Sábado, 14 de julho de 1984. A chuva revestia o majestoso edifício eclético que abrigava a recém-aberta Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Inaugurada em 1975, por iniciativa dos artistas Rubens Gerchman (1942-2008) e Luiz Áquila, três anos antes do incêndio que destruiu o acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), antigo ponto de encontro de artistas e intelectuais, a Escola de Artes Visuais teria naquele sábado uma noite histórica, que marcaria sua vocação como celeiro de artistas da cidade.
E eles foram chegando: artistas, universitários, curadores, críticos, neohippies, new waves, punks, frequentadores do Baixo Gávea e do Circo Voador, personagens da alta sociedade e todo tipo de amantes e aspirantes ao novo mundo das artes que começava a se configurar após os chamados ‘anos de chumbo’. A partir das 16 horas, quase 15 mil pessoas começaram a ocupar os 625 mil m2 do prédio para a abertura da exposição ‘Como vai você, Geração 80?’, sob a curadoria de Marcus Lontra, jovem produtor cultural (então com 30 anos), Sandra Magger e Paulo Roberto Leal.
De acordo com colunistas dos periódicos da época, viam-se, por todo o prédio, trabalhos dos 123 artistas presentes na mostra: grafites pornográficos no banheiro, sapatos expostos num aquário, e até um manequim sem cabeça adornado como uma cantora lírica, com um vestido repleto de aranhas de borracha e um gravador escondido que entoava árias de La Traviata.
Pinto como pinto
Performances também tiveram destaque no evento, como a do artista negro vestido apenas com uma tanga de crochê, que arrastava um pano branco, ao lado de uma bruxa, um cowboy, uma noiva e uma mulher que emulava virar peixe – integrantes do coletivo Pinto como Pinto.
Fogos de artifício foram acesos por um artista com uma tocha, enquanto outro girava uma gaiola de metal num cenário, no centro do prédio, composto por uma pintura de Daniel Senise – Sansão – que representava um colosso derrubando as colunas e as estruturas da instituição. A consagração final do evento foi a chuva de 7 mil gaivotas de papel, atiradas na piscina, imagem que se tornou ícone da abertura da festa.
Na ocasião, o produtor Marcus Lontra afirmava que um dos objetivos da mostra era mostrar como os artistas da nova geração “tiraram a arte, donzela, de seu castelo, cobriram seus lábios de batom vermelho e com ela rolaram pela relva e pelo paralelepípedo, recriando momentos preciosos, nos quais trabalho e prazer caminham sempre juntos”.
Grupo hedonista
Estava inventada a Geração 80. O grupo foi estigmatizado como despolitizado, reacionário e narcísico, mas o rótulo de hedonista talvez seja o mais preciso e se relacione com a conjuntura sociopolítica do país na época. Passados os anos de chumbo, os brasileiros bradavam “Diretas Já”, em busca de novas esperanças, afetos e promessas, em plena abertura política do país, em uma década depois estigmatizada como perdida – com inflação, ‘geração coca-cola’, bomba no Riocentro, mas também lei Sarney, surgimento da Funarte, queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, rock, praia, barraca do Pepê e ‘veneno’ da lata, enlatados na tevê, e ainda o vírus HIV.
Todos esses ‘estilhaços culturais’ foram apropriados por artistas que gravitavam em torno dos 20 anos e que, entre 1980 e 1985, estavam iniciando suas pesquisas artísticas e experimentando diferentes poéticas, sobretudo a tradicional linguagem da pintura.
Recém-saídos das principais escolas de arte do Rio de Janeiro e de São Paulo, muitos se apropriaram das ideias em circulação no cenário internacional de então, vinculadas ao que foi chamado de ‘retorno à pintura’, propalado por vanguardas como a bad painting norte-americana, o neoexpressionismo alemão e a transvanguarda italiana.
As ideias da pintura alemã ‘fizeram a cabeça’ dos artistas paulistas, formados por professores vinculados à arte construtiva e conceitual da década de 1970, sobretudo do grupo conhecido como Casa 7, o que deu origem a uma ‘pintura conceitual’ influenciada pela arte povera (arte pobre) italiana.
Já os artistas do Rio de Janeiro se inspiraram na transvanguarda italiana – crítica do que dizia ser um ‘darwinismo linguístico’ na história da arte, com sua visão progressista e evolucionista – e defendiam uma arte livre dos conceitos e tradições, que trouxesse de volta à cena, por meio da pintura, as sensações e o público abandonados pelas gerações antecessoras, acusadas de produzir obras herméticas e pedantes.
Com trabalhos em grandes formatos, muitos pintados em telas sem chassis, com uso intenso, pastoso e quase escultórico de tintas, sem alusões temáticas rígidas e marcados por um intenso experimentalismo e gestualidade, os artistas da Geração 80 tinham poucas conexões com os pintores brasileiros de gerações antecessoras, como Flávio de Carvalho (1899-1973), Flávio Shiró, Iberê Camargo (1914-1994), Ivan Serpa (1923-1973), ao contrário do que foi sugerido em algumas exposições de pintura daquela década, em especial a mostra ‘Entre a mancha e a figura’, realizada em 1982 no MAM, sob a curadoria de Federico Morais.
Outras mostras foram importantes para a reafirmação, a crítica e a atualização do conceito ‘Geração 80’, como a discreta ‘Pintura como meio’, organizada por Aracy Amaral, em 1983, com apenas seis novos artistas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), e a ‘Imagens da segunda geração’ (1987), com curadoria de Tadeu Chiarelli – ambas ocorreram no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo.
Leonardo Bertolossi
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo