitos tenha sido, em outros tempos, algo sem questionamentos; sabemos que o surgimento do copyright não se deu sem disputas. Ocorre que a circulação de informações no meio digital, em diferentes instâncias de interlocução, como blogs, wikis, ambientes virtuais de aprendizagem e redes sociais, vem colocando desafios ao arquivo jurídico vigente sobre direitos autorais.

Temos, então, um movimento de reconfiguração da legislação de direitos autorais. No Brasil, esse movimento foi inicialmente liderado pelo ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, que destacou como pauta emergente a necessidade de se repensar a política autoral, levando em consideração o bem comum e o interesse público, no sentido de estabelecer políticas culturais baseadas no equilíbrio entre os direitos do autor e os direitos de acesso e uso pela sociedade. Esse posicionamento coloca-se ao lado da esfera pública, entendida como povo e não meramente como mercado, procurando estabilizar, no quadro jurídico, transformações em curso.

Nossa atual Lei do Direito Autoral (LDA), em vigor desde 1998, é altamente restritiva. Gestos cotidianos, como gravar um filme para assistir em outro horário, copiar uma música do computador para aparelho portátil, fazer cópia de livro para estudo, baixar e trocar arquivos, são tidos como ilegais.

Há, então, um jogo de forças entre o que é permitido juridicamente, em relação aos modos de produção e circulação de bens culturais, e o que é, de fato, realizado pelas pessoas, revelando-se a necessidade de uma mudança na legislação, já que esta deve representar e regular o modo de ser de uma determinada sociedade em seu tempo.

O embate, que é sempre político, tem sido intenso, com eventos
diversos ocorrendo pelo país, manifestações circulando via blogs, Twitter, Facebook etc., criação de redes e comitês para discussão da LDA, envolvendo instâncias diversas, com posicionamentos em confronto: associações tidas como responsáveis pela proteção ao autor, representantes de diversos setores da sociedade e o Estado.

Gilberto Gil
Gilberto Gil, ministro da Cultura de 2003 a 2008, destacou como pauta de sua gestão a necessidade de se repensar a política autoral do país. (foto: Miguel Perez Subias/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

A atual gestão do Ministério da Cultura não legitimou o anteprojeto enviado à Casa Civil em 2010, colocando-o novamente para debate, em 2011; isso significou uma espécie de apagamento do relevante processo democrático – com fóruns, seminários, consulta pública do anteprojeto – que sustentou os debates sobre os direitos autorais no Brasil desde 2007.

Recentemente, uma nova versão do anteprojeto da LDA foi enviada à Casa Civil. Embora não tenha sido divulgada oficialmente, circulam na mídia trechos indicando uma proximidade com a versão anterior, no que se refere tanto à possibilidade de cópia de CD para outro suporte (para uso pessoal e sem visar lucro) quanto à condição de exibir filmes em escolas.

Entretanto, não sabemos em que medida o direito de acesso a bens culturais, de forma menos restritiva que a atual, realmente será garantido, possibilitando, por exemplo, para fins didáticos e de pesquisa, tanto a reprodução completa de obras – e não de pequenos fragmentos apenas, como está na lei atual – quanto a dispensa da prévia e expressa autorização do titular, no caso de reprodução e distribuição de obras protegidas, conforme anunciava o anteprojeto de 2010. Certamente, esse gesto político, que se configura juridicamente, traria importantes efeitos na formação de leitores e de potenciais autores do Brasil.

Ana Sílvia Couto Abreu é linguista e professora do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos

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Por que colaborar?

por Viktor Chagas

Por anos a fio a sociologia da ação cooperativa tem buscado responder a uma questão que parece intrigar os cientistas sociais. Por que colaborar? Qual a motivação de um indivíduo ao somar seus esforços na confluência de um projeto coletivo? Em especial no contexto da produção de bens simbólicos, o limiar entre a atuação colaborativa e a fraude ou plágio de ideias é suficientemente tênue para criar imbricações ainda maiores. Afinal, as criações têm dono ou são fruto de um dado contexto cultural e histórico?

Garantir que as ideias possam ser usufruídas pela coletividade parece ser uma das questões que mais têm movido juristas, cientistas políticos e uma gama de pesquisadores

Garantir que, uma vez que sejam atribuídas a um ‘criador’ ou ‘autor’, tais ideias possam ser usufruídas pela coletividade parece ser uma das questões que mais têm movido juristas, cientistas políticos e uma gama de pesquisadores com efetivo interesse no problema do acesso aos bens culturais. Entretanto, a pergunta que recebem em troca é invariavelmente uma inversão da primeira: como garantir que, uma vez disponíveis e acessíveis publicamente, tais esforços sejam recompensados eficazmente?  Em resumo, qual a motivação de determinado autor para disponibilizar sua obra ao público?

O modelo tradicional de direito autoral e propriedade intelectual responde a essas perguntas entendendo que o conceito de autoria é a principal, se não única, contrapartida aos criadores. Historiadores como Elizabeth Eisenstein, Robert Darnton e Peter Burke ressaltam que essa compreensão foi forjada de modo a lidar com um contexto histórico particular, que coincidia com a própria definição do objeto livro – basta lembrar que a ideia de autoria se desenvolve em paralelo à evolução das técnicas de encadernação, à divisão da estrutura dos incunábulos em capítulos e ao processo de catalogação dos impressos em bibliotecas.

A esse modelo se contrapunha a autoria coletiva ou desconhecida, típica da cultura popular. E, nesse sentido, o direito autoral coincide com a prevalência da visão utilitarista e da dinâmica produtiva do mercado editorial, em que a escassez do bem cultural como produto material se sobrepõe a seu valor de uso. A solução jurídica, contudo, talvez não responda aos desafios impostos pela produção contemporânea. O que dizer, por exemplo, dos autores de um romance colaborativo na web ou de pesquisadores que se dedicam a escrever em conjunto um verbete para a Wikipédia? A estes, talvez a autoria não seja a contrapartida mais evidente para seus esforços intelectuais.

Mauss
‘Ensaio sobre a dádiva’, de Marcel Mauss: as economias de cooperação substituiriam o monopólio da autoria. (foto: reprodução)

A economia da cooperação on-line, como nomeia o sociólogo norte-
-americano Peter Kollock, se funda sobre o preceito da dádiva e, nesse modelo, a autoria é substituída por um cálculo de custos e benefícios sobre o bem público resultante. Eu colaboro porque tenho a expectativa de que outros colaborem, quero contribuir para a construção do bem público de que farei uso individualmente. Mais do que isso: eu colaboro porque quero colaborar mais do que o outro ou quero que minhas colaborações tenham valor socialmente. No axioma do antropólogo Marcel Mauss (1872-1950): dar, receber,
retribuir. As economias de cooperação substituem o monopólio da autoria pelos indicadores de participação do usuário num dado grupo.

Como postula o cientista político Robert Axelrod, a colaboração está principalmente calcada nas relações de confiança e na repetição. Um determinado jogador só colabora com um projeto coletivo se tiver a convicção de que os outros também estão dispostos a tanto; e esta convicção é adquirida apenas por meio de uma sequência de rodadas com resultados semelhantes, uma espécie de período de observação, em que a constância é indicativo de um cenário também confiável. São esses atributos que garantem a estabilidade do sistema, uma vez que a ação cooperativa está para além do indivíduo. Assim, não há porque colaborar se o futuro é incerto…

Aí está o paradoxo da legislação autoral tradicional: o futuro é incerto; é preciso resguardar o autor. Preservando-se o autor, preserva-se, entretanto, o acesso ao bem produzido por ele, como lembra Kembrew McLeod, que provocativamente registrou a expressão “freedom of expression” como marca de sua propriedade nos Estados Unidos em 1998.

O erro desse sistema está na premissa de que é a autoria a motivação definitiva para a criação e é ela que deve ser recompensada. Em um sistema de produção compartilhada, essa é apenas uma variável em todo o processo. A confiança e a constância talvez sejam elementos meritórios mais complexos do que a própria noção de autoria, que, em última instância, é capaz de garantir motivação a uma estreia, jamais a uma obra consolidada. Por que então colaborar? Porque, diferentemente do modelo tradicional, em que um autor se celebriza pela sua produção, na produção colaborativa o que conta é o processo. do Brasil.


Viktor Chagas
é jornalista e professor do  Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense

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