A maior mina de ouro do Brasil está situada em Paracatu, na região noroeste de Minas Gerais, assentada sobre os escombros de um asteroide que colidiu com a Terra há bilhões de anos, trazendo do espaço um tesouro venenoso: grãozinhos de ouro incrustados em arsenopirita, o principal minério de arsênio. Este artigo aponta os efeitos retardados dessa colisão ‘lucrativa’ e relata o descaso, no Brasil e no mundo, em relação ao problema.
O arsênio é um elemento químico do grupo dos ‘metaloides’ ou ‘semimetais’ – os que apresentam algumas das propriedades físicas de um metal. O arsênio também é considerado um elemento ferrofílico, por ter a propriedade de se associar ao ferro e às rochas. Além dos asteroides, as erupções vulcânicas são importantes fontes naturais de emissão desse elemento para a biosfera.
Para os seres vivos, o arsênio é um veneno. Ele atua como substituto instável do fósforo em ampla gama de processos bioquímicos e nutricionais, provocando os chamados ‘ciclos metabólicos fúteis’, ou ineficazes, que impedem o funcionamento normal do organismo e causam danos à saúde. A existência de genes de resistência ao arsênio nos genomas de quase todos os organismos é um indício forte da toxicidade desse veneno e de sua presença nos ambientes terrestres nas épocas das extinções em massa, causadas por colisões de asteroides e/ou por intensa atividade vulcânica: os organismos que sobreviveram foram os que tinham genes de resistência ao arsênio.
Não há dose segura para o arsênio, e não existe diferença de toxicidade entre sua ingestão e sua inalação. Há, entretanto, diferenças entre suas formas orgânicas e inorgânicas e entre os efeitos agudos e crônicos. As formas inorgânicas são em geral mais tóxicas que as orgânicas, embora umas possam se transformar nas outras.
Um dos compostos inorgânicos comuns do elemento, o trióxido de arsênio, é um veneno inodoro e insípido, conhecido desde a Antiguidade e usado como o ‘pó da herança’ por alguns herdeiros impacientes. Apenas um grama desse veneno é suficiente para matar, em poucas horas, até sete pessoas adultas. Estudos científicos revelam que a exposição, ao longo de anos, a quantidades bem menores – poucas partes por bilhão (ppb), ou seja, poucos microgramas por quilo (μg/kg) – causa um catálogo de doenças e debilidades crônicas, de lesões de pele a doenças hematológicas, imunológicas, metabólicas, respiratórias, cardiovasculares, gastrointestinais, hepáticas, renais e neurológicas. Isso inclui várias formas de câncer: o arsênio está no topo da lista dos agentes carcinogênicos.
Os envenenamentos agudos por arsênio são casos isolados, caracterizados pela inibição da respiração celular, seguida de morte. O uso desse elemento para cometer assassinatos é uma prática popularizada em romances e filmes, como a comédia macabra Este mundo é um hospício (Arsenic and old lace, no título original, de 1944), de Frank Capra. A intoxicação crônica é menos conhecida, embora comum; ela afeta, no mundo, centenas de milhões de pessoas, expostas às quantidades crescentes de arsênio liberadas continuamente no ambiente por certas atividades humanas, entre elas a mineração de ouro e a queima de combustíveis fósseis e o uso de águas subterrâneas contaminadas.
O arsênio liberado em atividades humanas é chamado de ‘antropogênico’. Quantidades anormalmente altas de arsênio na água, em alimentos e em material disperso na atmosfera (poeira e gás) quase sempre indicam contaminação antropogênica. Em várias partes do mundo têm sido constatadas intoxicações crônicas de populações humanas, mas em geral os casos são negligenciados, em razão do longo período de latência (tempo entre a exposição ao veneno e a manifestação das doenças) e por conta de conveniências políticas e econômico-financeiras.
Questão mundial
Há séculos, o arsênio tem sido usado como veneno e como droga. Há mais de 2,4 mil anos, esse elemento faz parte da farmacopeia tradicional chinesa. O conhecimento científico dos seus efeitos sobre a saúde humana foi impulsionado, a partir do século 18, pelos casos de intoxicação de operários da indústria extrativa. Entre os estudos sobre os efeitos do arsenato sobre as enzimas, destacam-se os trabalhos pioneiros dos enzimologistas mais notáveis do século 20, entre os quais o alemão Otto Warburg (1883-1970), o norte-americano Frank Weistheimer (1912-2007) e o irlandês Henry B. F. Dixon (1928-2008).
Na Alemanha, a intoxicação crônica de milhares de pessoas por arsênio, entre 1920 e 1942, nas regiões do Kaiserstuhl e vale do rio Moselle, foi descrita detalhadamente em estudos científicos e relatórios oficiais. A intoxicação foi causada pelo uso de inseticidas à base de arsênio em plantações de uva dessas áreas vinícolas tradicionais do sudoeste do país. Os chamados danos tardios do arsênio foram notados após muitos anos de exposição ao veneno e mesmo anos depois que esta terminou.
O período de latência variou de três a 50 anos (média: 26 anos), dependendo principalmente da quantidade de arsênio absorvida. Em 2013, atuando como médico na Alemanha, examinei dois pacientes idosos sobreviventes dessa intoxicação em massa. O uso de inseticidas contendo arsênio só foi proibido na Alemanha após o surgimento de inseticidas sem esse elemento. Hoje, os sindicatos de viticultores alemães reconhecem a intoxicação crônica e as vítimas têm direito a indenizações.
O arsênio também é a causa do maior envenenamento em massa da história da humanidade: a atual epidemia de arsenicose em Bangladesh e na região de Bengala Ocidental (Índia) afeta milhões de pessoas e mata centenas de milhares por ano de diversos tipos de câncer e outras doenças. Essa tragédia tem sido documentada em numerosos estudos científicos e relatórios oficiais, publicados a partir da década de 1990. O gatilho foi a perfuração indiscriminada de cerca de 12 milhões de poços tubulares de água em subsolo contendo depósitos minerais de arsênio.
Sergio Ulhoa Dani
Instituto Medawar de Pesquisa Médica e Ambiental (Paracatu, MG)
Departamento de Oncologia Médica
Hospital da Universidade de Berna (Suíça)